Wednesday, June 6, 2012




CONTOS DE RATAZANA
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15. Episódio



 Eis como o Pipocas se pôs a cismar e ficou amalucado. Como enganou o Papagaio, na venda da cabana



Quase todos os dias, de manhã cedo, o sol bate nas janelas do lado poente das ruas; e, de tarde, brilha no sentido oposto. Diariamente, o autocarro creme passa, barulhento, no seu percurso entre Marco de Canaveses e as localidades vizinhas. Todos os dias as casas comerciais abrem as suas portas para o público ávido de intenções o que aumentam o negócio. Todas as tardes, o vento sopra do monte e agita os pinheiros nas colinas. Os reformados à bica sentam-se nas pedras de cigarro na mão e no rosto vinca-se-lhes a paciência e o descaramento. Por cima do Marco de Canaveses, a rotina ainda se mantém inalterável, pois a Xanana não deixa de ter um indeterminado tipo de aventuras com o seu repertório de amantes de rápida substituição. É bem conhecido o facto de ela aceitar outra vez um homem há muito deixado de lado.

Na casa do Pipocas, as mudanças eram mais significativas. Os amigos tinham subido na vida que podia ter sido benéfica para toda a gente, principalmente para eles: levantar cedo de manhã, ficar agarrado ao trabalho e regressar com novidades para contar. O Faísca continuava a levar as latas do lixo e vender bugigangas no jardim do Marco de Canaveses, mas agora gastava com despesas os 10 escudos que ganhava todos os dias. De vez em quando os amigos lá arranjavam uma farra e lá vinha o vinho, as cantigas e as zaragatas para a acompanhar. O tempo ainda é mais complexo junto ao comércio do que em qualquer outro lugar, pois, além do girar do dinheiro e do movimento das vendas, há o bater do crédito mal parado, sobrepondo as margens dos lucros, e o subir e descer do negócio como os de uma grande tômbola.

Pipocas começou a sentir o andar do tempo. Olhava para os amigos e via que todos os dias as coisas se passavam da mesma forma. Quando de noite acordava na cama e concentrava os olhos no escuro, ficava assustado consigo próprio por ter acordado com o escuro. Na loja, olhando a rua, o Pipocas começou aos poucos a sonhar com os dias em que fora viajante; Durante o Verão dormira nas pensões; no Inverno, quando a chuva se fazia sentir, passara as tardes nos frescos bares de entretenimento. Sobre os seus ombros havia o peso da propriedade. Lembrava-se de como o nome de Pipocas era um nome de boa pronúncia.


Oh, as farras de sexo! As idas pela estrada fora para o apartamento no Porto com uma mal-arranjada rapariga de ocasião! O esconderijo da cabana quando um desgraçado perdido pedia ajudas. Bebedeira e borga, doce borga! Quando o Pipocas se lembrava desses velhos tempos idos, era capaz de sentir novamente na cabeça o bom gosto da fajardice atribulada e enchia-se de saudades. Desde que a herança o elevara na escala social, só raramente se metia em barafundas. Esborrachava-se, é verdade, mas não da mesma maneira vagabunda. Sobre os seus ombros havia sempre o peso das casas; sempre a diferença em relação aos seus amigos. Como começasse a ter uma expressão sombria, quando se sentava no quintal, os amigos pensaram que estivesse infeliz.

— Gemas batidas de ovos de faisão, fazia-te bem — sugeriu Catanada. — Mete-te no choco, Pipocas, que a gente acende umas velinhas ao Santo Protetor!

Mas não eram atenções que o Pipocas queria, era pândega. Durante uma temporada andou cismado, olhando fixamente para a frente, encarando com uma expressão brusca os seus queridos amigos e batendo as mãos enxotando as incómodas moscas que se lhe deparavam na frente. Por fim pôs termo às saudades. Uma manhã desapareceu. Meteu-se na carrinha em direção do monte e fugiu da circulação. Quando, ao fim da tarde, os amigos bateram à sua porta e deram pela sua ausência Catanada disse:

— Aqui anda saias. Está apaixonado.

Não pensaram mais nisso, pois toda a gente tem direito ao amor. Continuaram a viver como dantes. Mas, como passasse uma quinzena e o Pipocas não desse conta de si, começaram a ficar preocupados. Uniram-se em grupo, e foram ao monte procurá-lo.

— O amor é magnífico — disse Catanada. — Não se pode criticar um homem por ir atrás duma rapariga, mas uma quinzena é demais. Deve tratar-se duma rapariga com muito esplendor, para conseguir manter o Pipocas há uma quinzena fora de portas.

Pascácio comentou:

— O amor numa pequena quantidade é como um gole de uísque. Ambos em excesso faz um homem descontrolado. Quem sabe se o Pipocas não está descontrolado. Talvez essa rapariga seja temperamental de mais.

Very nice estava em desacordo total.

— Não é costume o Pipocas ausentar-se tanto tempo. É capaz de lhe ter dado alguma coisa de mal.

O Faísca levou o cão para o monte. Os amigos disseram ao jeco:

— Procura o Pipocas. Se calhar está a dar alguma troçada. O bom homem que às vezes te acolhe e abriga em sua casa é capaz de lhe ter dado alguma macacoa.

O Faísca acariciou-lhe as orelhas:

— Cão fiel e amigo, procura o nosso amigo.

O cão, porém, abanou o rabo alegremente, seguiu a pista de uma galinha-do-mato e foi atrás dela. O grupo andou até ao escurecer pelo monte fora, chamando o nome do Pipocas, procurando em sítios que eles poderiam ter escolhido para uma aventura. Conheciam os lugares onde um homem podia aventurar-se, mas não viram nem sombra do Pipocas.

— Talvez tenha ficado amalucado — prognosticou Catanada. — Se calhar foi alguma chatice que lhe deu volta ao miolo.   

No calor da noite fizeram uma viagem ao apartamento do Pipocas no Porto; tocaram à porta e esperaram. Ficaram um bocado em expetativa. Mas de lá de dentro não ouviram ruido nenhum. Catanada olhou rapidamente para Artur Bófia e depois teve uma ideia.

— Tu conheces os bares todos. Leva-nos até eles. Fazemos de conta que somos uma rusga policial.
— Temos de dar com ele — afirmaram os amigos uns aos outros, — não vá acontecer-lhe alguma ruindade. Temos de procura-lo por todas as casas até o encontrarmos.

Sacudiram a preguiça dos ombros. Todos os bares foram revistos e, então, começaram a ouvir boatos curiosos:

«Sim, o Pipocas esteve aqui ontem à noite. Oh, aquele bêbado! Oh, que fajardo! Vejam bem, o Pipocas atirou a camareira ao chão com um encontrão que lhe deu e sacou-lhe a garrafa de champanhe. Que pifo ele enfardou!»
«Sim, vimos o Pipocas. Tinha um buraco na camisa e estava a cantar: “Venham cá minhas pegas, vamos para o sofá coçar”, e a gente foi. Não tivemos medo. Ele parecia não estar lá a regular muito fixe.»     
    
Na Ribeira do Porto encontraram mais notícias do amigo.

«Ele passou por cá», disseram os empregados. «Queria embebedar toda a gente. O Bruno Chouriço mamou-lhe uma garrafa de uísque de 15 anos. Depois o Pipocas partiu os vidros da cabina da música e um segurança pô-la na rua.»

Continuaram calorosamente a seguir o rasto do seu endiabrado amigo.

— Martelão deixou-o na rua a noite passada — informou o gerente —, mas ele arranjou maneira de se pôr a lestes antes que chegasse a polícia. Quando o apanharmos damos-lhe uma coça.

Os amigos deram por terminada as buscas. Foram até à cabana e, com grande espanto seu, viram que o novo saco-cama do Pipocas, arrumado por Catanada nessa manhã, tinha sido usado.

— Agora é de rir! — exclamou Catanada. — O Pipocas está chalupa e em fúria. Se não o agarramos, ainda lhe acontece ir parar ao manicómio.
— Iremos à procura onde ele se terá metido — disse Very nice.

Catanada pôs a cabeça a refletir.

— A coisa não bate certa. Sempre que procuramos o Pipocas, ele já de lá saiu. Temos de proceder com inteligência e não como burros.
— Mas onde pensas que ele irá?

Imediatamente se abriu uma luz ao fundo do túnel no espírito deles.

— À adega do Papagaio! Mais cedo ou mais tarde, o Pipocas acabará por lá ir. E aí temos de o apanhar, para travarmos com esta loucura toda.
— Claro, claro — concordaram todos —, temos de ajudá-lo.

Dirigiram-se à adega do Papagaio. Este, contudo, já tinha a porta fechada.

— Estão a querer saber — gritou através do postigo — se vi o Pipocas? Ele veio-me cá com duas pulseiras e um relógio e eu dei-lhe meia caixa de uísque. Querem saber o que esse gordo fez depois? Injuriou a minha patroa, e a mim insultou-me do piorio, escorraçou os gatos aos pontapés e roubou-me a cana de pesca que eu tinha na arrecadação. — O tasqueiro fumegava de comoção. — Fui no seu encalço para ir buscar a cana de pesca e, quando voltei, estava ele na marmelada com a minha patroa! Pérfido, larápio, borrachão, é o que o vosso amigo é. Hei-de metê-lo nas grades.         

Os olhos dos amigos fizeram faíscas.

— Ó meu boi da Índia — disse Catanada serenamente —, olha como falas do nosso amigo que ele não anda bem.

O Papagaio fechou o postigo. Ouviram-no correr o ferrolho, mas Catanada prosseguiu, mesmo com o postigo fechado.

— Javardo! Se não fizesses falcatruas com o teu vinho martelado, estes casos não aconteceriam. Vê lá mas é se deixas de nos enlamear com essa língua de jacaré. Se não fores bom para ele e para nós, a gente abre-te essa barriga como um porco.

Dentro do postigo, o Papagaio nem tossia nem rugia, mas a ferocidade das palavras de Catanada fazia-o tremer de raiva e medo. Só ficou aliviado depois de ouvir os passos deles que se afastavam indo pelo carreiro. Nessa noite, depois de os amigos terem ido para a cama, tristes com a fraqueza nas pernas em baixo, os amigos sentiam a maior necessidade de se esticarem ao comprido para recuperarem forças para a etapa seguinte. Pela calada da noite, o Pipocas, a quem as sombras da noite ajudava a encobrir a sua passagem, introduziu-se em casa, silencioso como a sua própria sombra e, pesadamente, atirou-se para cima da roupa e assim ficou. De manhã, dirigiu-se resolutamente ao monte, e cavou outra vez. A casa ficou em estado de deserta. Por todo o lado, em redor, o silêncio tomara conta daquela área.

Dificilmente o rosto do Papagaio apresentava outras feições que não fossem a desconfiança e a cólera. No seu negócio de fabricante clandestino de bebidas a martelo, e no seu relacionamento com as pessoas da terra, o seu rosto socorria-se muitas vezes dessas duas feições. Além disso, nunca o Papagaio fora a casa de alguém. Todos o visitavam na sua casa. Por esse motivo, quando, de tarde, o Papagaio se dirigiu à cabana do Pipocas com um sorriso de feroz animal estampado no rosto, as crianças desataram a fugir para os pátios e puseram-se a espreitá-lo por detrás dos muros, os cães meteram o rabo entre as pernas e fugiram lançando grossos latidos e os homens, ao passar por ele, afastaram-se para o lado e fecharam os punhos para se defenderem de um doido. Nessa tarde o céu estava de cor cinzenta. O Sol, já há muito se tinha refugiado por detrás das nuvens escuras. O velho Rola, vendo o Papagaio sorrir, foi para casa e disse à mulher:

— Aquela besta acabou de tramar alguém e de o lixar. Tu vais ver!
   
O Papagaio estava feliz, pois levava dentro do porta-moedas um papel importante. Os seus dedos não largavam o porta-moedas vezes sem conta para lhe garantir que o documento ainda lá, se encontrava. Nessa tarde cinzenta, à medida que ia avançando, o Papagaio ia murmurando para si próprio:

— Ninho de corujas. Hei-de pôr cobro a essa peste dos amigos do Pipocas. Jamais lhes hei-de dar vinho fiado ou vender vinho em troca das coisas e ficar depois sem elas. Quando estão sós, não arrebitam cabelo, mas quando se juntam, parecem um bando de fariseus! Quando voltarem outra vez a fazer fajardices no monte, vão ver o que os espera. Hão-de saber que o Papagaio venceu. Pensam que me derrotavam, que me tiravam os tarecos de casa e a virtude da patroa! Hão-de ver que o Papagaio, o grande lutador, lhes vai dar água pela barba. Ah, sim, eles vão ver!

Assim murmurava o Papagaio enquanto ia andando apertando a mão no porta-moedas. Semelhante ao cinzento do tempo, o Papagaio aproximava-se da cabana do Pipocas. Lá dentro imperava a desolação. Os amigos não podiam alegrar-se nas cadeiras escaqueiradas, porque não havia de beber. Tinham trazido do vizinho o jornal sacado e estavam agora a ler apinhados em volta, e João-Ninguém, que viera visitá-los, contava as últimas da semana.

— Nino Cardoso — disse — já não é chefe na brigada da noite. Esta manhã, o comando distrital mandou-o para as multas.
— Eu até curtia ele — disse Catanada. — Quando um homem estava em apuros, o tipo trazia-lhe um baralho de cartas. E sabia mais truques do que cem jogadores juntos. Porque é que ele foi recambiado?
— É isso que vim cá dizer-vos. Como sabem, Nino Cardoso esteve muitas vezes na patrulha e era um guarda às direitas. Sabia como poucos como se deve controlar um quarteirão. Punha tudo a andar como devia ser. Só tinha um pequeno defeito. Quando bebia uísque, esquecia-se de que era chefe e embebedava-se, e depois tinham de levar com ele.

Os amigos concordaram com um aceno de cabeça.

— Eu sei — disse Pascácio. — Já ouvi constar que é difícil falar-lhe na ocasião. Esquece-se.
— Pois é — continuou João-Ninguém — Mas tirando esse aparte, é o melhor chefe que eles já lá tiveram. Bem, foi isto que vim cá dizer. A noite passada, no Porto, o Pipocas tinha uísque que chegava para uma dúzia de homens e bebeu-o todo. Depois pôs-se a escrever versos na parede. Estava carregado de dinheiro e comprou flores para oferecer a uma bailarina. Mas a bailarina não era uma mulher; era um travesti. De modo que teve de fugir.
— Mas o Pipocas — exclamou Catanada —, que anda por lá a fazer?
— O Pipocas — retorquiu João-Ninguém —, o Pipocas curte também, mas não para quieto em lado algum.

Os amigos suspiraram, aliviados.

— O Pipocas está a portar-se mal — disse Catanada com olhar grave. — A ser assim não vai dar bom resultado. Sempre gostava de saber onde é que ele foi arranjar o dinheiro?

Foi nesse preciso momento que o vitorioso Papagaio arrastou a porta e avançou a passos de general pela entrada da cabana. Irrequieto, o cão de Faísca, levantou-se do canto e aproximou-se, rosnando. Os amigos ergueram a cabeça e interrogaram-se uns aos outros. Artur Bófia agarrou no cabo da vassoura que ultimamente tinha sido utilizada contra ele. O andar pesado e confiante do Papagaio ressoou no chão da cabana. E, ele surgiu, sorridente. Não se mostrou fanfarrão, bem pelo contrário, mostrou-se tão amável como um gato e deu-lhes umas leves festinhas, como faria um bichano a brincar com uma mosca.

— Ah, meus queridos amigos — disse com suavidade, ao ver o receio instalar-se-lhes no rosto —,meus queridos amigos e fregueses! O coração parte-se-me ao meio por ter de dar tão amargas notícias àqueles a quem eu adoro.

Catanada ergueu-se de um salto.

— É sobre o Pipocas, está ferido? Diz-nos.

O Papagaio abanou suavemente a cabeça.

— Não, meus queridos meninos, não é sobre o Pipocas. O meu coração sofre, mas sou obrigado a dizer-vos que a partir de hoje sou o novo proprietário da cabana.     

Os olhos abriram-se-lhe de tamanha satisfação ao ver o espanto que as palavras tinham causado. Os amigos ficaram de boca aberta até trás e arregalaram os olhos de estupefação.

— Compraste a cabana do campo? — perguntou com delicadeza Catanada. — Como é que fizeste para comprar a cabana?

O Papagaio meteu demoradamente a mão no bolso e retirou do porta-moedas, o precioso documento, dançando com ele à frente dos olhos.

— Está aqui o documento da venda. O Pipocas veio ter comigo a noite passada e vendeu-ma por cinquenta contos. É o que se chama um contrato de venda.

Pascácio aproximou-se dele, calmamente.

— Embebedaste-o, com o dinheiro. E ele não soube dizer que não. Fala, boi da Índia?

O Papagaio riu com cinismo. (Põe-te à légua, Papagaio. Não vês que essas mulas te olham de esguelha? Lá estão eles em frente à porta, prontos para o que vier. Repara como os dedos do Artur Bófia perdem a cor ao agarrar qualquer coisa dura por dentro do casaco.) O Papagaio prosseguiu:

— Vocês percebem pouco de negócios, seus insurretos de uma figa. — O sorriso transformou-se-lhe e toda a crueldade iluminou-lhe o rosto. — Quando sair daqui, vou à polícia apresentar...

Quando as últimas palavras lhe saíram da garganta, as gargalhadas dos amigos fizeram semelhante estrondo, com a agravante do bater dos pés no chão. Depois, o Papagaio, ouviu abrir a porta da cabana.  

— Riem-se! — berrou. — O sangue congestionou-se no pescoço e no rosto. — Riem-se, um raio vos leve! Vazem daqui.

Catanada, que estava defronte dele, tinha um ar espantado.

— Vazem daqui! — perguntou com suavidade. — Que vazar é esse de que falas com tanta agressividade?
— Isto é o meu futuro lugar de repouso. Tenho planos para a cabana. Só preciso comunicar à polícia.
— Que eu saiba isto é pertença da comarca — replicou Catanada. — Pascácio, sabes se a comarca pôs a cabana à venda?
— À venda? — perguntou Pascácio. — Será a cabana do amor ou a cabana do desamor?

Catanada prosseguiu:       

— João-Ninguém?
— Esse tipo é capaz de estar doente da moelinha — respondeu João-Ninguém.
Very nice? Sabes alguma coisa acerca da venda da cabana?
— Acho que ele está mas é a sonhar — retorquiu Very nice numa voz galvanizada — e é demasiado cedo para se estar a sonhar.   
— Artur Bófia?
— Eu cheguei agora mesmo.
— Faísca?
— Ele não sabe o que diz. — Dirigiu-se ao cão: Sabe?

Catanada voltou-se para o erubescido Papagaio.

— Foste enganado, meu amigo? É possível que tu não soubesses que isto aqui é propriedade rural do concelho, mas, quando fores à polícia queixares-te, ninguém, a não ser tu, vais ser motivo de chacota. A gente faz poiso aqui; mas não somos donos nenhuns. Talvez fosse melhor ires para a adega e pores a cabeça a descansar.

O Papagaio estava demasiado baralhado para continuar a discutir. Os amigos rodearam-no, acompanharam-no até à porta e fizeram-no sair rapidamente, envolto na sua derrota. Depois, olharam uns para os outros e puseram-se a rir às bandeiradas; o humor voltara de novo e, desta vez, abrira uma brecha através da aldrabice. Os amigos voltaram para casa do Pipocas. Sentaram-se, contentes, no quintal.

— Cinquenta contos — disse Catanada. — Bem gostava eu de saber o que é que o Pipocas fez com tanto dinheiro.

O humor, uma vez aparecido na sua primeira edição, varreu de dentro o pessimismo. As conversas da ordem aqueceram o ambiente e os ânimos vieram ao de cima. A frescura instalara-se nos amigos.

— Fê-la bem — disse Pascácio, sorrindo. — O Pipocas devia receber uma medalha por fazer vendas destas.
— Para contrabalançar o Papagaio passamos a comprar sempre lá as nossas bebidas — propôs Very Nice.

Um periquito veio pousar na terra e maneou as penas, fugindo a seguir. Os cães, no pátio ao lado, cheiravam o chão, pensativamente, aqui e ali, e abanaram o rabo. Ao ouvirem o ruído de passos vindos da rua, os amigos ergueram as pestanas e depois puseram-se de pé exibindo sorrisos de boas vindas. Pipocas e Nino Cardoso, cada um deles com dois bons sacos, abriram o portão. Very nice correu para ambos e trouxe o saco do Pipocas. Os amigos repararam que o Pipocas apresentava um aspeto fatigado quando pôs as garrafas na mesa.

— Chegar até aqui faz suar — disse.
— Nino Cardoso — gritou João-Ninguém —, ouvi dizer que tinhas sido transferido para as multas.
— Fui — respondeu Nino Cardoso, exausto —, e ainda lá estou.

As tijelas encheram-se de uísque velho. Uma grande satisfação saiu do peito dos amigos, por tudo ter terminado. Catanada, bebeu um bom duplo.

— Pipocas — disse —, aquele boi do Papagaio veio ao bocado à cabana com aldrabices. Trazia um documento assinado e disse que tu a tinhas vendido.

O Pipocas ficou engasgado.

— Onde é que se viu fazer uma venda num papel tipo merceeiro rubricado com uma rúbrica? — indagou.
— Bem — continuou Catanada, — nós sabíamos que era grupo, de maneira que o informámos. Tu não te vais zangar com ele, pois não?
— Não — respondeu o Pipocas, metendo o copo à boca e acabando com aquela garrafa.
— Era bom termos qualquer coisa para empurrar a bebida — observou Very nice.

Pipocas sorriu com doçura.

— Já não me lembrava. No fundo desse saco há várias caixas de aperitivos e um salpicão e pão.

Tão grandes foram o apetite e o prazer de Catanada que se levantou para fazer um breve discurso.

— Onde é que há uma alma tão boa com o nosso amigo? — declamou. — Enche-nos de gozo no seu apartamento, partilha connosco a boa mesa e o seu bom uísque. Oh, que homem dum caraças, que amigo tão querido!

Pipocas ficou embaraçado e, pondo os olhos no chão, exclamou:

— Não tem importância. Os amigos são assim.

A alegria de Catanada, porém, era tão grande que abarcava o paraíso e até mesmo o inferno.

— Um dia destes temos de prazentear com uma boa despesa o Papagaio.     

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