Tuesday, July 29, 2014


CONTOS DE RATAZANA




O motorista de táxi de Massarelos, Francisco, era então, em toda a zona de Miragaia, o condutor mais mulherengo e o mais avarento. Na praça do Infante, passava ele as manhãs desse Outono, enfiado no seu blusão de couro, lendo o jornal sobre o volante, atrás de uma fila de carros, onde desde muito não saía uma carro da periferia, nem se via movimento na rua. Ao escurecer devorava uma sopa e umas sandes, acompanhadas com vinho. Depois, olhando o céu, ia dormir a casa da amante, para aproveitar o calor dela que, atirada como ele, rangiam as tábuas da cama. E o sexo tornara estes dois amantes mais bravios que lobos. Ora, no Inverno, por um calmo aproximar do escurecer de sábado, andando ele na Foz à cata de apanhar um turista de praia, o taxista Dias deparou por trás de um supermercado, uma velhota a olhar para o táxi. Francisco, olhou e viu que a velhota lhe acenava, voltou o táxi na sua direção. «Senhor motorista! Leve-me ao bairro do Aleixo, por favor!» Ao ouvir a palavra «Aleixo», o taxista ficou mais branco que a cera. Depois, gesticulando nervosamente, murmurou: «Não, minha senhora, para esse bairro não! Eu ainda de lá vim a semana passada, e só por recusar trazer três rapazotes, partiram-me o farol e fui corrido à pedrada! E perdi também a bandeirada, com uma vagabunda, que me pôs a secar no carro, pedindo para eu esperar, e até hoje, ainda não apareceu! Oh, minha senhora, para o Aleixo, não! Se aceitar que eu a deixa à entrada do bairro, que não me aventuro a entrar, já que o meu carro está marcado, eu levo-a, e levo-a já!» ─ «Estou tramada!» gritou a velhota, velha mais alta que um pinheiro, de curto penteado, e com uma cara tão risonha como a cor do tomate. Então Francisco, que era alto e moreno, e o mais indiscreto motorista de táxi, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por esperar o que a velhota decide. Por fim, brutalmente: «Minha senhora! O tempo tem horas… Eu quero trabalhar e levar a minha vida!» ─ «Também eu quero levar a minha, que raios!» gritou a velhota. O taxista sorriu, decerto, decerto, quem não quer! E logo ela, agarrada à carteira, murmura: «Senhor motorista, não sei como dizê-lo, mas tenho de estar esta noite no bairro. Vamos fazer um acordo! Eu lhe pagarei o dobro da viagem, se você me levar, ao meio do bairro!» Vivamente, Francisco agarrara o braço da velhota e abrira a porta traseira, para a deixar entrar. E partira satisfeito. «Ali à frente, ao meio da estrada da Circunvalação, há um sítio mais curto, e vamos pelas traseiras.» ─  «Qualquer sítio me serve, desde que me deixe lá.» Foram. O carro se enroscou por trás de um sítio que dominava o atalho, estreito e esburacado como um terreno de batatas. Francisco, saltitando no terreno, já tinha dado uns quantos solavancos. Enquanto coçava o bigode, calculava o tempo pelos pulos. Um grupo de ciganos passou por eles, resmungando. E Francisco, que lhes apanhara o rasto, recomeçou a pensar, com números, pensando nas voltas e reviravoltas que tivera no percurso. Enfim! Bairro do Aleixo! Entrara por um antigo caminho, e parou o carro na berma, murmurando em voz rouca: No meio do bairro! Daqui não passo!» A velhota puxou vagarosamente a carteira, mas oscilou, largando o dinheiro e papéis que caíram ao chão, e ambos se curvaram para os recuperar. Depois de pagar, ainda lhe deu dez escudos de gorjeta: e depois, ao sair, desejou-lhe boa viagem. Francisco voltou para casa. No regresso meditava na sua corrida vantajosa, enquanto a noite ia escurecendo, abriu um pouco mais o vidro, apanhando a brisa do ar que o fez tilintar os dentes. Depois de passar em torno do jardim, e encontrando dois pares de aos abraços e beijos, sentiu uma imensa fome de sexo. Desde uns dias só fizera uma à lá-minuta. E há quanto tempo não dava uma grande! De repente, tomado de uma ansiedade, teve pressa de carregar no acelerador, entre os tapetes, um pequeno pape sobressaía. Puxou-o por uma das pontas dos dedos, para junto dos olhos, e verificou a data. Como raio, aquilo viera parar ali? Era uma cautela da lotaria, andava à roda no dia seguinte. Guardou-a no bolso e entrou em casa. Com que apetite se deitou na cama, com as pernas abertas, e entre elas a amante loura, que acordara, e o desejo os unira. Rapidamente, essa necessidade a imaginação de trocadilhos de amor, de amantes acalorados, apoderou-se dele. Levantou uma perna da amante: beijava a deliciosos beijos. A noite escurecia, pensativa e doce, com sonhozinhos cor-de-rosa. Francisco ergueu à luz o corpo da amante. Com aquela cor nova e quente, não demoraria muito a aquecer. Pondo os mamilos à boca, sorveu com carícias lentas, que lhe faziam levantar os pêlos do peito peludo. Oh, carícias benditas, que tão prontamente aquecia o desejo! Depois, estendeu-se sobre o cotovelo, descansando, pensava em Massarelos coberta de casinhas pequenas em cima umas das outras, nas altas temperaturas do ambiente, por noite de frio, e a sua casa com aquecedor, onde teria sempre a amante. De repente, voltado para o ar, virou-se para o lado e adormeceu. Na manhã seguinte, ao levantar-se da cama, pela hora do silêncio, a amante loura entrou na cozinha para preparar o pequeno almoço, quando ergueu o olhar para o amante e foi como se uma mola a tivesse empurrado para pôr ordem nas roupas dele em total desordem pelo chão.  De repente, teve desejo de lhe ir aos bolsos. E fixou os olhos na pequena cautela… Depois de examinar a validade, pegou no pequeno papel, com vagarosa cautela, na ponta dos pés, voltou para a cozinha e ligou o rádio, porque estava na hora da extração. E, sorrateiramente, afinou os ouvidos, a ponto de ouvir, a cantada vibrante e prolongada, atirada aos microfones:

2! 4! 7! 3! 9!
3º Prémio,
      Quinhentos mil contos…

E imediatamente, com os olhos a reluzir de excitação e ansiedade, agarrou na cautela e saiu, correndo pela rua, até uma casa de lotarias. E aí, entregando a cautela, e o bilhete de identidade, esperou pacientemente, até receber o cheque endereçado, com as mãos a tremer de frenesim. A amante, correu pela rua ao banco, gritou para diante de si alegremente: «O! Sorte, nunca me vou esquecer do dia de hoje! E eu, que tantas vezes te implorei!»

                                                                 II

Mal a tarde chegou, Francisco, dentro do quarto apagado, ergueu-se da cama, sonolento e nu, correu para o chuveiro. E, animado com o banho, sem necessidade de mudar de toilette, vestiu-se. De repente, lembrou-se da cautela e foi ao bolso, e contemplou-a. Já entre as quatro da tarde o sol se refugiava. Puxou de uma caneca e bebeu um trago de café. Depois, ligou o rádio, ouvindo a repetição dos números sorteados:

2!4!7!3!9!
3º Prémio,
   Quinhentos mil contos…

Agora estava rico, só ele, e os quinhentos mil contos!... E Francisco abrindo os braços respirou deliciosamente. Mal se aprontou, com a cautela enfiada no bolso, apressou o passo pelas ruas que conduzem à casa da Sorte Grande, para receber o seu prémio! E quando ali se apresentou, para além dele e de um funcionário acompanhado de um agente policial, recebeu de imediato voz de prisão por frande… Fraude como? Recuou, caiu na cadeira, e levou as duas mãos aflitas à cabeça. Ainda se ergueu; com uma baba espessa a escorrer-lhe nos bigodes; e de repente, esbugalhando copiosamente os olhos, berrou, como se compreendesse enfim toda a traição da amante, todo o pesadelo! «Maldita!» Oh! Francisco, o dinheiro era tentação! Porque a amante loura, apenas fora a uma papelaria tirar um fotocópia da cautela, mesmo antes de levantar o prémio, correra feita uma andorinha do mato a casa para deixar a cópia, e voltar a um banco, por detrás da igreja, a depositar o prémio e receber um cartão multibanco que, a tornaria a ela, a ela somente, dona de todo o dinheiro.

                                                                  III


Dois meses se tinham passado, sobre o roubo da cautela. A amante, cantando e rindo, levava uma vida de sonho no outro lado do Atlântico. Meia solteira, no seu chalé, toda ela se tornara morena a apanhar banhos de sol. Uma estrelinha do céu amparou-a. O dinheiro da cautela está lá, no chalé da baía.


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