Saturday, October 1, 2011





Prefácio
    …



Esta é a história de Pipocas, dos seus amigos e da sua herança. Esta história conta como os três se tornaram inseparáveis, de tal modo que, na terra de Marco de Canaveses, quando se comenta da herança de Pipocas, não se tem em ideia uma avaliação tão aproximada do valor real que ela engrossa. Esta é a história de como esse grupo de rapazes se constituiu, de como cresceu e se transformou numa sábia e inteligente organização.

Esta história trata das façanhas dos amigos de Pipocas, do bem que praticaram, das suas borgas e dos seus sacrifícios.

Em Marco de Canaveses, essa pequena povoação do distrito do Porto, sabem bem estas coisas, passam-nas de umas para as outras e, normalmente, acrescentam-lhe uns pós. É bom que este ciclo seja anotado no papel para que, um dia mais tarde, os estudiosos, ao ouvir contar as lendas, não possam dizer, tal como fazem do poeta Bocage, do Gungunhana, e de Zé do Telhado: «Não houve nenhum Pipocas, nem nenhum grupo de amigos de Pipocas, nem nenhuma herança, nem nenhumas casas.

Pipocas é um ídolo da População e os seus amigos são símbolos primitivos da fortuna, do azar e da sorte. Esta história destina-se a evitar agora e sempre, os sorrisos trocistas das bocas de amargos eruditos.



CONTOS DE RATAZANA
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1.Episódio
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                                           A TRUPE DE PIPOCAS

                          Ao chegar a casa vindo das vendas, Pipocas viu-se
                               a braços com a morte do pai que lhe deixou
                           uma herança; e logo pensou proteger os amigos


Quando o Pipocas, depois de se tornar adulto, regressou à terra, soube que tinha herdado uma fortuna. O patrício, isto é, o seu pai, tinha falecido e deixara-lhe uma grossa maquia e propriedades, em Marco de Canaveses e no Porto. Ao ter conhecimento disso, Pipocas sentiu-se um tanto vergado sob o peso da sua responsabilidade de proprietário. Antes mesmo de ir ver a sua conta bancária levou uma prostituta para o apartamento e deu-lhe três fornicadas de seguida sem tirar fora… O peso da responsabilidade deixou-o e o pior de si próprio veio à tona. Berrou, deu alguns apalpões num bar de alternos da Rua Freire de Andrade e teve duas faíscas nas vitoriosas conquistas. Ninguém se preocupou muito com isso. O seu gordo corpo e pesado dentro do seu potente carro acabaram por levá-lo ao porto do rio, onde, àquela hora nocturna, os seguranças da noite, de fatos pretos, estacionavam à porta duma casa de diversão a fim de manterem a ordem. Uma antipatia de momento, dominou o bom senso de Pipocas. Fez-se aos seguranças: insultou-os:

— Corja de rufiões; escória do cais da ribeira, azeiteiros, filhos de azeiteiros, — E gritou: — Fuck you, os dois!

Pôs a mão de fora e fez um gesto obsceno de dedo levantado. Os seguranças limitaram-se a arregaçar os punhos num sorriso, trocaram o passeio e disseram:

— Olá, Pipocas! Quando é que nos pagas um copo? Vem ter connosco agora. Temos sardas novas.

Pipocas sentiu-se na merda. Berrou:

— Ponde as línguas numa amêijoa! Os seguranças retorquiram:
— Adeus, Pipocas. Vai nanar.

Pipocas ficou na lua. Voltou à rua Freire de Andrade, e, à medida que a subia, ia lançando blasfémias aos transeuntes. Na segunda rotunda, um porteiro chamou-o. A grande simpatia que Pipocas sentia pelos homens das portas fê-lo parar de repente. Se não tivesse parado depois de o porteiro o chamar, não teria perdido umas seis horas. Mas, assim, passou, um tempo sentado na mesa dum cabaré do Porto, ora a fazer chupões marcantes nas camareiras ora a pensar na vida que levava nas vendas. Muito gozo lhe dava o tempo que passava naquelas casas do prazer. De vez em quando, lá punham uma striper a entreter a noite, mas a maioria das vezes o barulho mantinha-se estagnado e Pipocas ficava sisudo. A princípio, as camareiras ainda o chateavam um pouco, mas como se foram habituando ao gosto da sua língua, e ele se foi acostumando às suas carícias, passaram a viver em comunhão. Pipocas arranjou então um joguinho sarcástico. Dava um chupão numa camareira, pagava-lhe uma bebida, fazia-a desandar e chamava a «next». Em pouco tempo tinha a mesa decorada com copos escarrapachados. Depois, pegava neles e punha-os debaixo do sofá. O empregado ficou escandalizado, mas não se queixou, visto Pipocas ter a despesa já incluída na sua conta. Uma hora em que havia muito público na sala, a striper entrou na mesa de Pipocas e bebeu duas garrafas de Moêt et Chandon. Minutos depois saiu para ir dançar para a pista e Pipocas foi com ela. Era alegre a dança. Deixaram-se ficar aos pulos na pista do cabaré, onde dançaram “Ó Malhão, Malhão”, até o disco-jockey trocar de música e os por dali a andar. Quando, cerca das seis horas da manhã, o sono intermitente do cansaço o abanou, Pipocas decidiu pagar a despesa e enfiar-se no apartamento durante o dia para escapar ao calor. Deitou-se ao comprido e espreitando por dentro dos lençóis como uma raposa ciente de estar no melhor sítio. Ao meio da tarde, recuperadas as forças que de si despendera, saiu do apartamento e foi tratar da vida. E fê-lo sem problemas. Foi sentar-se num banco de um snack-bar.

— Tem aí carne de vazio para fazer um prego no pão para um gordo? — perguntou ao cozinheiro.

E, enquanto o refinado cozinheiro cortava o bife, Pipocas comeu dois ovos cozidos, dois bolinhos de bacalhau, uma vasilha de batatas fritas e embutiu dois príncipes.

— Um é pouco. Faça já outro — disse.
— Não perde tempo. Eu faço-os quantos você quiser.

Pipocas sentiu-se mais tranquilo em relação ao apetite que trouxera. Se o apetite o devorava daquele modo, nesse caso estava no local certo. Pegou no carro, deu voltas à cidade e ultrapassou uma mão de sinais vermelhos e entrou numa loja de conveniências para comprar uma garrafa de uísque e salgadinhos, e retirou-se para a terra a fim de tratar de negócios. O fim da tarde estava azul vivo e quente. O sol, qual brando, estava fixo dos espaços celestes que, marcava os limites de Marco de Canaveses. Pipocas levantou os olhos e dirigiu o carro para o refúgio da cabana do campo. Adiante topou um indivíduo de andar apressado e logo reconheceu o passo apressado do seu amigo Catanada. Pipocas era um amigo do seu amigo, mas lembrou-se de que comprara uma garrafa de uísque e umas sacas de salgados e ficara sem dinheiro, menos os dois cheques dos clientes.

«Vou fingir que o vou atropelar», pensou e decidiu. «Vai ficar como se estivesse a afogar cheio de ganas e de outras coisas mais.»

Então, de repente, Pipocas reparou que Catanada apertava maciamente a mão contra o pescoço.

— Olá, Catanada, Catanadazinha! — gritou.

Catanada atrasou mais o passo. Pipocas parou numa bolina desenfreada.

— Catanada, ó Catanada, amigo! Nunca mais perdes o vício de andar apressado?

Catanada olhou com admiração a surpresa e aguardou. Pipocas aproximou-se nas calmas, embora se notasse na sua voz uma entoação entusiasmada.

— Andei a pensar em ti, Catanada, ó Catanadazinho, amigo mais querido entre todos os amigos bons que eu tenho. Eu procurei-te porque tenho aqui dois pequenos cheques que os clientes me pagaram, e um saco de aperitivos e uma garrafa de uísque do outro mundo. Serve-te aqui, do meu lanche, ó Catanada querido.

Catanada encolheu os ombros.

— Sem problemas — murmurou, seco.

Entraram juntos na cabana. Catanada estava surpreendido. Por fim, parou e voltou-se para o amigo.

— Pipocas — perguntou numa voz quente —, como é que adivinhaste que eu tinha um apetite devorador debaixo da garganta?
— Apetite? — exclamou Pipocas. — Tu tens apetite? É capaz de ser bom para alguma velha histérica — prosseguiu timidamente. — Talvez estejas à espera que caia alguma do ar. Queres lanchar ou não? Eu sei sempre ao certo o que os amigos consomem. Eu não estou com muita sede. Fico muito feliz em te dar do meu uísque que aqui trago, dos salgadinhos, mas, com respeito aos meus cheques, conto contigo mesmo.

Catanada respondeu-lhe com firmeza:

— Pipocas, não me importa de cambiar os cheques, se não tiver para os dois, tenho para um. Põe aqui o uísque, Pipocas. Põe de maneira que eu o veja antes que tu o bebas todo.

Pipocas, então, trocou de conversa:

— Vou primeiro passar os salgadinhos para as tigelas e tu trazes os copos daquele móvel. Puxa para aqui as cadeiras. Vamos ficar onde a gente veja bem a porta.

Armaram uma mesa e comeram os salgados. O uísque descia rapidamente na garrafa. Depois de terem comido, sentaram-se frente um ao outro, bebendo pequenos goles, suavemente, como moscas moribundas, o líquido da garrafa. O calor desceu sobre eles e pôs-lhes as t-shirts escuras de suor. À sua volta a ventoinha refrescava levemente entre os móveis. Instantes depois a solidão baixou sobre Pipocas e Catanada. Pipocas pensou nos amigos que amava.

— Onde anda o Pascácio? — perguntou, acendendo um cigarro e deitando fumo para o ar. — No bairro, com a prostituta — respondeu a si próprio, ao mesmo tempo que mandava uma bola de fumo contra a parede e deixava estender as pernas, desalentado. — Com a prostituta do vício. Com a prostituta num bairro municipal. Dentro duma casa passam pessoas que não o vêem e não sabem que ele está ali.

Voltou de novo as pernas para cima.

— Onde anda o esponja do Very nice?— Na pub — respondeu Catanada. — O Very nice palmou uns patacos e foi embebedar-se no meio dos amigos; os patacos aqueceram-lhe, Very nice esticou e, tac!, está de cama. Agora está no piano a curá-la por duas semanas.

Pipocas esmagou a ponta do cigarro no cinzeiro e mudou de conversa, pois entendeu que havia assunto a mais. A solidão, todavia, ainda pesava sobre ele e exigia uma saída.

— Aqui estamos nós… — começou por dizer.
— … os nossos corações solitários — acrescentou Catanada, com prosa.
— Não, isto não é nenhum recital poético — disse Pipocas. — Aqui estamos nós, sem um mimo. Damos o cabedal ao manifesto e agora nem uma carícia para nos consolar.
— Nunca falaste tão acertado — acrescentou Catanada, solidário.

Sonhador, Pipocas encheu o copo até Catanada lhe tocar no cotovelo e lhe apontar a medida.

— Isto faz-me recordar — disse Pipocas — o caso de um azeiteiro que era dono de duas prostitutas de rua… — Ficou a olhar. — Catanada! — exclamou. — Ó Catanadazinho amigo! Já me esquecia. Recebi uma herança em dinheiro. E umas casas.
— De azeiteiros? — perguntou Catanada, esfrangalhado. — És um mentiroso e um regador — acrescentou.
— Não, estou a falar verdade. O meu patrício morreu. Agora, sou o herdeiro. O único.
— O único — retomou Catanada, realista. — Onde estão as casas?
— Aqui em Marco de Canavezes e no Porto.
— E essa herança em dinheiro chega para alguma coisa?

Pipocas levantou-se rapidamente, saturado pela comoção.

— Eh, pá! Tinha-me esquecido que tenho que ir ao banco.

Catanada continuou sentado em pause e imerso. O seu rosto tornou-se abatido. Atirou a ponta dum amendoim para o chão e observou as formigas aproximarem-se freneticamente por entre elas e morder. Durante uns minutos olhou minuciosamente para o rosto de Pipocas; depois, suspirou ruidosamente e tornou a suspirar.

— Agora acabou — disse melancolicamente. — Os belos tempos já lá vão. Os teus amigos vão ter pena, mas as penas não servirão de nada.

Pipocas pôs a garrafa no chão; Catanada agarrou nela e pô-la entre mãos.

— Mas agora acabou o quê? Que pretendes tu dizer com isso?
— Não é a primeira vez — continuou Catanada. — Quando uma pessoa é remediada, logo pensa: «Se eu fosse rico ajudava os meus amigos.» Mas venha lá a riqueza que lá se vai a vontade. É o que se passa contigo, meu amigo dos outros tempos. Agora estás em alta. Vais esquecer-te dos amigos que contigo partilharam o bom e o mau, até a solidão.

As palavras de Catanada tornaram-se tristes para Pipocas.

— Eu não sou dessa raça! — exclamou. — Eu nunca te esquecerei, ó meu bom amigo.
— Isso dizes tu agora — disse Catanada com indiferença. — Mas, quando tiveres o dinheiro à mão de semear, vais ver no foguete em que te tornas. Catanada continuará a ser um simples empregado do banco, ao passo que tu comerás com carrinhos de chá.

Pipocas ergue-se, trémulo, e encostou-se direito a uma cadeira.

— Catanada, juro-te por quanto é mais sagrado; o que tenho é para repartir. Enquanto tiver um tecto e nota no bolso para se gastar, o que é meu é teu. Dá um gole.

— Tenho de ver para crer — volveu Catanada, numa voz sem ânimo. — Se isso se passasse como dizes, o mundo ficava surpreendido. Havia de aparecer por aí milhares de escritores a escrever esta história. E, além disso, o uísque foi-se.


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