Padrinho e o Porto
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O boletim meteorológico dava sinais
de chuva intensa e húmida e o céu apresentava uma lua em quarto minguante em
estado de uma obscuridade quase total, e a noite dera lugar a uma tenebrosa
trovoada. As árvores abanavam ao sabor do vento que fustigava cada vez mais,
ouvindo o ruído de sons agudos que pairavam na rua.
A passo lento, segue Padrinho, chapéu
enterrado na cabeça, bolsa de cabedal dos documentos fortemente atada à mão
direita, enquanto a outra mão se enfiava no bolso da gabardina escura.
No silêncio da noite, ele baniu do
pensamento todo o remorso pelo período em que duvidara de si mesmo,
substituindo por uma ideia nova: devolver a si próprio a imagem do passado.
Sentiu que a sua fé o abandonava e encolheu os ombros, numa expectativa de aguardar
de momento o que o futuro lhe reservava — embora isso também estivesse para
breve.
Envolto pelas ruas da cidade que se
enroscavam em seu redor, contorceu-se num esgar de frio e olhou para o
horizonte. O Porto mostrava-se uma cidade airosa, revelando a sua verdadeira
raça de natureza pura, a sua beleza arquitectónica de cidade que tinha ganho a
noção de si própria e, por conseguinte, se rebolava num presente auspicioso,
diferente, de borgas e paródias, sem nunca ter rejeitado o passado, olhando a
escuridão de um futuro promissor.
Padrinho vagueou nas ruas nessa noite
seguindo a luz e as trevas da madrugada. Lembrava que muito antes da chuva
cair, um certo número de casos que o haviam abalado lhe vieram à memória
trazendo alguns nomes que haviam sido expulsos do seu espírito por terem falhado na hora do compromisso e, em
consequência disso, haviam-se deixado, como no filme O comboio apitou 3 vezes
em que o artista, o xerife, fica a falar sozinho à espera dos meliantes que lhe
queriam fazer «a folha». Ó falsas criaturas! Que mal eu vos fiz! —
Quando o Deus para uns é cego, não há força
da razão que resista tal encomenda. Padrinho estivera à beira do abismo na
derradeira queda. Como a Boa-Estrela havia sido benévola para com ele! — Via
que a escolha era simples: o amor ao próximo e fé em Deus. Uma possibilidade
que não podia deitar a perder, antes que fosse tarde demais.
Tirou do bolso da gabardina um pequeno livro
de apontamentos que ali se encontrava desde que saíra de sua casa, havia mais
de três horas e meia: o livro com os nomes dos meliantes que lhe queriam fazer
a tal dita «folha», os dignos companheiros, amigos de longa data, os seus nomes
estavam escritos à mão, em tinta preta, e deitou-os a uma valeta…
Numa esquina, na zona da Rua Chá, outrora
conhecida pela sua população de artistas de várias artes, vagabundos e homens à
procura de prostitutas, e agora ocupada por profissionais de comércio e
pequenos empresários de negócios, Padrinho teve ocasião de encontrar uma alma
perdida à procura de alguém.
Era ainda jovem, de sexo feminino, alta e
duma beleza exótica, com um nariz tipo chafariz e cabelo preto e riscas
brancas, penteado com azeite e tinha dentes pintados a várias cores. A jovem
estava mesmo à beirinha do passeio, encostado a um varão de ferro, de costas
voltadas para a estação ferroviária, levemente inclinada para a frente e
segurando, na mão esquerda, um objecto rectangular de estimação.
O seu comportamento chamava a atenção:
primeiro fitava com olhar sombrio o objecto que tinha na mão e depois olhava à
sua volta e rodava constantemente a cabeça dum lado para o outro, pondo os transeuntes
demasiado concentrados.
Padrinho, numa primeira passagem, olhou para
o objecto que a jovem agarrava: era um cartaz escrito a letras miudinhas. À
segunda passagem, pôs os óculos e leu com atenção o cartaz: Por favor, dê uma esmolinha à ceguinha. A
seguir ofereceu-lhe a sua ajuda. A jovem passou o cartaz para a outra mão e voltou
a repetir o mesmo refrão.
«Este dinheiro — disse ele — é teu e não é
muito, mas é de boa vontade.»
E retomou o caminho, olhando a pequena
multidão silenciosa. Ali, na esquina de uma rua movimentada, andavam almas a
sondar em busca dum corpo à deriva.
Mais adiante, quase ao fundo da rua,
Padrinho viu claro uma prostituta a ser assediada por um esgazeado que, sem
mais nem menos, agarrou o rosto dela com ambas as mãos e deu-lhe um beijo
firmemente na boca. No entanto, ela reagiu de maneira surpreendente ao ser
assim agarrada bruscamente, exclamando:
«Vai-te foder», — berrou com toda a força —
posso estar desesperada, meu, mas ainda não estou esgazeada a esse ponto.» —
Ao que o freguês, dando mostras de mau
perdedor, deu-lhe um valente soco no nariz que a pôs a sangrar. A seguir,
pirou-se pela rua abaixo e perdeu-se na escuridão.
Quando Padrinho foi atrás dele, o freguês já
tinha cavado não se sabe para onde mas, em vez disso, encontrou uma amiga dos
tempos da desgraça que veio flutuar para a sua beira, já com uns copitos a mais
no estômago.
«Olá! A uma hora destas por aqui — disse ela
— só se for para curtir o fado do Pescador!» —
Padrinho sorriu.
«Olha, que é que queres que te faça? —
acrescentou. — Não tenho sono, tenho medo da solidão e, como não consigo
dormir, prefiro passear pela noite.» —
As palavras dela continuavam a ser irónicas.
«Está-me a contar essa fita a mim? — olhou
maliciosa. — Esse filme vai no Batalha!.»
—
Ele próprio também foi obrigado a rir. Tal
como ela, Padrinho pôs-se na galhofa a lembrar cenas do passado num jogo de
perguntas e respostas para fazer passar o tempo.
«Eram todos filhos de Adão», — contava ela
uma cena antiga. — Mas quando se deitaram na cama, os cabrões arrancaram logo
as suas roupas para mostrar as suas vergonhas.» —
Ouviram-se as suas gargalhadas. E Padrinho,
logo a seguir, contou a dele:
«Uma noite, às quatro da manhã,
completamente embriagado, já tinha bebido o uísque todo da garrafa, tirara a
escova dos dentes e preparava-me para ir à casa de banho, quando se apresentou
no meu apartamento, uma jovem sem ser anunciada e não dava mostras de querer
sair dali. Eu, educadamente, fui à casa de banho lavar os dentes e, ao voltar,
encontrei-a de pé no meio do tapete da sala, completamente nua, exibindo um
corpo de tarar. Quando eu vi aquele espectáculo ali diante de mim, gritei:
-Toma-me! Sou todo teu. Faz o que quiseres!»
— Ela pôs-se a mijar em cima do tapete e, a seguir, desapareceu calmamente para
fora.» —
Padrinho contara a ela a história num tom
franco e risonho, sugerindo, em princípio, que a tempestade já não se
desencadeava. O certo é que ela não parava de contar histórias e ele foi
obrigado a gritar-lhe:
«Agora chega», — disse ele. — Vou-me
embora.» —
Apertando bem o cinto da gabardina ao corpo,
seguiu a passo rápido pela rua em frente. O nariz de Padrinho, escorrendo
pingos de orvalho, começou a latejar dolorosamente. Nunca fora capaz de
suportar o frio. Deu por si a murmurar uns versos que lhe saíam à memória
repentinamente,
Morrerá
quem suporta o frio?
Quem,
não se alheie ao abandono, embora a ele condenado?
Tu
também farias isso, e te tornarias um oculto, de qualquer das formas.
Mas
longe do frio, onde pudesses trocar,
Um
pouco de sossego e paz…
Ele próprio não saberia dizer melhor.
Qualquer
pessoa que desse por si no meio da noite, ao relento, a falar sozinho, diria
que ali ia um maluco… pôs-se a limpar o nariz a um lenço de papel e murmurou:
«Devias era ter ido para poeta», — opinou
voltado para o candeeiro da rua. — Podias muito bem ter tido êxito. Eu sei
escrever embora só tenha a quarta classe, mas que raio? Uma pessoa não precisa
de ter muitos estudos para saber dizer uma dúzia de frases bonitas, não é? É
claro que não sou burro de todo: há por aí mais camelos do que eu a pastar que
não vão a lado algum mas eu cheguei lá! Mais longe do que eles pensavam, disso
tenho a plena certeza e mais digo: esses nem daqui a cem anos chegam onde eu
cheguei, disso garanto-te, palavra de Padrinho.» —
Ele desvaneceu-se da fúria e até lhe deu
para fumar um cigarro, puxando primeiro pela aba do chapéu para a frente da
cabeça, enquanto tirava umas fumaças de fumo para o ar. Nesse instante, reparou
que duas pessoas o olhavam com curiosidade, a primeira um jovem de aspecto
aguerrido, com roupas de couro guarnecidas com letras em relevo, um cabelo
cortado à pica e uns olhos de esfomeado; a outra, uma mulher de meia-idade com
um guarda-chuva na mão.
«Vocês tiveram azar», — gritou Padrinho. —
Pois já fui assaltado ali atrás e fiquei teso como um virote.» —
«És mais desgraçado do que nós», — disse o
Pica lançando uma pedra contra os sapatos dele. — «Ao menos, deixa ficar o
tabaco.» —
Depois dele ter pegado nos cigarros, retomou
o seu caminho; enquanto a mulher retorceu uns passos para trás e disse:
«Tenho a certeza que nos estás a enganar,
mas a tua cara ficará guardada no meu espólio, ouviste, ó gamão?» —
Pelos vistos, aquela era uma noite recheada
de atractivos, compreendeu ele com surpresa.
- «Mas que noite! É caso para eu dizer: o
que mais falta para vir?»
Padrinho ficou persuadido de que sair à
noite sozinho era um perigo numa cidade como o Porto. E, tendo em conta aquilo
que viu, a esmurrada no nariz, perseguida pelos Picas, a ceguinha a pedir
esmola, a amiga das anedotas. Padrinho ficou mais decidido a recuar caminho e
mudar de direcção, seguindo até ao Poente; mais propriamente dito, para a sua
morada.
Padrinho tinha a certeza que ali ninguém o
incomodava.
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