CONTOS
DE RATAZANA
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14.
Episódio
Eis como, da boa vida em casa do
Pipocas, de uma caixa de pó-de-arroz dado como presente, das histórias dos
irmãos Trindade e do amor frustrado do jovem Ricardo
Poucos
eram os habitantes do Marco de Canaveses que usavam relógios de boa marca de
parede ou de bolso. De vez em quando, um dos amigos arranjava um relógio de
alguma maneira muito afamado, mas só o tinha durante o tempo suficiente para o
trocar por qualquer outro que realmente se sentisse agradado. Na loja do
Pipocas, os relógios tinham boa procura e havia dois escalões, mas apenas como
objetos de venda. Para uso normal havia o relógio vulgar. Era mais barato e de funcionamento
prático, do que um relógio de marca afamada. No
Verão, aos domingos de manhã, quando as pessoas iam à feira dos selos, nas
imediações da Caixa do Povo, é certo e sabido, que era uma bela altura para uma
pessoa trocar ou comprar um relógio de outra marca, mais em voga, nos
vendedores ambulantes que por lá se cruzavam. Quão melhor não é uma marca
mundial? É uma bela ocasião em que nem as posses de uma pessoa derretem nos
bolsos nem a bondade tem interrogações por não levar nada.
O
Faísca e o cão seguiam, firmes e seguros, no seu trajeto habitual para o
trabalho. A loja do Pipocas só abria passado três horas depois de o Faísca
passar por lá. Quando o Pipocas fechou a loja, o dia ainda estava claro. O Sol
já se tinha refugiado para lá do monte. O tempo tinha um cheiro seco e
agradável, como o perfume das flores. E quando chegava o momento do grupo se
juntar, havia sempre qualquer coisa para se contar, e as boas notícias
guardavam-nas para essa ocasião.
—
Vi o Arnaldo Curto — disse o Pipocas, — saia da casa da Xanana Maluca. Não há
um dia que aquela mulher não se meta em barafundas.
—
Só sabe viver assim — comentou Pascácio. — Quem sou eu para atirar a primeira
pedra, mas em dado momento penso que a Xanana é um bocado atiradiça de mais. Só
lhe acontecem duas coisas na vida: amor e sarilhos.
—
Mas que é que vocês esperam? — disse Catanada.
—
Nunca tem paz nenhuma — lamentou Very
nice.
—
Também a escorraça pela porta fora — retorquiu Catanada. — Dar-lhe a paz é acabar
com ela. Amor e sarilhos... Está visto. Ah, mas não esqueçamos a pinga, porque
aí está uma mulher sempre fresca, sempre feliz. Mas que é que aconteceu à
Xanana?
—
Vocês conhecem bem a Xanana — começou. — Há homens que algumas vezes lhe levam
presentes, um frasco de água-de-colónia, um par de cuequinhas de fio dental ou
um sutiã. Não passam de pequeninas coisas, mas Xanana aprecia-as. Ora bem,
ontem, salvo erro, Manuel Chapadas levou-lhe um pó-de-arroz, uma caixita assim
brilhante e bonita, que ele comprara num salão de beleza. A Xanana ainda deitou
um pouco de pó-de-arroz na cara quando ele se envolveu com ela, mas ele foi-se
abaixo antes da Xanana ter despertado.
«Como
sabem, dinheiro é coisa que não falta ao Chapadas. Disse ele à Xanana: Não há
nada melhor do que uma mulher ter um cheiro agradável. Sabe bem. Este pó aqui é
muito bem-cheiroso. Vais gostar muito dele.»
Os
amigos sorriram francamente e Catanada disse:
— Chapadas tem artes de Don Juan. Vejam
lá o que ele não fez com o pó-de-arroz... gozo e amor. Um dia destes tenho de
ir ter com ele.
Mas
os amigos viam bem que Catanada estava era com inveja dele.
—
Anda lá com essa história do pó-de-arroz — disse Pascácio.
—
Bom — disse Catanada, — a Xanana ficou com o pó-de-arroz e mostrou-se amável
para com o Chapadas. Disse-lhe que quando ficasse cheia do pó-de-arroz, ele podia
dar outro presente qualquer. Depois, o Chapadas foi-se embora e a Xanana guardou
o pó-de-arroz na cómoda para quando fosse visitada pelos amigos especiais.
«Depois,
veio um amigo daqueles especiais visitá-la e a Xanana deixou que ele abrisse a
caixa do pó-de- arroz e a borrifasse toda com ele. A certa altura o Barbas, como
era apelidado, beijou a rata de Xanana. Nem imaginam. A língua entrou por ali
dentro à procura do prazer. Os lençóis e os cobertores voaram e as almofadas
abafaram os gritos. E, depois, quando o gozo se foi embora, o Barbas ficou com
a cara como um palhaço. Agora a Xanana anda endiabrada e diz que há-de comprar
mais caixas de pó-de-arroz iguais à do Chapadas.»
—
Ai a viciada! — disse Pascácio — O prazer é mesmo assim, quando corre conforme
os nossos desejos. Já quando o jovem
André se estreou, foi do mesmo jeito.
O
rosto dos amigos do Pipocas alterou, interessadamente, na direção de Pascácio.
—
Vocês devem saber aquém eu me refiro, ao jovem André — começou Pascácio. —
Parece mesmo um cobói, tronco largo e
pernas compridas; mas não é lá grande coisa a pinar. Nas rapidinhas é muitas
vezes atirado ao tapete. Pois bem, o homem não quer outra coisa senão que o convidem.
Quando há noitadas, gosta de levar a pequena; nos quartos é sempre o primeiro a
dizer: «Vamos a ver se aguentas com esta!» Não há duvida, está ali um homem que
quer ser um grande cobridor, que as mulheres olhem para ele, que o desejem e,
até que gostem de fazer amor com ele.
«Porventura
vocês se lembram daquela vez na receção da residencial em que ele armou uma
cena monumental. Ia acompanhado, muito sério, com uma grande cavalona loira.
Mesmo em frente do balcão da receção, a doida da cavalona puxou a saia para
cima e o André topou-a sem cuequinhas e deu-lhe uma chupadela no grelo, que ela deu
um grito e foi deitar-se no sofá, aos tremeliques.
Catanada
riu-se, apanhou um pauzito e atirou-o contra a perna da cadeira.
—
Lembro-me das cenas dele — disse o Pipocas. — Esse André não tem os parafusos
todos. O Ratazana é que o conhece
bem, quando vocês falarem com ele. Às vezes põe as gajas na mesa do André e os
clientes pensam que foi ele que as chamou e dizem: «Ora aí está um sujeito que
sabe do seu ofício.» Não é assim tão fácil apanhar gajas quando se faz por
obrigação.
Very nice, que tinha estado a pensar de cabeça encostado ao braço, comentou:
—
É pior falarem mal de uma pessoa do que lhe darem com uma paulada. Toda a gente
gozou daquele estouvado amalucado do jovem André até ele se mostrar. Mas depois
ficaram com inveja de se terem divertido dele. Essa história do André é
reinante. É também uma história que dá vontade de rir.
—
Ouvi contar coisas a respeito dele — disse Catanada —, mas são tantas que nem
sei por onde começar.
—
Bem — disse Very nice, — eu vou conta-la e vocês logo veem
se são engraçadas ou não. Quando eu era puto, costumava brincar com o Trindade.
Era um bom miúdo e esperto, mas andava sempre à procura de se meter em
sarilhos. O clã era composto por cinco pessoas. O pai, a mãe, e três irmãos. A
maioria dessa gente já cavou daqui. Um dos irmãos perdi-lhe o rasto, o outro está
na Madalena e o outro foi apanhado por uma peixeira da Afurada por lhe andar
sempre a comprar amêijoas.
«De
modo que me dei sempre bem com o Trindade e o irmão mais novo Ricardo. Trindade
cresceu comigo e os sarilhos nunca o abandonaram. Passou uma temporada no
serviço noturno e depois voltou para casa. Aos sábados apanhava uma liberdade e
ia dormir para a praia até segunda-feira. O irmão mais novo era um daqueles
rapazes de boas intenções e todas as semanas se enrolava com uma cachopa. De
modo que estavam quase sempre os dois à distância. O mais novo Ricardo
sentia-se só quando não tinha o Trindade ao pé de si. Adorava o irmão. Tudo o
que o irmão mais velho fazia, o mais novo fazia também, mesmo quando já tinha
passado dos limites.
«Talvez
vocês se lembrem da Graça Gracinha — continuou Very nice. — Não era uma rapariga lá muito séria. Não tinha mais de
dezassete anos quando uma rusga policial veio ao Porto e ela ficou logo retida
por não ter documentação. Era gaiata e esperta e não deixava ninguém ficar sem
levar resposta. Parecia andar constantemente a fugir dos polícias e os polícias
bem seguiam no encalço dela. E algumas vezes levavam-na. Mas uma pessoa não lhe
podia dirigir palavra quando ela estava com os azeites. A moça parecia ter o
demónio dentro dela.
—
Eu sei disto — prosseguiu Very nice —
porque também me atirei a ela; eu e o Trindade. Só que o Trindade tinha outro
feitio. — Very nice olhou os amigos
bem nos olhos fincando esta tese.
«Trindade
desejava tanto o que Gracinha tinha que uma noite saiu em sua defesa e deu um
pontapé nos tomates dum polícia e fugiu pela rua abaixo como os corredores de
cem metros livres. Não conseguia deixá-la ser injuriada e agiu. O irmão foi
falar com a Gracinha e disse-lhe: “Se não fores simpática para com o Trindade
ele desaparece.” Ela, porém, limitou-se a sorrir. Não era lá muita coisa.
«Que
é que vocês pensam que eles depois fizeram? — continuou Very nice. — Trindade
foi apanhar sol para a praia e deu apalpões a Gracinha, chochos grandes de
artista, carícias, festas. Depois, pegou-lhe
pelas ancas e sentou-a no colo e em seguida, deu-lhe uma varada ao som das
ondas.
«Gracinha
passava-se com tanta marmelada, mas vinha-se e chorava como uma criança. Vocês
deviam ter ouvido como ela gemia. Uma pessoa ficava com ganas de lhe dar outra varada
e, ao mesmo tempo, de a calar. Eu imagino como era. Andei na cuca dela e o
Trindade disse-me, também. Só que, ao Trindade dava-lhe cabo dos nervos. Já só conseguia
dormir com comprimidos. Um dia confessou-me: “Se a Gracinha quiser ser minha
amante, deixará de ter coragem de se meter nos copos, pois nessa altura é
comprometida e é um crime desrespeitar o amante.” De maneira que pediu-a para
ser sua amante. Ela desatou a beber daquela maneira maluca que dava vontade de
a mandar àquela parte.
«Oh!
O Trindade ficou desnorteado. Foi para o quarto, prendeu uma corda a uma perna
da cama e pôs-se à espera dela. Quando a Gracinha entrou, deixou-a despir-se;
em seguida colocou a corda à volta dela e atou-a à cama. Depois fechou a porta
e foi-se embora. Mas ainda se passaram duas horas antes de Gracinha conseguir
se libertar das cordas e três dias antes de poder insultá-lo.»
Very nice intervalou-se. Via, com alegria, que os seus amigos
acompanhavam a história com interesse.
—
A coisa era deste estilo.
—
Mas a Graça Gracinha foi amante do Trindade! — exclamou Catanada, excitado. —
Eu conheço-a. É uma boa dona de casa; nunca nos deixa sair sem nos oferecer de
beber e vai à missa todos os domingos.
«As
coisas também se compuseram da maneira que o Trindade tinha desejado. O
confessor disse a Gracinha que fosse uma boa mulher e ela foi uma boa mulher.
Deixou de andar nos copos e de insultar os homens. Como não bebia, deixaram de
se intrometer com ela. Trindade continuou a ir dormir para a praia e, passado algum
tempo, arranjou lá um emprego para segurança de condóminos. Não tardou muito a
entrar nos eixos. Como veem, esta história é magnífica. Era digna de ser apresentada
nos palcos do cinema por um realizador se terminasse aqui.»
—
Pois era — disse Catanada com olhar sério. — Esta história também nos ensina
algumas coisas.
Os
amigos acenaram com a cabeça em sinal confirmativo, pois adoravam de uma
história emotiva.
—
No Douro conheci uma rapariga como essa — disse o Pipocas. — A única diferença
é que não se modificou. Chamavam-lhe a rapariga da segunda escolha. «A
Senhorita Segunda Escolha», era o nome que eles lhe davam.
Pascácio
fez um gesto com a mão:
— A
história ainda não terminou — disse. — Deixa lá o Very nice contar o resto.
—
Sim, ainda não terminou. E, no fim, a história não é lá boa como vocês imaginam.
Ricardo passava já dos vinte e cinco anos. Trindade e Gracinha foram morar para
uma casa isolada. Ricardo ficou sozinho, pois acabara com a peixeira. Não tinha
sossego nenhum. Passava a vida na estroina, embriagado; até que um dia conheceu
uma chavalita chamada Celina. Tinha dezasseis anos e era mais bonita do que a
Gracinha. Todos os clientes da cervejaria andavam atrás dela como se fossem
lobos. Então, o que se tinha passado com o Trindade, deu-se com o Ricardo. O
desejo corrompia-lhe o corpo todo. Bebia mais do que comia. O olhar ficou
estrábico e ganhou aquele aspeto alarmado que os fumadores de droga têm.
Enviara-lhe chochos atirados de mão, mas ela ria-se dele. “Vem cá, meu
passarinho, vem cá ao teu príncipe.” Ela não parava de fazer chacota.
«Como
vendia livros sempre que arranjava uma promoção guardava-a em presentes para a
Celina, magazines e agendas. Pagou-lhe um concerto de música ao ar livre.
«Então
o Ricardo contou ao Trindade o que se passava. Trindade riu-se também. “Meu
tolo”, disse, já tiveste na tua frente tanta rapariga. Não andes atrás de
miuditas que sabem mais do que tu.” Mas aquilo de pouco lhe serviu. Ricardo
ficou louco de desejo. Esses Trindades é gente de sangue na guelra. Escondia-se
nas esquinas para a ver passar. O coração saltava-lhe do peito.
«Ela
não fazia outra coisa senão esquivar-se, e Ricardo estava quase paranoico. De
maneira que agiu em conformidade. E, assim, pediu-a para sair com ele. Ela
riu-se como nunca e, sacudindo as saias, fez-lhe sinal de never para o afinar. Era um diabinho, aquela miúda.»
—
E ele um idiota — disse Catanada com descaramento. — O dever dele é meter-se
com raparigas da sua idade, e não chavalitas.
Very nice, arreliado, prosseguiu:
—
Os Trindades são irresistíveis; aquece-lhes a veia.
—
De qualquer das formas, foi incorreto. Foi uma vergonha para o Trindade — disse
Catanada.
Pascácio
voltou-se para ele.
—
Deixa lá o Very nice contar. É a
história dele e não a tua. Um dia destes contas a tua.
Very nice mostrou-se grato pela intervenção de Pascácio.
—
Como ia dizendo, Ricardo não podia com aquilo mais, mas não era capaz de mudar
fosse o que fosse. Não era como o Catanada. Como não tinha jeito para inventar
nada de novo, deixou aguardar uma oportunidade.
«Vocês
devem saber — prosseguiu Very nice —
que lá no quarteirão há uma hospedaria. Uma tarde, Ricardo convidou Celina a
dar uma volta no carro com ele e levou-a até lá. Depois, esperou até a
convencer a uma rapidinha numa desportiva. Viu o tempo passar. Passou o braço à
volta da cintura dela e puxou-a bruscamente para si. Ele a fazer isto e ela a retribuir-lhe
com uma sonora galheta.»
Largos
sorrisos surgiram no rosto dos amigos. Algumas vezes, pensaram, a vida tinha coisas
do arco-da-velha.
—
Ricardo mal se conteve — continuou Very
nice. — Disse de si para si: «A miúda é capaz de andar por aí atrás de
algum, mas isso não dou.» Só passado um minuto é que abriu a porta da
hospedaria.
Very
nice olhou à volta. Os
largos sorrisos mantinham-se em foco.
—
Vocês estão a topar — disse Very nice
— a coisa é engraçada, mas também tem o seu quê.
—
O que é que a Celina disse? — perguntou Catanada. — Acedeu ao impulso e mudou
de procedimento?
—
Não. Não mudou nada. Ricardo aguentou-se e ela mandou-se. Mandou-se também, mas
ficou fulo. E disse para si mesmo: «Que miúda parva ela me saiu. Uma noite
destas vai ser ela a puxar-me para a levar para o pinhal.» Depois Ricardo entrou
no carro sem ela.
Catanada
queixou-se:
—
Essa história não vale. Tem rodriguinhos a mais e podem tirar-se dela demasiadas
lições, e alguns delas são contraditórias. É uma história que não vale a pena
guardar na memória. Não se chega a conclusão nenhuma.
—
Eu atino com ela — disse Pascácio. — Atino com ela porque não tem nenhum
sentido à-priori; contudo, parece que realmente quer dizer alguma coisa, embora
eu não saiba bem o quê.
A
manhã já ia a meio e o ar estava quente.
—
Que é que vamos comer? — disse Pascácio.
—
Na adega há lá um sável de escabeche — observou o Pipocas.
Os
olhos de Catanada reluziram.
—
Estive a pensar numa coisa — disse. — Quando eu era pequeno vivia nas férias
com o meu tio ao pé do elétrico. Todos os dias, quando o elétrico passava, os
meus amigos e eu pulávamos por trás e íamos à boleia e o guarda-freio
enxotava-nos com correia. Havia alturas em que o elétrico enchia de passageiros
que aí ninguém nos enxotava. Pensei agora que talvez a gente pudesse comer à
borla na adega. Quando o empregado se aproximar, chamamos nomes uns aos outros e
distribuímos galhetas por todos. Como é que o empregado pode responder-nos?
Atirando-nos com os pratos ou com as cadeiras? Não. Só pode é deixar-nos sair em
grande.
Pascácio levantou-se cheio de contentamento.
—
Ora aqui está uma bela ideia! — exclamou. — Isto é que o Catanada é um génio! O
que é que a gente fazia sem ele? Vamos lá; eu sei onde há um grande empregado
medroso.
—
E o sável é o meu peixe predileto — disse o Pipocas.
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