Thursday, September 4, 2025

 


     O Marmorista Baril          


     O marmorista Baril dizia mal dos coveiros. Os coveiros não sabiam fazer as covas para os defuntos, e muito menos, medir o diâmetro para cada um deles poder entrar na sua medida certa, era a sua opinião. Só através de uma medição a metro, achava ele, é que os caixões entravam em olho certeiro e não falhavam um milímetro de terra sequer.

     A opinião de Baril, um marmorista que passava o seu tempo no cemitério de Santa Marinha, em Vila Nova de Gaia, a compor lápides para o bom embelezamento das campas, era uma opinião bastante controversa.

     − Medição por comprimento do morto, − disse uma vez o Chefe dos coveiros − deve ser burro quem o diz, porque o morto, depois de morto; dá sempre o último suspiro e aí cresce uns pós acima da tabela.

     Contra o marmorista e o Chefe dos coveiros estava também a família dos Minúsculos, que viu o seu filho-anão de vinte anos morrer com um osso engasgado na garganta e reclamava que tinha direito a um caixão de meio metro, pois assim pagava menos enterro e tinha direito a subsídio para flores, lápida e velas nos dias de fiéis.      

     Para o pai Minúsculo, todos estavam errados uma vez que o anão é descendente do bebé e devia ter os mesmos direitos iguais na hora da partida sem retorno.

     − Que leis estas! − Dissera ele, quando o funeral se pôs em marcha a caminho do cemitério de Santa Marinha. − Tanto aparato para quê? Para os gananciosos das casas funerárias sacarem um balúrdio, os coveiros fazerem um buraco medonho, os marmoristas porem uma pedra de cascalho (dizem que é mármore) fazerem uns sarrabiscos e pedirem uma fortuna e nós os pais, ficamos com um encargo às costas.

O Chefe dos coveiros, quando ouviu esta reclamação, nem lhe deu troco e virou as costas ao funeral.

     − Outro que tal! − Resmungou o chefe a caminho da guarita. − Pensa que o cemitério é a Leitaria Suil, já vem para aqui choramingar.

     À mesma hora, no mesmo local, enquanto o funeral se dirigia para a capela do cemitério, Baril, o marmorista, dava um retoque final na lapida destinada ao recém-

chegado e estava de cócoras, de martelo e pincel junto à cova, quando a presença, ao lado, de uma viúva a enfeitar uma campa lhe despertou a curiosidade.

     − Meu Santíssimo! Mas que coxa gorda! Murmurou ele, chegando para trás e pondo-se deitado sobre o monte de terra que destapava a campa do próximo cliente.     

     − Por aquela febra não me importava nada de ir prós anjin…!

     Ele chegou-se mais para trás e os pés escorregaram na terra húmida, indo estatelar-se no fundo da campa e ficando inconsciente por uns momentos.

     Assim que acordou, agarrou com as mãos a terra como se a quisesse devorar. Os olhos saíam-lhe das órbitas e fazia lembrar um extraterrestre. Sonhara que tinha ido às profundezas de Saturno e assustou-se tanto que até se babava da boca com soluços, dizendo cá para fora tanta asneira que nem sabia o que dizia.

     Era uma espécie de praga, em que o culpado eram as medidas. “Odeio as covas e detesto estas medidas que não dão para um tipo se virar à vontade de um lado para o outro. E digo mais: Detesto estes coveiros que são todos uns cagões de merda.”

     Depois deste lamento inflamado, Baril pegou na sua ferramenta e, nem sequer olhou para a visitante, pôs-se na alheta antes que se fizesse tarde. “Que susto, disse ele, passando o lenço pela testa suada, até me mijei nas cuecas com aquele maldito buraco.”

     E desapareceu pelo cemitério a correr, feito maluquinho, nervoso e queixoso, sem olhar sequer uma única vez para trás.         



Wednesday, September 3, 2025

         


     O Motorista de Táxi

                                                    

     Era uma vez um motorista de táxi, sexagenário e atrevido, empregador de um carro com imensos quilómetros em cidades e vilas, que partira a trabalhar por terras distantes, deixando abandonada e triste a sua mulher e três filhos, que ainda viviam na sua casa, em Gondomar.

     A estrela Norte que o vira abalar, levado no seu sonho de aventura e de dinheiro, começava a ruir — quando uma das suas conquistas amorosas apareceu, com a barriga cheia, grávida do calor ardente e de uma cena tórrida, trazendo a boa nova de um bem abençoado e do nascimento do rebento, alcançado por muito amor à flor da pele, à volta dos pinhais.

     A mulher chorou desoladamente a perda de casa do marido, que era jeitoso e alegre. Mas, sobretudo, chora ansiosamente o pai que assim deixava os filhos desconsolados, no meio de tantos problemas das suas difíceis situações e do futuro que seria incerto, sem uns braços fortes que os defendessem, e os encorajassem para a vida.    

     Desses problemas o mais penoso era a outra, amante jovem do marido, rapariga leviana e fraca, consumida de vícios novos, desejando só a boa vida por causa do seu tesouro, e que havia meses vivia numa casa sobre os pinhais, com um desarranjo de trapos, à maneira de uma loba que, dentro do seu poiso, guarda o tesouro.

     Ai! O tesouro agora era aquele bebé, dono da mama, senhor de tantos nadas, e que dormia no seu berço com o seu ursinho de plástico agarrado na mão!

     O menino dormia num berço de verga, filho da modesta e robusta mãe doméstica de dezoito anos que amamentava o seu tesouro. Tinha nascido num dia de Primavera. A mãe antes de adormecer, vinha fazer festas ao menino, que tinha o cabelo preto e fino. Os seus olhos reluziam como pedras brilhantes.

     Naquela terra pequena de Cete, onde o motorista de táxi alugara uma casa, ela tinha a ilusão, a realização dos seus sonhos. Nenhum idílio correra mais depressa do que o seu pelo motorista de táxi à volta dos pinhais. O motorista de táxi, seu amante, estava agora a trabalhar numa outra postura, para lá da cidade, circulando também em aldeias e vilas. O seu carro de trabalho, um Mercedes de 1981, estava ainda aí para as curvas. Os novos clientes, que fosse angariando, prontamente iriam nessas aldeolas voltar a chamá-lo e a ouvir os seus maliciosos ditos. E ela por seu lado, não desejaria mais de que ver a luz a raiar na casa do seu homem, e tomar conta do menino, e ligar a televisão nos seus programas preferidos; era as novelas como os filmes, e ficava feliz na sua servidão. 

     No entanto uma grande confusão reinava na casa, onde agora a despesa aumentara mais do dobro. O amante, o taxista passava de cavalo para burro viera para a aldeia com a sua experiência, e já através de alguns contactos ia vendo uma praça fraca de clientes assíduos e passageiros. Os comboios da vila tinham sido demasiados gulosos com os clientes. Nas posturas andavam menos passageiros. Um táxi não rola sem um passageiro. Toda a postura parecia um stand de carros abandonados. E a rapariga preguiçosa apenas sabia correr a cada momento ao encontro dos seus vizinhos e mostrar a eles a sua fraqueza de mãe solteira. E às vezes, parecia insegura — como se o serviço que estava debaixo da sua alçada fosse tarefas grandiosas que nenhuma coragem pode transpor.

     Ora uma noite, noite de trovão e chuvisco, vindo ele a chegar do trabalho, já exausto, entre os dois houve um chispe, maior que um curto-circuito e de briga, à entrada do quarto de banho. Enraivados um com o outro, atirando cá para fora tudo o que lhes saía pela boca, a relação estourou rotundamente. Depois houve um «vê se te mexes», e cada um foi para o seu lado. Puxou violentamente os cobertores da cama. E, lá no fundo do quarto, o bebé dormia, num sonho que o fazia iluminar, toda a face entre os seus cabelos negros.

     Num relance, a mãe então, sem uma vacilação, tirou o tesouro do seu berço de verga — e embrulhou-o à pressa num xaile negro, entre um esgar de olhos desesperados, abalou velozmente.

     O taxista dormia no seu sono pesado. A cama ficara fria no silêncio e no escuro. Mas sinais de alarme de repente tremeram a sua cabeça. Pela mente trespassou o curto vibrar das pulsações. Os suores ressoavam com o bater do coração. E desgrenhado, quase nu, o taxista invadiu a casa, entre os móveis, gritando pelo seu filho. Ao avistar o berço de verga, sem roupas, vazio, caiu num choro, destroçado.

Depois mais frio, mais calmo, ele compreendeu — a casa vazia, a rapariga doida indo embora, roubar o seu menino! Então, rapidamente, correu à cadeira onde as calças estacionavam, sacou o telemóvel, como se saca uma carteira, e falando com alguém no telemóvel, o taxista partiu à descoberta de seu filho...          

     Também ele sofria pelo menino! Quantas vezes, com o bebé agarrado ao colo, ele pensava na sua fragilidade, no seu longo crescimento, nos anos lentos que seriam antes que ele fosse ao menos do tamanho de chegar com os pés aos pedais, e naquela mãe imatura, de temperamento mais frio que o lavado e coração mais insosso que o temperamento, faminta do repouso, e residente com os pais acima da sua antiga casa uns metros adiante! Pobre bebezinho de sua alma! Com uma ternura grande o imaginava entre os seus braços.

     O taxista lá ia, irrequieto, remexido, devorando quilómetro a quilómetro, num pensamento que o fazia sorrir, lhe molhando todo o rosto, entre os seus cabelos desalinhados. Bruscamente, se acercou da porta da casa da rapariga e recuou, como que adivinhando ir armar grande banzé. Sabia perfeitamente que ia! Então voltou para trás.

     E passados momentos, a rapariga chegou a casa dos pais. Bateu à porta com um alívio, como cai um fardo de cima. Um choro abalou o chão de pedra. Era o bebé a chorar, o seu choro madrugador. Nos seus choros havia, porém, mais sono que fome. O bebé então parara de chorar! Tocado, ao sentir, entre o mimo e a chupeta, embalado, pela mão forte da mãe, acordara, ele e o seu olhar maroto… — quando a mãe da rapariga, deslumbrada, com os olhos bem abertos, olhou o menino que despertara.

     Foi um espanto, uma alegria, quando a mãe da rapariga ergueu o menino nos braços, manifestando a sua força hilariante, abraçou apaixonadamente o neto abençoado, e o beijou, e lhe chamou netinho do seu coração…. E entre aquela caloria que se soltava ali, veio uma boa, desejada alegria, com promessas de que fosse ajudada, relativamente, a filha regressada para alimentar o seu bebé. Senão como podia ela sustentar um filho? Se não tinha um emprego? Então o velho pai lembrou que ela fosse levada ao tribunal de menores, e dissesse de entre outras coisas, que era uma mãe solteira, desempregada, e que esperava receber todos os subsídios que a lei confere…

     A rapariga tomou o caminho do pai. E sem que o seu rosto de branca perdesse a rigidez, com um andar de defunta, como num sonho, ela foi assim apresentar-se ao tribunal de menores. 

     Pais solteiros, mães solteiras, familiares, rode ganapada, lá estavam entre aquela multidão que se apertava na entrada. As altas portas do tribunal abriram lentamente. E, quando um funcionário, se assumiu à porta, de face vermelha, com montes de papelada, e chamou a rapariga e o motorista de táxi, todos os demais se remeteram ao silêncio durante segundos. Um grande «Ah!» voou da boca do taxista que respondera. Depois houve uma pausa, curta. E no meio da sala, envolta na mudez preciosa, a rapariga não dizia uma…. Apenas os seus olhos, reluzentes e firmes, se tinham erguido para aquele funcionário que, além dos processos em suas mãos, era portador de determinações e decisões.

     Era lá, nesses processos de foro conjugal que estava agora o destino do seu menino!... Então a rapariga sorriu e estendeu a mão a uma caneta. Todos seguiam, sem articular uma palavra, aquele lento movimento da sua mão a assinar o documento. Que assinatura grandiosa, que punhado de papeis, estava ela a assinar?

     O funcionário lia o processo — e a seguir ao ponto final parágrafo, entre uma recolha de testemunhos, revelou a decisão. Era uma decisão assinada pelo juiz a que conferia à mãe a tutela do bebé, a título provisório.

     O motorista de táxi deixara de ouvir o fim da leitura, e com o semblante carregado de revolta, apontou para a parede, onde um quadro de uma velha balança, com dois pratos carregados de vários símbolos, e que simbolizavam os valores da lei, encarou a rapariga, o funcionário, e gritou:

     — Dei-te o meu filho, e agora vou pagar-te o seu sustento e fico sem ele!... 

    E cavou as solas no chão.