Friday, October 14, 2011










CONTOS DE RATAZANA
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2. Episódio

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        Catanada foi atraído pela ambição de alcançar uma
    posição de destaque, 
e renunciou a generosidade de Pipocas


Pipocas meteu Catanada no seu Renault, circulou ao ritmo desenfreado a distância até às Antas, no Porto, e só parou à porta da primeira casa. Ficaram em frente do prédio de tijoleira sem pinturas e olharam com admiração o imóvel, um prédio alto e esguio, com varandas por fora, e janelas com cortinas. No corredor, porém, havia uma grande palmeira enfiada num vaso coberto de areia e os halogéneos sobressaíam por entre as tábuas do tecto envernizadas.

— Esta é a mais pequena das duas — disse Pipocas. — Mas é a minha preferida.

Pipocas tirou o porta-chaves do bolso. Atravessou em passos pesados a gasta mármore e abriu a porta principal. O quarto estava tal qual ele havia deixado quando da última noite lá estivera. As roupas da cama com vestígios de alguém lá ter feito uma boa farra, e almofadas sem fronhas. Na mesa o calendário de Marco de Canavezes para 1980, a bandeira de seda no alto com a equipa do F.C. do Porto a olhar para a taça de campeão do último título ganho, o ramo de flores de papel colorido que figuravam nas jarras vermelhas, os apliques de luz indirecta e cestos cobertos de roupas, a cama, os maples de veludo meio sujos.


Catanada espreitou para dentro.

— Um quarto e peras — disse, ofegante. — E uma cama em redondo. Aqui é que a gente vai bombar, Pipocas.

Pipocas avançou rapidamente. Tinha boas recordações dali. Era o seu refúgio à socapa do patrício. Catanada dirigiu-se antes dele, direito à cozinha.

— Olha, uma cozinha em kitchenette! — exclamou. Fez rodar o fogão. — Não tem gás. Tens de chamar um técnico para pôr isto a funcionar.

Sorriram um para o outro. Catanada reparou que no rosto de Pipocas se instalavam os problemas que a propriedade ocasiona. Aquele rosto nunca mais estaria livre de preocupações. Agora que Pipocas tinha propriedades suas, nunca mais queria saber dos outros. Catanada tivera razão. Pipocas elevara-se num patamar acima dos amigos. O seu corpo tinha-se engrossado para superar à complexidade da vida. Pipocas, porém, deixou escapar um grito de lamentação.

— Catanada — disse amargamente. — Quem me dera que esta casa fosse ao pé da outra para que tu pudesses servir dela.

Enquanto Pipocas foi ao banco para lhe mostrarem o extracto, Catanada percorreu o corredor do apartamento que estava cheio de portas separadas umas das outras. Ali havia também caixas de vinho, maduros e verdes, e enlatados diversos que se encontravam em prateleira na dispensa. Catanada, olhou, por cima da vidraça para a marquise do vizinho e viu duas estudantes em topless a apanhar banhos de sol e, depois dum momento de reflexão, pegou nos binóculos e pôs-se à espreita.

«Elas vão gostar de saber que estão ao lado de dois galifões», pensou maliciosamente.

Pensou igualmente na forma de lhes armar uma ratoeira no caso de elas serem lésbicas e nada quererem com os homens.

«A gente aqui vai ser rei», disse novamente de si para si.

Pipocas voltou do banco inconformado.

— O banco não me quer dar o dinheiro.
— Porquê?
— Só me querer dar quando eu tiver vinte e cinco anos.
— Vinte e cinco anos? — disse Catanada com olhar severo.
— Sim. É o que está escrito no testamento.
— Mas tu podes pedir um adiantamento.
— Eu sei — retorquiu Catanada. — Talvez eu possa pedir um adiantamento ao advogado.

A tarde passou.

— Amanhã — disse Pipocas — voltamos cá e trazemos e fazemos umas prostitutas boas. Agora, tapa aí as vidraças para não se ver lá para fora.
— As vidraças? — exclamou Catanada, assustado. — As vidraças, não.

Catanada contou o seu plano acerca das estudantes do vizinho. Pipocas concordou logo.

— Amigo, estou satisfeito por teres vindo ver o apartamento comigo
. Agora, enquanto vou bater uma soneca, tens tu de ir buscar alguma coisa para se comer.

Catanada, lembrando-se do papel dos moços de recados, achou que isto não era correcto.

«Estou a ficar cheio dele», — disse tristemente de si para si. — «A minha paciência vai acabar. Não tarde muito que eu não passe a ser um ajudante de campo por causa deste semítico.»

No entanto, sempre saiu à procura de comprar qualquer coisa para comerem. Passado um quarteirão, perto da rua principal, deu com uma loja de assar frangos do monte, a girar no ferro. Os frangos tinham aspecto de serem novatos, pois eram pequenos, e as pernas, os pescoços e os peitos ainda estavam descobertos de penas. Talvez fosse por Catanada ter estado a pensar, entretido, nas estudantes do vizinho, que estes franganitos lhes despertaram a fome. Continuou na bicha a olhar para o assador, enquanto os frangos giravam à sua volta.

Catanada disse de si para si: «Coitaditas das franganitas sem penas. Porque não vos deixaram crescer mais quando estáveis no vosso tempo de miudagem. Os donos nem sempre são assim tão generosos para os coitados bichinhos.» E pensou: «Andais a dançar aqui no espeto, minhas pobres avezitas. Mas agora chegou a hora que alguém vos vai comer; e se fordes comigo, ainda é a melhor coisa que vos pode acontecer. Mas podeis ficar descansados que, desde as pernas, pescoço, asas e até os ossos, sereis comidos consoladamente. A vida foi demasiadamente cruel para vós, minhas pequenitas.»

Catanada fungava suavemente. De vez em quando, os frangos paravam no ferro, altura do empregado os pincelar com um molho especial, e voltavam outra vez a girar no ferro para a frente. Por fim, chegou a sua vez e Catanada pediu dois frangos como se quisesse ficar bem aviado. Quinze minutos depois, Catanada emergiu da rua e entrou no apartamento de Pipocas. Os pequenos frangos, assados e em bocados, iam embrulhados numa saca de plástico. Ainda a noite não tinha entrado, puseram a mesa com apetrechos. O arrastar da mesa produziu um ruído rasgado. Pipocas e Catanada, bem comidos e bebidos, sorridentes e felizes, estavam sentados voltados um para o outro, e riram-se constantemente. Tinham fumado um charuto de Havana, mas, agora, o fumo que voava através do espaço da cozinha espalhava-se adiante pelo aposento. Para ficar mais perfeito o convívio, o telefone começou a iluminar no mensageiro. Apenas alguns segundos passaram para cair algumas mensagens. Pipocas ouviu rápido de quem eram os envios.

— Está-se a ver que elas querem — disse Catanada. — Pensa nas rapidinhas que curtimos na Xangô. Isto aqui é que vai ser malhar.
— Pois vai. Durante anos curti nas pensões; agora tenho o apartamento. Não posso dormir aqui todas as noites.

Catanada detestava perder uma.

— É isso mesmo que tenho estado a pensar. Porque não metes aqui uma prostituta? — sugeriu.

Pipocas bateu violentamente com a mão na mesa.

— Ó, pá! — exclamou. — Porque é que eu não pensei nisso à mais tempo?

A ideia tornou-se mais atraente.

— Mas depois quem é que toma conta dela?
— Tomo eu. Dou-te dez contos para as despesas do mês.
— Vinte — insistiu Pipocas. — A prostituta consome mais. A despesa dobra.

Catanada aceitou, refilando. Mas teria aceitado de qualquer forma, só para não se separar do homem que tinha propriedades, e ele aspirava chegar a essa ascensão.

— Ficamos então acordados — finalizou Pipocas. — Alugas tu a prostituta. Eu hei-de ser um bom compincha, Catanada. Não te deixarei ficar mal. Vou mandar fazer uma chave dupla.

Nunca Catanada, exceptuando o ano que viera da tropa, tivera vinte contos. Porém, pensou, que antes de ter de pagar as despesas ainda se passava trinta dias, e quem sabe o que pode acontecer nesse prazo. Gingavam nas cadeiras, sorridentes, junto da mesa. Uns momentos depois, Pipocas saiu por um bocado, mas, no caminho, comprou uma garrafa de uísque e, utilizando a cabine telefónica, atraiu duas matronas prostitutas para seu apartamento. Catanada, que ia a sair da casa de banho, ouviu a algazarra e sorriu todo contente.

Pipocas caiu-lhe nos braços e pôs-lhe tudo à sua disposição. Mais adiante, depois de Catanada ter colaborado, dispondo de uma das prostitutas e de metade do uísque, houve uma bela cena de abandalho. Pipocas deu um peido e Catanada ficou com a camisa cheia de leite. As prostitutas assistiam à cena lançando risos histéricos e dando pontapés naquilo que estava mais a jeito. Por fim, Pipocas levantou-se do chão e deu uma patada no cu de uma das prostitutas, que saiu do apartamento a coxear como uma rã. A outra roubou dois copos de cristal e seguiu atrás da primeira. Durante alguns minutos, Pipocas e Catanada carpiram a traição das mulheres.

— Tu não conheces o calibre destas cabras do ataque — disse Pipocas prudentemente.
— Sei, mais ou menos — confirmou Catanada.
— Não sabes nada
— Sei, sei.
Aldra.

Uma paragem, embora não muito longa. Depois disto, Pipocas e Catanada sentiram-se mais relaxantes, mas nenhum se importou quem dera mais coça nelas, visto as excitações os terem estoirados. O silêncio sossegou-os, a respiração foi abrandando, à medida que os corpos arrefeceram. O sinal de televisão extinguiu-se na sua emissão. O apartamento ficou silencioso, envolta em paz.

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