Tuesday, September 9, 2014



CONTOS DE RATAZANA
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O homem de inventar alcunhas e contos noturnos para escrever
Dêem-lhe uma dica e ele fabrica logo um conto


Aos 33 anos tornei-me boss de um bar de belezas, como eu lhes chamo, na cidade do Porto, e tudo o que desejava era escrever. Chegava a casa de madrugada e levantava-me às 9 da manhã para a escrita. Já era sabido por, à noite ou de dia, escutar com os meus ouvidos de mercador as conversas dos clientes quando era tocado por uma ideia que me fazia agachar no balcão, para pegar no papel e caneta para anotar.

Num dia de Setembro, um cliente e eu estávamos a tentar planear algo para chamar mais pessoas ao bar. «E se eu me dedicasse à escrita, e criasse um pasquim só para o bar?», perguntei. «Podia escrever aí, e anunciar como um daqueles ardinas dos jornais e ia dizendo: «Escândalos! Traições!» É certo que nunca o tentei. O desejo de escrever para os clientes incentivava-me, não como profissional, mas ao meu jeito. Por detrás dos copos, saquei um monte de rascunhos de pessoas que me contaram os seus desabafos, e peguei na minha máquina de escrever portátil comprada numa feira, e sentei-me à mesa. Se mais não fosse, daria uns bons contos para contar aos meus clientes. «Então o que dizem disto?», perguntei, olhando em volta do balcão, como um deputado à cata de votos. «Bem», disse um cliente, «é um pouco fofoqueiro». Não me ralei, a intenção era mesmo essa. Pus mão à obra e apresentei um ensaio ao primeiro grupo de clientes. 

E assim, numa cinzenta segunda-feira, dia 3 de Outubro de 1983, publiquei um pasquim chamado “Jornal Dos Traidores”, em que os protagonistas eram os clientes do bar, para todos criei alcunhas, todos aceitavam as regras, e pus o jornal ao fundo do balcão, onde colei um letreiro ao lado: «Contos Hilariantes de Amor e Traição dos Anos 80», ─ e convidei os clientes a lerem uns contos, enquanto bebiam. Alguns riam com ironia e diziam: «Que grande aldrabice!» Outros mostravam simpatia, «Um traidor com fome de amor!» Uma beleza perguntou se a notícia ao fundo, «Lésbica à solta na casa de banho!», aquém se referia. Nunca me senti tão embaraçado. A certo momento, aproximou-se um par traidor. «Não sei o que estás prá aí a escrever», disse a beleza, «mas seja lá o que escreveste, quero ler». Com um sorriso conivente, o homem acrescentou: «Não há dúvida de que o jornal é uma ideia absolutamente original!» Pedi-lhes para chegarem à frente (e fiz-lhes uma confidência) e contei-lhes um caso surpreendente. Título do conto: «A História do Morto-Vivo».

À medida que os jornais saíam, fui-me apercebendo do aumento de clientes-leitores no bar, seduzindo-se cada vez mais pelas notícias bombásticas. Por detrás de mim havia bate-boca e risinhos. Quando criei nova alcunha, levantei a folha do livro de registos, e deparei com cerca de quinhentas alcunhas à minha disposição. «Como me chamo!», perguntou o cliente. Logo respondi. «Bom Rapaz!». E fui aplaudido. Nesse período, o movimento do meu negócio triplicou-se. O jornal era o elo de ligação da malta, e estava a dar resultado. Escrevi contos atrás de contos. Em vez de me acomodar e reduzir ao stress, criei o blog: ´bardotraidor.blogspot.com`. A família traidora puxava por mim. Era a paga da minha invenção. Assim me transformei num Henry Miller, de contos eróticos.
    

Nesse primeiro aniversário de O Jornal Dos Traidores, tornei-me uma espécie de Grande Atração Noturna: Ratazana (eu), o criador de alcunhas e contos noturnos de escrever. Lance-lhe uma dica, ele fabrica um conto. Temi cansar-me pouco tempo depois. Mas 4 anos e dezenas de contos, incluindo livros, continuo expectante.

Desde então ligado ao meu trabalho dediquei a minha disponibilidade a escrever estes contos noturnos: no bar e no computador, em ruas e jardins, em cafés e festas. Nenhum lugar é impróprio desde que a veia se liberte. Quanto mais me instruo, mais pessoas procuram abrir-se comigo. Dão-me as suas dicas. Eu dou-lhes contos que são um passatempo interessante: Mas antes de escrever a primeira linha, dou-lhes os meus olhos, os meus ouvidos, a minha atenção total a mais de 100%. Neste momento a lotação disponível no Coliseu do Porto já não chega para sentar os clientes para quem escrevi e convivi ao longo destes anos (o número ultrapassa os 4.500).

Desde o primeiro dia que guardo na vitrina da minha sala os CD´s de todos os contos. A mesma que guarda os livros de capas brancas, vermelhas, verdes, azuis e cor-de-rosa ─ um arco-íris de contos, uma torre de pequenas lições de vida. Quase que posso dizer que ganhei a minha persistência. Mas gostaria de pensar que há mais alguma coisa que diz respeito ao fenómeno poder dos contos que contamos acerca de todos nós. Apesar de tudo, cada um nasce com dom de autor… do seu próprio conto de vida. Aqui vai a minha preferida: numa casa de lavradores de uns patrícios a 150 metros da Lixa, escrevi este conto para uma rapariga bonita e morena chamada Manuela e atrevi-me a ler a sua sina:

«Um Passeio Junto Ao Rio»
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Manuela não tinha namorado, não porque não lhe aparecessem mas, na altura sentiu-se um pouco confusa. Mas hoje, Manuela pensa que foi a melhor coisa que lhe podia ter acontecido. Uns meses entretanto decorridos, Manuela passou a visitar com assiduidade a sua vizinha e amiga, uma rapariga muito expedita, atinada e efectuosa. Quando está com ela, Manuela sente-se muito alegre, reencontra o afeto e o riso. Mas encontrará alguma vez a felicidade verdadeira? Um dia, após visitar a amiga, Manuela irá dar um pequeno passeio à beira-rio com um homem que conhece na casa da amiga. Ele far-lhe-á umas perguntas e a primeira coisa que ela pensará será: «Puxa vida! Este tipo agrada-me!», e depois irão namorar e apaixonar-se.

Talvez ele tenha vindo à festa da matança do porco, ou talvez estivesse a relacionar-se. Talvez passeasse. O certo é que vem da cidade e a encontra depois de uma visita a casa da amiga, quando ela nem sequer pensava nele. Há muitas raparigas na cidade, e muitos homens também.

 O CASO DE MANUELA e eu nos termos conhecido na marginal do rio não me acorreu no dia em que escrevi o seu conto. Uns meses mais tarde, sentei-me à mesa e peguei em papel e caneta para escrever. «Recorda-se de mim?», perguntou-me a pessoa ao lado. Era Manuela. Estamos casados há sete anos e temos dois filhos.



E FOI ASSIM que a minha ideia doida de escrever contos noturnos no bar não só me proporcionou uma aprendizagem fantástica na escrita, como me deu uma mulher e família. Poderia dizer-se que o meu sonho de me tornar autor de contos noturnos também se tornou realidade. Não certamente como pensara nas entrelinhas, mas a escrever livros no bar com uma folha A4 sobre uma personagem de cada vez. Mas também nenhum bom conto tem o desfecho que se esperava.   

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