Wednesday, July 2, 2014

CONTOS DE RATAZANA
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 ROSA MARIA E O MORTO

Numa espelunca de copos, a uns quinze quilómetros da cidade, no Club do Azeite, ex-Leitaria da Corneta! Numa noite dos anos 80, em que o rectângulo da sala estava bem frequentado por uma clientela rasca,
sente-se o barulho da música a envolver as pessoas como um trovão. O ritmo invade-os completamente mas, lentamente, essa sensação passa. «O Azeite movimenta o leite.» - Disse Rosa Maria ao cliente, numa mesa cheia de copos e garrafas de champanhe. «Quando uma pessoa bebe sem conta e medida, fica cá com um gás que só apetece fazer amor. E o que é que cá faz nós bebermos? É o calor da garganta, penso eu, é uma coisa que nos invade cá dentro, que uma pessoa não aguenta muito tempo sem beber.» - Ficaram algum tempo a conversar e a beber e a contar confidência um ao outro. Dizia ela que fazia amor três a seis vezes por dia. «Porra! Eu dou uma e fico logo como o coelho a espernear-me todo.» - Disse-lhe ele com a boca cheia de cerveja. «Comigo isso não sucederia.» - Corrigiu ela e ele acenou com a cabeça. «Calculo, és uma rapariga maravilhosa, eu sei, mas vou dizer-te honestamente, contigo acho que serei diferente.» - A estratégia dele estava lançada. Agora, a coitada da Rosa Maria iria ter de passar, se calhar, um mau bocado. Porém tranquilizou-a bastante saber que as mulheres com quem ele, o cliente, esguio e esquelético com cara de fuinha, se relacionara, não eram do seu tipo mas sim «cavalas e façanhudas», só que, para além disso, também eram descaradas e algo desmioladas; faziam tudo na corda bamba e gritavam que nem umas cabras só para o excitar; faziam as maiores fitas que se possa imaginar, para ele aumentar o seu entusiasmo e tudo isso, essencialmente, por causa do livro de cheques. Ele era um cliente da velha guarda, gostava de pagar generosamente. A partir daí, o cliente chamara-a a sua «coelha sem preço» e sonhava com ela todos os dias e a todas as horas, além de prever para ela um grande futuro, quem sabe como dona duma casa de Tia, ou uma leitaria de leite à mão. «A tua amiga é uma burra», - disse o cliente uma semana antes de bater a bota para o outro mundo, a uma colega dela na mesa recheada de copos. ─ «Tinha um palacete forrado a vidro e espelhos de latão, que ele dizia ser uma dádiva de amor da sua parte, numerosas folhetas, incluindo estimulantes sexuais que davam ligeiras cócegas, e uma edição do Tarados e Chanfrados do autor.» ─ «Rosa Maria tem mais desejos do que ideias.» - Ele pronunciou o nome com tal força que cuspiu para cima do copo. Apesar de todas essas contrariedades, ele parecia ainda amá-la. «Ele era um bem amado.» - Disse a amiga, enquanto aspirava da boca uma fumaça do cigarro. O cliente de Rosa Maria tinha mais de sessenta anos, nunca lhe quis dizer o seu nome e morreu na noite em que fez amor com ela na cama. Era um assunto de que ela evitava falar, embora sempre palradora para discutir qualquer assunto que fosse tabu. Porque é que logo aquele velho havia de morrer em cima de mim? Agora que tinha tanta coisa para me oferecer, um palacete e um casaco de visão e um cadillacc pintado a carvão. Rosa Maria, cuja primeira reacção pela morta do cliente fora uma sensação de angústia e medo, desculpava-se diante das amigas que não tivera qualquer culpabilidade no cartório. Depois da morte do cliente que, veio a saber-se, se chamava João Mávida, Rosa Maria a vida boémia e moinante de camareira e dedicou-se à venda de flores numa loja que alugara na ocasião. «Uf!», - confessou ela a uma amiga. - «Já tinha saudades de voltar a ser uma senhora.» - Trazia cabelo russo com madeixas azuis num penteado de banana mal feito, usava um vestido ao xadrez por baixo de um avental de flores estampadas, abandonara as pinturas mas não deixara de fumar, e vendia flores e plantas de todos os géneros ─ naturais e artificiais ─ Rosa Maria acabou por se alhear dos copos à noite e principiou a beber água, ficando por vezes amuada no seu quarto sem saber com quem falar. Por isso, comprou um periquito e mantinha acesa a lâmpada do passado. «Já te disse que hoje não me apetece beber», ─ ou então, «Não me assobies alto que eu não sou nenhuma cadela!» - As amigas dela acharam estranho a mudança de Rosa Maria (conforme disseram no trabalho à noite) e a atitude dela no tocante à sua vida. «Quem a ouve falar até fica pasmada com ela, nem parece a mesma», - disse uma delas. - «Ainda bem», - respondeu outra das amigas, pondo-se de pé – É sinal que uma pessoa viciada em copos, se deixar de beber deixa de ser viciada!...» - Instantes depois, voltaram as costas umas às outras e dirigiram-se para o trabalho. Um dos aspectos da sua educação tinha sido bem descuidado. Um domingo, pouco tempo depois da morte do seu cliente, ela foi comprar cigarros ao quiosque da esquina, quando o ardina dos jornais lhe anunciou: «É o meu último dia. Há tantos anos a vender jornais e só agora é que os Picas haviam de me querer arruinar o negócio.» - Ela escutou com atenção a palavra p-i-c-a-s e teve a ilusão de ver uma junta de médicos com seringas nas mãos a darem várias injecções no ardina dos jornais do domingo. «O que é isso de picas?» - Perguntou totalmente e a resposta saiu com rapidez: «São drogados», - acrescentou ele. – Como não dormem de noite, aproveitam para me gamarem os jornais, fazem fogo para aquecer os pés, mortalhas para fumar, estrumeira de merda e outras e tantas variadas coisas, tudo por causa do vício.» - Rosa Maria afastou-se e voltou para o quarto. Depois de fumar uns três cigarros e beber outros tantos copos de vinho (tinha começado a beber recentemente), deitou-se em cima da cama e, instantes depois, adormeceu. Durante o sono, reparou que tinha ali, na sua cama, aquele indivíduo já idoso meio labrego com quem ela mantivera uma relação marcante. Havia já algumas semanas que não entrava na arena sexual com tamanho apetite, e nunca antes desejou ter uma aventura tão veloz que a deixasse de rastos. O prolongado silêncio dele (que silêncio! até que soube que o seu nome constara da lista de defuntos do caso do cliente que morrera na sua cama) fora doloroso. A notícia da morte dele suscitara-lhe uma data de problemas, principalmente com a vizinhança, que teve que dar a volta ao quarteirão para se refugiar. Estava pasmada a olhar quem é que ele julgava ser, para entrar assim sem bater, sem um aviso, à porta dela, pensando encontrá-la de braços abertos, como retribuição dos copos que lhe pagara diariamente no trabalho… em suma, sentira-se invadida. Mas depois pensava para si, repetindo tais ideias para as profundezas, afinal de contas, João Mávida tinha pago bem cara a sua presunção, se realmente disso se tratava. ─ Um morto na cama, merece o benefício da dúvida. ─ E depois viu-o caído a seus pés, sem sentidos, no chão da cama, sem respirar, levando-a por segundos a perguntar como é que havia de fazer para se ver livre daquele embrulho? ─ preferia esta expressão à palavra morto. O esforço de o levantar do chão, de atirar o braço dele por cima dos seus ombros e de o semi-carregar até à sala, custou-lhe porque ele era bem pesado. Doeram-lhe horrivelmente os pés para o erguer e ela sufocara até o deixar cair. O que ia fazer ela daquele trambolho escarrapachado em cima de sua cama? Meus Deus, e a vizinhança quando soubesse? Mas outros sentimentos vieram ao de cima a dominar. Tinha que fazer qualquer coisa; avisar a polícia por exemplo e fugir dali rapidamente; ao fim de algum tempo, resolveu meter pés ao caminho e desandou dali. O morto dormiu vinte e quatro horas, repartidas ali na cama para satisfazer as exigências policiais e outras tantas na morgue. O seu sono era irrequieto; mexia-se muito na cama e escapara-lhe dos lábios uma ou mais palavras: Rosa Maria, o palacete é teu. Nos momentos de vigília parecia querer ressuscitar mas o sono era demasiado grande. Ele não conseguia imaginar sequer o que lhe tinha acontecido naquela fatídica noite do amor. Rosa Maria veio deitar a última mirada para o corpo, franziu os lábios e murmurou: «Coitado dele, parece que ainda está c´os copos.» - Olhou uma vez mais cheia de superstição. «Envia-lhe uma mensagem ao ouvido dele.» - Recomendou a amiga, acompanhando-a
até à porta. Entretanto, Rosa Maria voltou-se para trás e disse: «Eu depois mando-te notícias.» - No sétimo dia ele acordou de repente, dobrando as pernas com um passarinho e arregalando os olhos até trás como o mocho e só depois estendeu a mão para ela, murmurando em baixo tom: «Minha rosinha, vamos terminar o nosso trabalho que não foi acabado.» - A subtileza do pedido deu tanta vontade de rir a Rosa Maria como o seu descaramento inesperado e, de novo, a invadiu uma sensação de acerto; disse sorrindo: «Está bem, já que assim queres, que seja feita a tua vontade.» - Tirou o vestido largo, de pregas, e o casaco folgado ─ não gostava que as roupas revelassem a moldura do seu corpo ─ e começou assim a maratona sexual que deixou ambos felizes, exaustos, quando chegou ao fim. Ele contou-lhe que lhe dera um enfarte em que o mandou desta prós anjinhos. Mas voltara a viver. E ficara sempre com aquele espinha entalada na sua alma por não ter conseguido o que demais sagrado deixara à superfície da terra: o seu amor. «Está bem, eu acredito», - disse ela. - «Mas não te canses tanto, antes que vás outra vez.» - Ainda dias antes ela vira um filme na televisão em que os mortos voltaram a nascer. A ideia disso acontecer parecia um milagre. Tinha ouvido tantas histórias de bebés que caíam de arranha céus e ficavam na mesma. Há quem diga; ao menino e ao borracho Deus põe a mão por baixo. Não será bem este o caso, mas havia uma cena no filme que deu na televisão em que o artista morre mil vezes e está sempre a nascer… Retomou o fio à sua meada. «Às vezes.» ─ Resolveu dizer ─ acontecem coisas milagrosas.» - A névoa tornou-se mais espessa à volta dela. Por isso, quando deu conta, tinha conseguido passar por debaixo do céu. Atravessou o rio quando a neblina se adensou para, instantes depois, se dissolver por completo, levando consigo o sonho. «Mas ele estava lá.» Repetiu ela.

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