Saturday, October 29, 2011


CONTOS DE RATAZANA
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3º Episódio
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Com o veneno da posse entranhado dentro de Catanada, logo o mal
triunfou provisoriamente nele



No dia seguinte, Catanada foi conhecer a amante no apartamento. Esta era precisamente aquilo que Pipocas dissera, mas mais alta. Lá estava a sua palmeira-do-brasil, de perna alçada sobre a colcha, a sua almofada cheia de bolinhas, as suas bugigangas diversas espalhadas na gaveta, os seus chinelos vermelhos e o pijama de calções curtos ao lado da cama.

Pipocas tornou-se uma pessoa importante na terra devida a ter casas para rendar e Catanada subiu um patamar por alugar uma prostituta. Não é possível saber se Pipocas contava receber qualquer aluguer ou tirava contra-partidas ou se Catanada contava pagar algum. Se contavam, ambos ficaram associados. Com tudo isto, Pipocas nunca o chateou e Catanada jamais foi chateado.

Os dois companheiros apareciam muitas vezes juntos. Arranjasse Catanada um pacote de investimentos ou juros promissores, que tinha pela certa a presença de Pipocas. E se Pipocas tivesse outra sorte ou engenho no engate, Catanada passava com ele uma paródia de arromba. O bom Catanada teria pago o que fosse se alguma vez tivesse muito, mas nunca teve… pelo menos durante o tempo que demorou para encontrar Pipocas. Catanada era um homem de princípios. Havia alturas em que o chateava pensar na generosidade de Pipocas e na sua própria falta de nota. Um dia arranjou dez contos de uma maneira tão extraordinária que imediatamente tentou esquecer-se do amigo com medo de que a lembrança o fizesse enlouquecer. Em frente do Banco Português do Atlântico um cliente havia-lhe posto um cheque assinado em branco na mão dizendo:

— Anda lá, joga aí nas acções o que palpitares e dou-te percentagem a dobrar. O meu palpite esgotou-se.

Estas coisas acontecem como um milagre — pensou Catanada. Uma pessoa devia aceitá-las como é e não se importar com o resto nem fazer perguntas. Subiu a rua levando a notícia a Pipocas, mas, mais adiante, encontrou alguém e perdeu-se na ladainha. Catanada era um conversador e adorava o convívio. Ergueu os olhos em direcção às horas e a sua paciência esgotou-se para a visita que ia fazer ao amigo. Nova viragem, e fez o retorno. Depois disto, Catanada sentiu-se bem relativamente ao atraso do pagamento do aluguer. Não tido sido o pagador das suas despesas?

Passaram algumas semanas. Catanada começou a preocupar-se agora com a prostituta. À medida que o tempo corria, a preocupação tornava-se maior. Por fim, movido pelo desespero, primeiro, despachou a prostituta do apartamento para fora e, segundo, trabalhou horas a fio a palpitar acções para o cliente do Banco Português do Atlântico e ganhou cinco contos. À noite, pôs a roupa de trazer por casa, toda desportiva, colocou sobre os ombros o coçado casacão de antílope do pai e pôs o carro a descer a rua a fim de dar a Pipocas a notícia da prostituta. Na viagem, porém, comprou um maço de cigarros, e pôs-se a fumar.

«Foi melhor assim», pensou. «O meu amigo, se quiser, que tome conta dela. Do meu dinheiro que me custou os pingos da cabeça a ganhar, não leva nem um chavo. E digo-lhe que a prostituta custava cinco contos por foda.» Isto era parvoíce e Catanada sabia-o bem; no entanto, ficou satisfeito consigo mesmo. Não havia ninguém em Marco de Canavezes que soubesse melhor o preço das prostitutas do que Pipocas.

Catanada guiava, feliz. Decidira-se enquanto avançava em direcção ao apartamento de Pipocas. Os seus pés nos pedais mal tinham deixado de mover-se. Em cima de uma das pernas um caderno de folhas, em cada folha uma cotação da bolsa. O estômago de Catanada nem sequer estava à prova das alturas, visto que, ao contemplar as gaivotas, lembrou-se de que a Senhora do Porto usava algumas vezes gaivotas nas suas comezainas, e essa lembrança deu-lhe apetite, e o apetite aumentou-lhe a ânsia. Catanada prosseguiu na sua viagem. Acabava de chegar à cabana do campo e já estava a pensar como poderia divertidamente passar-se com os telefonemas para os amigos e no tempo em que seria capaz de manter-se divertido.

A escuridão era agora quase cerrada. Já não se via nem a berma da estrada nem o resto que a ladeava. Mas, naquele momento em que a aceleração oscilava entre o depressa e o devagar, nesse momento preciso, Pascácio surgiu, por acaso, a pé, à beira do entroncamento com a pasta da publicidade e com vontade de beber um copo de uísque e de falar um pouco. Pascácio, primeiro, ouviu o ruído do motor, depois viu uma figura obscura e depois reconheceu Catanada.

— Ei, bancário! — chamou entusiasmado. — Que pressa é essa que tu levas?

Catanada estacou e olhou para a berma.

— Julgava que estavas no bairro — disse de malandro. — Ouvi falar numa história com uma mulher da prostituição.
— Estive — retorquiu Pascácio, sarcástico. — Mas não fui bem aviado. A pequena disse que o broche não me fazia nada bem depois do jantar e eu disse a ela que não queria mais nada do que aquilo que estava interessado. E pronto — acabou ofegante —, cá estou mal aviado.

Catanada estava ouvinte. Na verdade, não falou com Pipocas, mas convidou de imediato Pascácio a compartilhar com ele no apartamento que tinha a chave. Catanada e Pascácio entraram alegremente no apartamento. Catanada acendeu a luz e foi buscar duas tigelas para fazer de copos. Trouxe também a garrafa de uísque.

— À tua, meu! — disse Pascácio.
— Chim-chim! — retorquiu Catanada.

E, passados instantes:

— Ao tesão! — disse Pascácio.
— Que nunca se vá! — retorquiu Catanada.

Depois de saborear os primeiros tragos, botaram abaixo o conteúdo da garrafa de uísque, o que é muito, mesmo para uns aficionados. Logo depois do bota abaixo surgiram as conversas com propósitos e despropósitos, contaram recordações suavemente tristes, evocações de antigos e insatisfeitos amores. Um arroto, e reflexões acerca de antigos e infelizes problemas familiares, tristeza geral e confusa. Outro arroto a seguir, canções à desgraça ou à saudade, e todas aquelas lérias que todo o embriagado sabe. Ficam por aqui os arrotos e seus derivados. A partir daí voltam à conversa normal com propósitos e despropósitos, uma vez que foi aí que ambos deram o início.

— Pascácio —, nunca te cansas de andares a dormir em bairro, com a amante, todo feito galifão, sujeito a levares uma farinhola, sem ajuda de ninguém, sempre sozinho?
— Não — respondeu Pascácio.

Catanada pôs na sua voz o doce da simpatia.

— Era o que eu pensava, meu bom amigo, quando era um insignificante rato de aldeia; também eu andava a lestes, pois desconhecia como é bom a gente ter uma vida dupla, e uma amante e um refúgio. Ó, Pascácio, tu é que sabes viver!
— Realmente é outra vida — concordou Pascácio.

Catanada lançou o canto:

— Ouve lá, Pascácio, não gostavas de me alugar uma parte da tua amante? Diminuía para ti a mesada. No teu dia não ia eu; no meu dia não ias tu. Não gostavas que fosse eu e não outro?

— Lá isso gostava — respondeu Pascácio.
— Então, diz lá — perguntou Catanada.
— Olha, pagas só metade da mesada. São trinta contos por mês. E a amante toda fica à tua disposição. Podes dormir com ela e tudo menos aos fins-de-semana. E se ela te autorizar a ires lá a casa tens que pagar mais qualquer coisa.
— Ai, tenho? — disse Catanada. — Isso vamos conversar!

Pascácio puxou de um cigarro e Catanada imitou-o. A sala parecia uma chaminé de fumo. Catanada respirou profundamente. Não tinha entendido como a dívida para com Pipocas se instalara nos seus pensamentos. O facto de ter quase a certeza de que Pascácio nunca lhe aceitaria dinheiro algum não acalmava a sua audácia. Apresentava a prostituta a Pipocas para se servir dela, uma ou mais vezes, e o assunto ficava aviado. Se algum dia Pipocas lhe pedisse contas, Catanada podia responder: «Paguei-te com os favores da prostituta.»

Acabaram de fumar e atiraram com as baronas para o cinzeiro e Catanada recordou-se como havia sido feliz nos seus tempos de menino.

— Nessa altura não tinha eu consumições, Pascácio. Não sabia o que era o pecado. Era bem mais feliz.

— Desde então nunca mais fomos como éramos — concordou tristemente Pascácio.


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