Sunday, March 26, 2017


MINHA família e eu gostávamos de ficar ouvindo fado até alta madrugada, mas uma ocasião, encontrámos este bilhete na soleira da porta:

Queridos amantes de fado,
Vocês nem podem imaginar a minha alegria e surpresa ao chegar a casa de noite e ouvir um dos meus fados tocado por uma orquestra sinfónica. Após tantos anos de criatividade, finalmente consigo ouvir o meu fado orquestrado. Eu sabia que a minha veia não era treta. Só um pequeno senão: acho que o meu fado está sendo tocado um tanto instrumental!
Talvez na próxima emissão incluam o meu Noturno. Aí, eu acho melhor convidar o coro dos
 sem-abrigos para o acompanhamento.
Atentamente,
                                                                         Tony Guimarães.
                                                                                                                                           F/A.


                                               AVITAMINA
                                                     ~~
DURANTE meio século eu vivi da restauração, no centro da cidade do Porto. Eu próprio era um excelente empregado de mesa, subi vários degraus no ofício, e tive três estabelecimentos hoteleiros. Do meu ponto de vista, havia duas coisas certas em mim: possuía bons conhecimentos e levava a responsabilidade a sério. Tinha até em casa uma galeria de recordações. Então comecemos do princípio. Nos meus tempos de menino e moço, decorria o ano 70, quando ingressei no ramo hoteleiro. Tanto eu como os meus colegas naquela altura nem sonhávamos em caçar tantas vitaminas, como graciosamente chamava às gorjetas. Constava-se até que havia barmans de hotel que filavam-se à gorjeta para orientarem uma companhia feminina! Quando eu era rececionista de uma pensão de 3 estrelas, no Porto, ganhava 3 contos por mês, e em gorjetas chegava a fazer em média 500 paus por semana, mais do que muito empregado bancário competente ganhava. Foi então que resolvi aceitar uma proposta para integrar a equipa de uma boite-club, onde ganhava mais gorjetas, embora mais responsabilidade. Uma noite, quando ia atender uma mesa, um empresário que estava a ser servido, perguntou-me:
- Vou abrir um restaurante na Trofa. Dou-te 6 contos por mês. E tu vais dirigir a sala, rapaz.
- Obrigado, mas não aceito, senhor.
O empresário olhou para mim, um tanto admirado.
- Por que o fazes?
- Uma questão pessoal.
Eu tomei a decisão de não lhe confessar que só de gorjetas eu recebia o dobro disso. Toda a gente que recebe gorjetas hoje em dia acredita firmemente que elas fazem normalmente parte do seu salário extra. As gorjetas são necessárias para o complemento do ordenado. São poucos os que se acanham receber gorjetas. Dizem que o problema para eles não está em ser acanhado, mas, sim, na forma de quem a dá.
- Quando se depende de gorjetas - dizia um garçom - só se pode ter a certeza quando ela pinga no bolso. Com isso, fica-se mais descontraído e pode-se até dizer que o dia está ganho.
Eu fui um empresário que há algum tempo dirigi dezenas de empregados, e afirmo que eles têm alma de jogador e não poderiam trabalhar de outra forma. Como consta, há a história da balconista que procurou explicar a um cliente como beber menos. O cliente disse-lhe para calar a boca. A balconista tomou a decisão de não dar fala àquele estúpido. Mas no decorrer do tempo em que ele lá esteve, achou melhor em lhe dar conversa para caçar a gorjeta.
Prestigiosos empresários ainda vivem em grande parte de uma tabela de preços feita por eles a deixar trocos para o pessoal e dizem em particular que preferem a salários altos. E um importante empresário de hotelaria é de opinião que muitos dos seus colegas se sentiriam mais infelizes se as gorjetas desaparecessem.

                                                                                            Abraão, Porto.

No comments: