Monday, January 28, 2013




FERNANDO ABRAÃO
E RATAZANA
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O
MUNDO
DA
NOITE
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Por volta dos anos 83 aguardava-se que um serralheiro da construção civil mostrasse a sua virilidade de machão. António Glória vinha fodendo as raparigas dos bares, desde meados dos anos 80, com os seus gestos excêntricos de atirar as notas para cima da mesa. Quando iniciou a tarefa de trabalhar por conta própria, em 1983, trouxe com ele, para Sines, um grupo recrutado de homens, começando logo a trabalhar com eles. Embora fosse um homem casado, passava a maior parte do tempo fora de casa, altura em que o seu nome estava ligado a várias prostitutas. Era frequente a forma como tratavas as prostitutas com tal rigor que mesmo um proxeneta teve-o de o aconselhar a ter mais calma e serenidade (isto é, ser menos bruto). Depois de ter subido na carreira profissional, por empreendimentos de maior dimensão, em 1987, uma empregada da noite de um cabaré contou como Glória a tinha feito sua amante, quatro anos atrás. Antes de formar uma firma individual, Glória contou ao barman do bar que frequentava assiduamente que tinha levado para a cama quase mil raparigas. Um livro publicado após a sua aposentação, Escritos Traidores, conta que em noites de sangue quente, ia até um bar da sua preferência, fosse em Lisboa ou no Porto, e sacava uma rapariga e levava-a para o seu apartamento privado. Mesmo durante a sua passagem, ninguém levava a mal com engates deste género; eram de esperar de um homem cheio de notas e cheio de speed.

Toninho Alves, o terrível «Gungunhana do sexo», dos anos 85, tentou decidir exceder Glória ao engatar duas ou mais raparigas no bar, havendo alturas em que parecia que estava louco por relações sexuais. Muitas vezes, acabava a sua relação batendo com a cabeça do pénis na cabeça da acompanhante, e uma ocasião pô-la coberta de chocolate-baunilha. Rodeado permanentemente por «grupos», Alves era capaz de «servir-se das raparigas como algumas pessoas comem tremoços». A sua virilidade era manifestamente extraordinária. Duas cabriteiras fizeram uma aposta interessante a ver quem dos clientes mantinha a gaita de pé depois de uma relação; um deles provocava a ereção pelo sexo oral. Alves foi um dos raros clientes que conseguiu ser capaz de manter a sua gaita de pé até elas se cansarem, mas também, aquele a quem as cabriteiras não conseguiram acompanhá-lo, porque a sua gaita se recusava a murchar. Em 1985, com trinta e cinco anos, Alves contratou numa noite um grupo de raparigas de ballet para animar os amigos na sua vivenda e bebeu demasiados uísques para gozar que a seguir desmaiou ao aspirar o próprio vomitado. Foi reanimado tão rápido e tão espontâneo que não deixou de fazer amor como todas elas, como nos bons velhos tempos do ano 83. Ficou célebre a sua fórmula. ´Se me foderes primeiro, apresento-te o melhor de mim`.

O acontecimento mais relevante do cabeçalho de O Jornal Dos Traidores do ano 83 foi o título que anunciava a morte de João Cesário, também conhecido pelo Galileu, e mais a sua acompanhante, em 7 de Junho de 1984. Galileu, o professor biológico e a acompanhante empregada de um bingo da cidade de nome Elsa, divertiam-se num fim-de-semana, num apartamento em Mérida, em Espanha, quando o amante de Elsa com a sua cumplicidade, entrou de sorrateiro na sala, munido de uma lanterna e de uma faca. Cesário não deu por nada e foi roubado e depois deixado ao abandono — Galileu, que continuava a dormir, assim ficou. Abraão, dono de O Bar do Traidor, encontrava-se no café quando recebeu a triste notícia. Imediatamente a seguir vieram os boatos. Um mau-olhado de O Jornal Dos Traidores escreveu: «Durante meia semana os boateiros sobre a desgraça de O Mundo da Noite falavam de comprimidos, droga e exibicionismos sexuais. O primeiro boato referia-se que as mortes foram cometidas por excesso de velocidade e especulava-se que tinha havido falha mecânica. Falava-se também de comprimidos relaxantes e perversão sexual. Na noite seguinte às mortes de Galileu e Elsa, o próprio Abraão foi com uns amigos, ao restaurante onde o Galileu tinha jantado e conhecido a jovem Elsa — conquistada ao acaso —, onde combinaram seguir para o apartamento em Espanha, depois de tudo acertado entre ambos. Dois dias mais tarde, no bar, uma prostituta chamada Teresa, sentada à mesa de um grupo de clientes, admitiu perante uma companheira de mesa que estivera quase para se envolver nessa viagem e a companheira contou que também fora convidada. Desabafou. «Olhai, onde é que eu tinha ido parar? Debaixo dos torrões». Depois de um dos casos mais chocantes e arrebatadoras das histórias dos bares do Porto, Abraão reuniu-se com os seus traidores (como chamava ao grupo), para receber nessa tarde, no bar, o famigerado morto-vivo. Tornou-se evidente, durante a receção ao Galileu, que a sua morte fora praticamente um lapso — o seu corpo tinha sido confundido, porque no seu carro e no seu lugar seguiam o amante e Elsa. O carro embateu contra um camião na autovia de Vigo, tendo-se incendiado de seguida, e os corpos ficaram carbonizados. Depois de Galileu ter sido recebido com estupefação por parte de toda a gente que enchia o bar, estes ofereceram-lhe de beber e deixaram-no contar a sua façanha. Após ter narrado a sua história, o Galileu retirou-se e juntou-se às raparigas da rapidinha. Depois embrulhou-se e, após alguns mimos, mandou vir umas bebidas para elas, para o sofá. «Não restam dúvidas sobre como escapei», diz o Galileu no seu comentário final. «Abri o coração à aventura e quase me ia lixando com ela. Não estava para morrer. Quando regressei a casa e perguntei à minha patroa se ainda gostava de mim, recorreu à sua expressão atual. «Sim, morto-vivo». Cinco anos depois, a história do morto-vivo tinha fascinado todo o cliente do bar. Em 1990, é recebido com saudade — um gesto, sem dúvida, mais salutar. Um ano depois, o Galileu veria publicada a sua história no livro de Ratazana ´Escritos Traidores`, com uma narrativa fabulosa, falando com alguma verdade das diversas mulheres que foram com ele para a cama e contando toda a história que o obrigou a afastar-se dos bares e da «nait» (noite). O livro conta tudo. (Não só dele como dos outros clientes-traidores) Descreve, por exemplo, a tuléria da sua tentativa de bater o recorde dos traidores ao levar cinco mulheres para a cama e fazer amor com todas elas, e o que aconteceu depois da sua vinda de Espanha. Uma artista de sexo feminino, levou-o para um cubículo, onde dois sofás ao comprido estavam transformados numa casa improvisada.
                                                           
Deve ter havido qualquer segredo no motivo por que o empregado de mesas António Ferreira, aceitou juntar os trapos com a camareira chamada Mimi, que era desajeitada, feia e estrábica. É uma verdade que o fez, em grande parte, para ter alguém que lhe tratasse das suas boas roupas e lhe fizesse de comer. Mas podia ter casado com a filha do pronto-a-vestir, a bela e insinuante Júlia de S. Vítor - Campanhã. A sua ligação a Mimi acabou por ser um bem repartido. António Ferreira, empregado de mesas, nasceu no Porto, em 1942. Determinado a viver no meio de uma certa burguesia e do espírito boémio, Ferreira mandou-se para a restauração e andou empregado em estabelecimentos bastantes medianos. Teve o efeito contrário: o inexperiente empregado tornou-se refilão, gastador e boémio. Aos vinte e oito anos envolveu-se numa aventura com outra camareira, Raquel, e os filmes que lhe contou tiveram de ser recambiados por outros. Ferreira fez-se amigo de um grupo que se empregava na noite e apostou forte nessas amizades, do qual faziam parte o chefe de mesas Pinto, futuro proprietário de um clube noturno que breve ia abrir — numa das artérias com mais estabelecimentos de diversão — e acabou por ser contratado. Começou a criar amizades. Comprou um carro — e quando viu o dinheiro a crescer-lhe — encheu o guarda-vestidos de fatos e camisas. Aos 30 anos, Mimi, conseguiu finalmente convencê-lo a terem um filho. Concordou, sob a condição de ser ela, a sustentá-lo. Mimi, era desajeitada, feia e estrábica, e sofria de problemas de figadeira — possivelmente em resultado das muitas bebidas alcoólicas que bebia nos alternes. Raquel, então amiga de Ferreira, insistiu com ele para que se amantizasse com Mimi, em vez de escolher a insinuante Júlia de S. Victor – Campanhã, porque seria uma rival de menor relevo. Numa noite fria de Fevereiro, na Marisqueira Teia, Ferreira conheceu Mimi; ficou atordoado. Retirou-se cambaleando para o balcão e pediu um uísque. Prosseguiu a beber uísques, durante dois dias, até juntar os trapos. Na primeira noite, parece ter cumprido o seu papel de amante, porque Mimi descobriu logo que estava apaixonada. Contudo, Ferreira achava-a fora de moda e mantinha-se quase sempre afastado dela, só a levando à noite no carro para o trabalho. Apoiada pela sua vontade, Mimi, foi alugar uma parte de casa numa paralela à Rua da Constituição, comportando-se de modo a que as vizinhas lhe chamavam a «senhora completa». Tinha no quarto uma figura grega provida de um mecanismo que, quando ligava a pilha, mostrava o instrumento sexual em movimentos obscenos. Em 1978, os boatos de que o filho de seis anos, que vivia com eles, era seu filho ilegítimo, levaram Ferreira a uma depressão interior que o atormentava, sempre que olhava para o filho. Porém, algum tempo depois, Mimi, jurou por todas as almas da terra, que a criança era seu filho legítimo, que fora fruto do seu amor. E o assunto ficou por ali. Mimi e Ferreira iriam se separar, mais tarde, depois de um esgotamento conjugal, protagonizado por quezílias, perseguições e abandono. Finalmente em 1980, num pub entretido a tomar uma bebida, pasmou o seu amigo ao lançar um piropo atrevido à jovem empregada de bar, uma rapariga graciosa chamada Caty. Este idílio inesperado, de frases quentes e extremamente atrativas, parecia ter vindo na hora certa. Namoriscou com ela pela Foz, Ribeira, Campo Alegre e Antas, e quando se conheceram melhor, fixaram-se num quarto, na zona alta da cidade, comportando-se como marido e mulher. Fernando Almeida, seu amigo, — que o tinha auxiliado na separação com Mimi — percebeu logo que Caty, poderia bem ser a rapariga ideal para Ferreira. E Ferreira queria-a mesmo a valer. Por isso, o entendimento foi recíproco.

O enforcamento do empresário Rufino M do Porto, depois de ter extraído um rim há doze anos, tem sido falado como a maior desgraça vivida dos tempos modernos. Se Rufino M tivesse vivido, teria comercializado um negócio decadente. O comércio dos eletrodomésticos havia dominado o Mundo durante muitos e bons anos. Contudo, em meados do milénio, tinha-se expandido de mais, e grandes mudanças económicas sufocaram a velha estrutura, e já não era o mesmo que dizer que era a galinha dos ovos de oiro. Rufino M tinha obstinação. Nascido na cidade Invicta do Norte, casou com uma rapariga educada, inteligente e ambiciosa, que lhe deu um filho. Quando Rufino M passou a patrão, orgulhava-se da quantidade de conquistas amorosas que fazia, anotando os seus nomes numa agenda de bolso — a branco as sérias, a vermelho as prostitutas. Gozou-se dos engates e das amantes, e sentiu-se atraído por negócios noturnos. Mais tarde, confirmou aos amigos, que a noite era a sua fonte iluminante. Era realmente bastante notívago. É possível que em certa ocasião tivesse contraído uma doença venérea. O certo é que contraiu a doença dos novos-ricos — o divertimento e o gozo. «Parecia gostar de tudo aquilo em que se metia», diz um amigo. A mulher, pacientemente, passava a maior parte do tempo à frente dos eletrodomésticos, sempre em sobressalto. Rufino M foi ficando cada vez mais noturno e boémio e começou a deitar-se a partir das quatro horas da manhã. A sua relação com a mulher começou a tornar-se cada vez mais amarga. Começou a abandalhar-se, de modo pouco empenhado, a separação da sua mulher. O grupo dos seus amigos noturnos eram uns pacholas e não tinham cabidela em meter-se nos seus problemas pessoais. Nessa altura já ele estava divorciado. Romy era uma jovem elegante de origem fidalga, cuja área comercial tinha cruzado com os negócios de Rufino M. Ao vê-lo em grupo, ficara loucamente apaixonada por ele. Através de uma amiga, conseguiu ser-lhe apresentado na loja dos eletrodomésticos. Rufino M não era homem para perder a oportunidade de se bater a uma rapariga quando esta se lhe oferecia aos seus olhos; tornaram-se logo amantes. Em Março, nos inícios do ano 90, Rufino M recebeu as análises clínicas. Quando as pôs no armário, ouviram-no comentar: «Estou perdido. Não me safo desta». Passou o resto do dia na sua residencial a olhar para a porta da rua, partindo depois ao escurecer para O Bar do Traidor. Sabia que lá encontrava sempre alguém para conversar, e partira no seu carro, dando uma volta pelo quarteirão. Tudo parecia demasiado escuro e os seus olhos eram apáticos. Encontrava-se numa encruzilhada. Rufino M tinha sido convidado para uma festa de aniversário de O Bar do Traidor, e aceitou. Nessa noite conversou com vários amigos, enquanto era cumprimentado por várias prostitutas. Quando o bolo foi cortado, o amigo de Rufino M, Abraão, pegou na viola e cantou uma rapsódia para eles: «Estava sentado num banco do jardim e nisto vi uma linda e bela moça que morava num modesto e lindo quinto andar...» Conversaram então de muitas coisas, uma delas, se a vida devia ser curta ou comprida e acabaram por não chegar a uma conclusão. Quando Rufino M foi para a residencial e fechou a porta do seu quarto para dormir, decidiu-se esganar entre dois lençóis entrelaçados ao pescoço. O corpo foi descoberto pela empregada de quartos, por volta das dez horas da manhã. O Mundo da Noite ficou profundamente abalado com a notícia. A princípio, a informação que saiu cá para fora era a de que Rufino M tinha morrido com um ataque cardíaco, mas não se pôde esconder a verdade por muito tempo. Houve um burburinho à volta do caso sobre o motivo da morte de Rufino M, uma vez que cometera um suicídio. O seu corpo foi sepultado no cemitério local. Ainda não é claro o motivo pelo qual Rufino M se matou e porque é que, sendo cristão, escolheu morrer de morte antecipada. A resposta à última pergunta pode ser que, como era fisicamente debilitado, precisasse de algum antídoto para morrer mais cedo. Provavelmente não estava à espera de umas análises tão cruéis, porque tinha passado a última noite, na residencial, a divertir-se com umas amigas do antigamente. Parece provável que Rufino M estivesse tão ansioso por morrer como se a morte fosse para ele um bem desejado. Ele pode até ter pensado estar a fazer um favor a si próprio ao envolver-se no pacto do suicídio — ao fim e ao cabo, era um homem destroçado e sem saúde.

O estrondoso caso do vendedor de trapos de Penafiel parece quase uma peça de hábitos — o viajante que passou a vida a meter-se com mulheres de hábitos fáceis e acabou por ser mau com uma anã. Até o seu apelido do Grupo de Traidores, Cigano, tem um ar de dupla esperteza. Mas para a sua pessoa, e para os seus, foi um triste fiasco. Fernando Lano nasceu em 1946 e era filho de gente da terra. Desde muito novo o pai decidiu e pô-lo a trabalhar, e aos catorze anos, foi para caixeiro-viajante. Ali, em Penafiel, tornou-se amigo de um rapaz chamado Peixoto, que queria ser empresário de vestuário. Lano foi também apanhado pelo bicho da roupa. Num arraial da terra, Lano aceitou vender na feira e concluiu que preferia a rua ao parado. Aos vinte e três anos, depois de concluir o serviço militar no Ultramar, estreou-se como vendedor ambulante por conta própria pelas aldeias, e teve grandes vendas, o suficiente para decidir que vender trapos seria o seu destino. Tornou-se «um vendedor de trapos de ocasiões», uma espécie de ambulante de letra, do tipo que vende de porta em porta — embora o seu artigo fosse exclusivamente de baixo preço. Foi de arromba, quando adquiriu uma carrinha de caixa alta que correu o país, e utilizava-a como a sua — vitrina —, no expositor principal. Porém, a boémia estava-lhe nas veias, e quando andava em viagem ganhou o hábito de visitar os bares para tentar saber se alguma das raparigas mais novas gostaria de comprar umas roupitas novas. Numa altura chegou mesmo a meter uma jovem de dezassete anos na vitrina, ajudando-a a vestir um curto vestido numa noite calorenta; deu-lhe uns roços de marmelada; empurrou-a para cima das roupas e, como resultado da excitação, «emporcalhou» as calças. Segundo a jovem, «emporcalhou-se por duas ou três vezes». Por volta dos trinta e dois anos decidiu tomar conta de um café e, com a ajuda da mulher e dos filhos, conseguiu ganhar um sustento para os seus. Embora estivesse a maior parte do tempo fora de Penafiel, regressava só aos fins-de-semana, para pôr a sua escrita em dia. Em 1983, foi visitar a zona de Trás-os-Montes. Sob a apresentação do empresário Peixoto, a quem uniu em batizado ao filho mais velho, foi-lhe concedido um grande lote de roupas, à conta consignação, o que era uma excelente oportunidade para ver o seu lucro subir mais de cento e cinquenta contos por mês —, subindo mais tarde, para trezentos contos, o que era uma excelente quantia. Em 1985, (Ao seu primeiro fornecedor só tinha pago uma terça parte do seu crédito.) Pôde envolver-se com uma bonita transmontana que conhecera no bar e com quem esteve comprometido durante dois anos. No decurso de três anos seguintes, presenteou-a com umas boas fajardices. Mas ela não o deixou em sossego, e deu-lhe água pela barba. Teve mesmo de cavar. Em breve, passou a fazer viagens mais longas, vendia para raparigas da má fama, e alargou o seu leque de amizades. Era extremamente vivaço e atraía as donas das casas de massagens. Tornou-se depois conhecido por o «cigano-dos-trapos», começando a visitar os cotés das prostitutas. Ratazana, barman, de O Bar do Traidor, que o conheceu, consta que só não comia aquelas que evitavam cruzar o seu caminho, que não queriam ir à vitrina para uma prova de trapos, embora também fosse corrido por muitas delas. Durante a fase áurea das suas vendas, fez-se passar por empresário e até estilista, tornando-se conhecido pela sua grande lata ao engatar raparigas de bares e organizar grandes farras, em horas pouco oportunas. É verdade que sentia enorme gozo em usar a sua experiência, e quando as donas de casas das massagens levantavam a voz, mandava-lhes bater a bola baixa, recorrendo às companhias que o rodeavam. Durante a festa de S. Martinho, em Penafiel, fugiu à polícia numa rusga a um bordel, montado num jerico. Quando voltou a casa depois da festa de S. Martinho, ficou contrariado ao encontrar o proprietário do café para novo contrato de arrendamento — disse mais tarde a alguém que era um negócio de tostões e de livro aberto. Foi o fim da exploração do café. Uma tarde, já tardinha, em Outubro de 1988, encontrava-se Lano na Rua de António Cândido, quando viu um táxi parar à porta do bar e uma rapariga de belas curvas, modestamente vestida, que parecia vir ao seu encontro. Perguntou-lhe se não se tinha enganado na pessoa e ela disse que vinha de mando do barman do bar, substituindo uma amiga sua. Lano nem esperou por mais. Enfiou-a na carrinha e foram para longe, para uma pensão próximo da praia de Lavadores. O nome da rapariga era uma tal Paula, de dezoito anos; tinha acabado de tornar-se prostituta, mas não era ainda muito badalada. Passou a ser uma das preferidas de Lano; este arranjou-lhe umas roupitas leves e vistosas e tentou arranjar-lhe uns amigos da onça. Paula foi uma das muitas de uma longa lista de raparigas jovens que Lano ajudou a «entrar pra vitrina». Durante os próximos anos seguintes (admitiu mesmo, mais tarde, que anualmente levou para a cama mais de cento e vinte a duzentas raparigas. O método ideal do vendedor de trapos consistia em aproximar-se de uma rapariga num bar — eram conhecidas por «mamonas» e dizer-lhe que parecia tão mal vestida e se fosse com ele à sua vitrina e fosse grata, lhe daria uma roupa nova. Tornou-se figura ingrata de algumas casas e foi ameaçado por algumas raparigas que queriam cobrar o serviço. O seu maior triunfo era, sem favor, parecer ter uma grande argumentação. Era uma homem de estatura média, de tez morena e cabelos brancos, com uma voz grossa e modos saloios e um grande repertório. Parecia uma figura de vigário. As raparigas sentiam normalmente que não havia nenhum problema em ir para a mesa tomar uma bebida com ele; além disso, podia, conforme queria fazê-las subir ao quarto. Um caso bizarro destas relações foi a que manteve com uma atraente rapariga branca chamava Brigite, de trinta e quatro anos. Em 1989, em Valongo, quando Brigite ia a sair do táxi, foi contra Lano, que ainda teve tempo de lhe dirigir estas palavras: «Desculpe, menina, mas já alguém lhe disse que é boa a dar encontrões na rua às pessoas, quase me estatelava?» Brigite trabalhava num apartamento de uma amiga e passava os dias a atender chamadas de clientes para uma massagem erótica. Sem hesitações, aceitou ir com o homenzinho de olho vivo até ao café mais próximo da esquina; onde o ouviu, atraída, enquanto ele a elogiava e lhe dizia que com os seus vestidos devia ficar muito mais jovem. Brigite não tinha homem e estava a viver com a mãe numa velha casa, em Rio Tinto. Estivera casada quinze anos com um serralheiro que lhe pôs a vida num molho — o serralheiro foi parar a Custóias. Esteve a trabalhar em cabarés, e mais tarde, em bares até cair na prostituição, quando Lano a conheceu. Este deu-lhe alguns conjuntos do mostruário, levou-lhe lá uns amigos dos copos — embora ela preferisse fazê-los através das chamadas. Segundo Brigite, Lano montava-a sempre que ela estava sozinha, e punha-lhe as mãos «por tudo que abanava». Numa ocasião em que estava sem cheta e sem trabalho, Lano disse-lhe que podia ir para casa de uma amiga aviar, perto do bairro, enquanto não arranjasse melhor. Mas uma semana depois arranjou-lhe um velho rico, dizendo que podia ser o seu Messias. Nessa noite foi com o velho rico aos fados e dormiu com ele. Depois mudou-se para casa dele, sujeitando-se a ficar por sua conta, até que por fim entrou em rutura por se cansar dos abusos dele, e pôs fim à ligação. Por meados dos anos 90, os hábitos de Lano começaram a criar-lhe dificuldades. Em primeiro lugar, conheceu um membro destacado de O Grupo de Traidores, um tipo apelidado de Champalimão, a quem as mulheres da noite afirmavam ser o-rei-das-notas. Lano entrou no circuito das amizades de Champalimão e, falou-lhe nos seus esquemas fatelas. Apresentou-o a outras bonitonas de categoria, e fez os possíveis, para elas o convencerem a sair com ele. Algumas sacaram uma porrada de dinheiro. Lano aproveitou-se da confiança dos amigos de Champalimão e começou a pedir empréstimos de dinheiro, com prazos definidos e, antes que fosse tarde, pirou-se para lestes, ficando tudo a berrar. Um terço da vida foi destinado a fugir dos seus credores. A sua família estava sempre longe das suas manobras e, ninguém conseguiu saber da sua morada. Lano era um cravador nato, que lixava os amigos frequentemente com os seus pedidos de empréstimos sem retorno. Mas embora os amigos soubessem do tipo de Lano por mulheres da vida — nunca tiveram a mais pequena dúvida de que era unicamente um interesse de mulherio. Passava a maior parte das tardes, ora na companhia dos amigos dos copos, ora na companhia das senhoras donas das casas de passe — embora estas incluíssem as próprias estrelas da companhia. É evidente que parecia não fazer segredo das suas atividades mundanas. Em Outubro, desse mesmo ano, Lano foi interveniente de um caso polémico. O ex. industrial de madeiras de nome Faria negociou com Lano a venda de um lote de variadas roupas e tecidos por setecentos e cinquenta contos a olho nu. A seguir recebeu um cheque pré-datado, e como era de esperar, o cheque foi parar ao Infante. Faria considerou este ato como uma «vigarice» e apresentou queixa contra Lano, ao chefe da esquadra local. Este processo arrastou-se por meses sem fio, entoando as promessas «dê-me só mais um mês» e, por aí adiante. Tinha tanta tendência para contar fita americana e os seus filmes e argumentos eram prejudiciais para o seu caso. Ora acontece que Faria estava revoltado em relação à vigarice de Lano, e por tralhas e malhas, conseguiu saber a morada de Lano e, deu ordem ao Tribunal para avançar com o arresto aos bens de Lano. Por isso, quando a guarda bateu à porta, a primeira reação de Lano foi dizer que tudo o que estava na sua casa já não lhe pertencia, por que fora vendido a terceiros, conforme documentação vista. Depois, falou mais calmamente no caso, e disse que não havia nenhuma necessidade de lhe criar escândalo diante da vizinhança, e decidiu que passava novo cheque e, que desta vez, é que era para valer. Faria encarou esta hipótese como uma possibilidade de reaver o seu dinheiro, dizendo-lhe que, se o cheque voltasse a vir para trás, jamais lhe perdoaria, e cancelou o arresto. Como resultado, no mês seguinte, quando Faria chegou ao banco com a intenção de levantar o cheque, ficou em pólvora ao ver o empregado bancário anunciar-lhe: «cliente com conta em zero». A partir desse momento, Lano foi notícia na primeira página do pasquim O Jornal Dos Traidores, e davam alvíssaras para localizarem o seu paradeiro. O caso de um vendedor de trapos mulherengo, levando para a cama, sem cerimónia, empregadas de sala e bar animou as hostes lordescas. Pela primeira vez desde que se tinha ausentado por um invariável tempo, Lano foi abordado por uma senhora ligada à moda, que em tempos Ratazana lhe tinha proporcionado um esquema «cinematográfico». Chamava-se Paula e era uma quarentona de levantar o cabelo. Contou a um pequeno grupo de amigas como Lano a conhecera, à entrada da sua loja, dizendo-lhe que parecia uma «Vénus da Moda». Continuou a revelar como é que Lano teve talento para a levar para a cama e como tinha «aliviado os dois» na forma de fazer amor. Acontece que Paula havia tido tantos flirtes que não seria correto classificá-la como uma pega. Contudo, pelo seu conto notava-se que era sexualmente quente. Depois de Paula, houve uma quantidade de empregadas de bar que confirmaram que Lano as tinha «assediado». Parece que convidou a maior parte delas para fazer uma rapidinha na pensão, e muitas foram. Todavia, o exemplo mais incrível da imaginação de Lano para se beneficiar a si mesmo aconteceu no fim de Outono. Parece que uma anã, artista das artes-rápidas, chamada Tânia tinha uma inclinação especial por Lano e, numa ida à cama com ele, contou que recebera um cheque de cinco contos ao seu cuidado pelo serviço prestado. Lano tinha também pedido a Tânia que levantasse o cheque da parte de tarde. No dia seguinte de tarde, Tânia e outras duas raparigas foram ao banco onde um empregado lhe chamou a atenção e, fê-la olhar bem para o papel, pedindo-lhe para o ler bem. Tânia olhou, apalermada, sem acreditar, e disse que tinha sido vigarizada e gozada. Depois afirmou francamente não conhecer o significado da palavra «requisição». O cabeçalho do pasquim do bar anunciava: «Bomba de requisição passada como cheque». Quem pensasse por momentos no caso deveria ter reparado que Lano tinha uma imaginação inacreditável para falsidades. Depois de uma certa polémica envolvida, Lano desapareceu do mercado por um mês, para dar tempo ao abafamento do caso. Lano continuou a fazer das suas, dizendo com sorrisos que o Governo era amigo dos infratores. Quinze dias depois de andar por lá apareceu num espetáculo de striptease numa terriola do interior, e interrompeu o espetáculo com a afirmação de que era o Público que estava a ser enganado e não a artista. Privado do seu habitat corrente, Lano decidiu aceitar o convite do seu amigo Anão, o «Rei da Mobília-Feita», para levar os seus trapos à feira na Madeira. Ele e Anão entrarem em sintonia, porque eram os parceiros ideais para as suas atividades. Durante a noite, numa visita aos botequins do Funchal, Lano aproximou-se de duas prostitutas e disse-lhes que estava à procura de duas jovens para modelos das suas roupas numa passarela de moda no Continente, e ofereceu-lhes saias e t-shirts para se submeterem a provas de estilo. Marcaram encontro com elas para o quarto do hotel, mas quando quiseram aproveitar-se delas, os gritos eram tantos, que tiveram que fugir, antes que a polícia aparecesse. A sua presença como dançarino de rumba à moda «Cantinflas» aumentava a sua popularidade sempre que frequentava locais de dança. Quando o dono de uma danceteria o convidou para um concurso de dança, foi anunciado como «Senhor Rumba no seu rodopio». Foi uma oportunidade boa, visto que tinha gosto pela dança. Depois de entrar na pista, com uma rapariga aparentemente folclore, Lano ladeou a parceira e fê-la girar à sua volta. De repente, a parceira, desequilibrou-se e bateu no varandim da frente, estatelando-se no chão. O público soltou gargalhadas estrondosas. Então Lano pegou na parceira pelo cabelo como um domador e começou a arrastá-la à volta da pista. Enquanto um espectador tentava agarrar Lano pelo pescoço, o apresentador do concurso entrou na pista e agarrou o espectador por um braço, tentando fazer com que este o soltasse. O espectador largou o vendedor de trapos e o apresentador logo imediatamente anunciou ao público, que aquele número de dança era uma réplica do tango-apache. O apresentador parou o concurso e Lano foi levado para o camarim. Conta-se que estava branco quando estava a ser puxado para fora da pista e preferiu, com voz rouca: «Telefone para um táxi — ainda tenho tempo de passar o resto da noite em grande». Contudo, estava mais ou menos fresco, quando saiu da danceteria. Apurou-se mais tarde, que tinha fugido com a parceira para parte incerta da ilha. Em O Jornal Dos Traidores (1989), Abraão cita o incorrigível de sempre de Lano, e estava convencido de que ele era um caso típico «Múltipla aldrabice». Uma velha amiga de Lano comentava com toda a certeza deste de que tinha sempre ideias: «Não vale a pena dizer a um burlista que diz ser um pirilampo aceso, que não o é, porque ele há-de gastar o seu latim e ultrapassar a sua capacidade de raciocínio». O sinal, no caso de Lano, é a sua recusa em admitir, seja em que altura for, que em alguma vez não tem ideias. A realidade é que provavelmente como a maior parte dos «aldrabões», Lano era também um auto-impostor e um mulherengo obsessivo — algumas das cerca mil mulheres devem ter sido mais tolerância do que Tânia e companhia. «Fraterno amigo», uma das suas frases mais significativas da amizade. Gozou uma vida do qual se empenhou firmemente a levar. É a sua história que merece o nosso escrito.

O mais felizardo empresário portuense que surgiu desde a Revolução de 1974 é, sem dúvida, José do Pataco, criado e vivido na cidade do Porto, nos tempos da carqueja e dos candeeiros a petróleo nos lares. Como o mais comum dos cidadãos, Pataco levou uma vida agitada — estudante, militar, músico, vendedor e, depois, comerciante de artigos de escritório, lojista, autor, representante de várias marcas mundiais e, por fim, garagista de carros colecionáveis — depois de conseguir pensão da velhice aos 65 anos de idade, com uma vida refeita de novo e totalmente organizada. O seu primeiro negócio a sério, O Pataco, surgiu quando estava na idade rapazote-homem, no Shopping Center Brasília. É interessante observar que, nesta altura da abertura do centro comercial e do período que se segue, os líderes das marcas consagradas são privilegiados mantendo-se nos lugares de topo; ainda jovem, quando aprendeu a linha de orientação, Pataco mostra-se integrado no sistema. A sua loja situava-se na galeria de cima em frente para a portaria principal. Quando Pataco começou a trabalhar em O Pataco, dois anos depois, — e se tornou de repente um vencedor, — os comerciantes ficaram espantados como é que alguém tão novo era capaz de vencer tão convincentemente; recuperou finalmente muitas centenas de milhares de contos investidos antes de o quarto ano findar. Diz-se geralmente que os últimos anos do negócio são mais dolorosos que o primeiro. Catorze anos depois, O Pataco (1995), foi vendido surpreendentemente e, imediatamente surgiram novos rostos na loja e, depois de aparecer o primeiro zunzum sobre o negócio, começaram a espalhar-se boatos nos meios citadinos do Porto, que afirmavam que Pataco já não era o verdadeiro dono e que tinha fechado um ciclo ou uma mudança no qual baseou a venda. Em 1995, O Jornal Dos Traidores, publicou um artigo escrito por alguns amigos que anunciavam a «venda airosa». Confessavam alguns pagar-lhe uma garrafa de champanhe. Entretanto, Pataco, cheio de papel, era procurado por todos com propostas de futuros negócios. Em meados desse ano recebeu uma herança. Por essa altura, Pataco tinha-se tornado proprietário de uma casa chamada Laguna Bar, em Rio Tinto, um bar destinado a um público jovem que era aliciante para a época, talvez pela novidade perante o seu estilo, onde tem aos fins-de-semana o seu ponto mais alto de assistência. Pataco foi forçado a trazer de casa, o órgão, e uma quantidade de instrumentos para engrandecer o programa. O Karaoke foi-se aproximando numa rapariga de voz sufocante, que se identifica simplesmente por «M», à qual também veio a fazer parte do serviço de camareira às mesas. A maior parte das vezes, antes da abertura do bar, Pataco chegava mais cedo para ensaiar «M». Pataco era um sedutor infalível que não largava mão de «M» frequentemente com os seus piropos, embora no fundo do seu coração, soubesse do seu interesse por raparigas solitárias — nunca tivera a mais pequena dúvida de que aquela «M» preenchia o seu vago espírito. Segundo um artigo do pasquim do bar revelava que Pataco era um sortudo em negócios e amores. A sua vida conjugal teve várias nuances, mas sempre conseguiu sair-se delas a bem. Nos fins dos anos 90 tinha conseguido grande popularidade ao apresentar a sua banda musical chamada “Soprafestas”, e foi convidado para atuar em festas, casamentos e clubes variados. Nos inícios do ano milénio por afeto e ato a «M», com quem compartilhava a sua vida conjugal, passava a maior parte do tempo na companhia dela — e depois de se ter desligado do negócio do Laguna Bar, dedicou-se totalmente à banda musical. Uns anos depois, Pataco encontrou inspiração comercial ao envolver-se no negócio de uma garagem-oficina de carros antigos destinados aos colecionadores. Quando se reformou, encontrou de qualquer forma a sua tranquilidade, e na sua vivenda, usou como passatempo as redes sociais, omitindo artigos politizados de sua autoria, para os amigos. Dedicou-se em regime part-time a dirigir a sua garagem-oficina de carros antigos, numa zona estreita e escondida do Porto.

Doze vezes, num ano, na Primavera de 1989, o «chivo», Eduardo Eduardinho, um fafense de 52 anos de origem capitalista, que vinha gozar os prazeres mundanos à cidade, conseguiu evitar o rececionista da noite e pessoal dos quartos e entrar na Residencial Xangô. Na segunda vez entrou no seu quarto alugado com a moca e fechou-a com o trinco, deitando-se vestido. Enquanto ressonava, uma prostituta entrou no quarto, sentou-se a um lado da cama, tagarelando, durante cinco minutos, até ele acordar sobressaltado e corrê-la pelo quarto fora. O seu primeiro escândalo às seis horas e quinze minutos da noite de 3 de Novembro, foi bastante ruidosa. Calcou a terra lamacenta que limita o terreno do parque automóvel para entrar na Xangô, «releu» 25 páginas da revista «Play Boy» antes de subir e espreitou para o portão, quando viu chegar um Citroên2CV cavalos e abeirarem-se dele dois casais, que de seguida, se envolveram no jogo da galheta. A mulher que estava à frente foi a primeira a levar. Eduardinho, que estava encostado ao balcão a ler, nem pensou duas vezes quando viu a mulher correr em sua direção. Puxou do seu pequeno revólver de 9/m e disparou três tiros para o ar, intimidando os sujeitos, que rastejavam através das sombras para entrar no carro. Uma vez lá dentro, puseram o Citroên2CV cavalos a mexer, mas nessa altura, Eduardinho agarrou-se com força titânica ao para-choques e o carro recuou... Entre arranques e recuos, finalmente o carro arrancou e meteu-se no escuro, enquanto Eduardinho conseguiu voltar para trás e ir para o seu quarto, sem ser incomodado. Na noite de 5 de Novembro, bebeu (foi ele mesmo a admitir) sete ou oito aguardentes CRF, nas visitas que fez aos bares mais conceituados da cidade. Da última vez entrou num bar conhecido que, quando o barman o viu, serviu-lhe logo uma CRF em copo de balão aquecido e, pagou com uma nota de cinco contos — mas, por falta de trocos, o barman devolveu-lhe a nota e Eduardinho pô-la em cima do balcão e saiu, com um até já. O que veio a seguir deve ter sido um fiasco de todo o tamanho. Quase tão surpreendentemente, Eduardinho voltou a entrar no bar e bebeu outra CRF. Uma vez lá dentro, andou por ali, parou ocasionalmente para cumprimentar quem passava por ele e matutou nas contas que tinha efetuado antes. Contou o dinheiro, e viu que lhe faltava uma nota de cinco contos. Nessa altura, sentiu-se lesado e, por isso, foi ter com o barman tentando alertá-lo de que alguém ali dentro da sala, e apontou um deles, por sinal, seu conhecido, que lhe teria sacado uma nota de cinco: que também ele não tinha bem a certeza. Por isso, com invejável à-vontade, começou a dizer que ia chamar a polícia para tentar detetar o gatuno. O barman saiu do balcão apressado. Eduardinho voltou a pedir-lhe o telefone para chamar a polícia, «a polícia, a polícia», como gritou. «Muito bem», disse o assustado e inconformado barman. «Mas deixe que os clientes saiam primeiro, senão levo uma multa por excesso de horário» —, e com uma grande habilidade foi esvaziando a sala, até chegar a polícia. Depois de o barman ter contado ao polícia o que aconteceu no bar, tinha descrito Eduardinho como «muito perigoso para qualquer uma pessoa e para com quem não gostasse...», o que foi interpretado como um sinal de aviso. O polícia aceitou a referência e deixou o caso nas mãos do barman. Era óbvio, que não se podia incriminar ninguém sem provas. Por sua vez, depois de Eduardinho ter admitido não ter a certeza de quem lhe tinha roubado, entrou no caminho das suposições e saiu pela porta fora. Meia hora depois, o barman fechou as contas do dia. Sobravam-lhe cinco contos. Então, veio-lhe à cabeça, que não tinha dado o troco da despesa da tarde a Eduardinho, nem este se tinha lembrado de o reclamar. O escândalo do roubo da nota de cinco contos, que obviamente não existia, foi comentado mais tarde por O Jornal Dos Traidores, a 13 de Novembro, numa das maiores «broncas» do bar, afirmava com grande destaque: «O barman esqueceu-se do troco», e mais adiante: «Cliente quer prender um conhecido». Tempestade estala sobre um copo de água. Como recebeu a nota de cinco contos que o barman se desculpou com o esquecimento e foi-lha devolver ao quarto, Eduardinho disse: «Tinha andado por aí com tanto dinheiro no bolso e não me lembrei de ter deixado uma nota àquele beleguim (barman). Quase prendia um inocente... Eu podia ter dado um tiro em alguém ou até um murro... Passei por maus momentos». As palavras de Eduardinho serviram para encerrar o caso, para dizer que não voltava a acontecer.

Jorginho Amorim, talvez o mais extraordinário vendedor de brindes do Norte, foi praticamente destruído pelo azar ao ser-lhe amputado uma perna que aconteceu nos anos 2000. Amorim, era um homem aberto, mexido e de palavra fácil que proferia conversas quentes e cheias de fanfarronices. Era considerado no Arquipélago da Madeira com quem se associara a um partido local para vender os seus artigos como um senhor tripeiro, e as pessoas madeirenses achavam-lhe piada por ele ter uns calões próprios e dispor bem quem o quisesse ouvir. Amorim nasceu no Porto e andava entre os cinquenta e três anos. Os ascendentes de Amorim eram tripeiros. Frequentou a escola no Porto, entrando depois em cantorias e vendas de material de escritório. Jovem ultra-brigão, convenceu-se que as cantorias o iam levar longe. Aos dezoito anos seduziu uma boa série de fãs com o seu romantismo à Nelson Ned, abandonando-as de seguida. Depois disso, cumpriu a tropa e foi ao Ultramar, e, quando voltou, afirmou, ficar sujeito a crises de depressão nervosa. Com vinte e três anos deitou ao chão dois malandros que tentaram empurrá-lo para fora do bar e foi expulso de lá voltar. Treze anos depois, tornou-se proprietário de uma firma de brindes e outros artigos de papelaria. A ideia de entrar para o negócio dos brindes parece ter sido tomada de repente e sem ninguém contar. Numa noite de Outono, Amorim foi tomar um copo a um bar, no Porto; estava muito calado, contrariando o que era habitual (normalmente era exuberante e palrador). A discussão ao balcão voltou-se para os brindes e para as próximas novidades para a Páscoa e Jorginho observou, de repente: «Carago, seria uma grande oportunidade para mim apresentar o meu Cu de Judas para entrar para o Guiness!». Os clientes ficaram boquiabertos com a sua saída, não porque não contassem com a sua malandrice, mas com o Cu-de-Judas. A expressão «Cu-de-Judas» fora inventada ali mesmo. Quando um cliente lhe pediu uma opinião sobre o Cu-de-Judas, Amorim respondeu com arrogância que não tinha nada a «acrescentar». Um repórter dos maus-olhados do pasquim do bar descreveu-o como «um tipo duríssimo e de luas, mas tão irremediavelmente sabichão...», e acrescentou que parecia não ter nenhuma capacidade para a conversa disciplinada. Aceitou uma proposta de um cliente-do-bar, de alcunha o «Cigano», para um orçamento de uma encomenda para um milhar de t-shirts ilustradas com publicidade. Amorim começou então a usar uma calculadora e pediu cinquenta por cento do valor orçamental à vista, para raiva do cliente-do-bar, que tentou alargar o prazo, mas Amorim não se deixou ir no filme. A sua frieza e desdém impressionaram o cliente-do-bar; um dia depois interrompeu a hipotética proposta, comentando de cabeça quente que nem ele nem iguais a ele faziam negócios com ele. Esse facto fez de Amorim o herói do dia, pois constava-se que se fizesse o negócio, iria receber ao Tota! Na década dos anos 90, Amorim sofreu o seu revés mais sério. Quando uma mulher de cor estacionava no Pub Vip, Porto, uma sedutora voluntariosa e alternadeira de passagem, e foram ambos atraídos por um bichinho que se chama «atração sexual». Em breve, Amorim visitava regularmente o VIP e os dois tornaram-se inseparáveis. Uma grande nassa monumental selou este acontecimento. O escândalo foi enorme. Mas a atitude de Amorim para com a alternadeira manteve-se desconfiada e ciumenta; houve uma vez em que se disfarçou de detetive e escondeu-se num carro de um amigo. Este tipo de façanhas divertia-o, mas foi ficando pouco a pouco cansado do seu ciúme e também de um certo tato. Depois de uma ligação fortuita com a amante de um amigo dos copos — a quem decidiu colocar a sua chancela — ele e Sónia foram para um lugar escondido e ela foi recompensada. Gastou imenso dinheiro com as prostitutas. Foi destruindo a sua saúde aos poucos nas viagens que fazia entre Porto e a Ilha da Madeira. Um dia, o seu apetite foi aguçado por uma negrinha que havia poisado por curiosidade em O Bar do Traidor, por indicação do chulo. Diz-se que Amorim afirmou ser uma das mulheres com quem havia dormido. Por essa altura foi apresentado o romance escrito por Abraão: «O Pasquim do Lord» e também uma curta-metragem dedicada a ele, interpretada por Conde do Pincel e Ratazana, sob o título: «Um Gosto a Cheirar ao Torrado», que obtivera uma crítica favorável. A curta-metragem foi apresentada no YouTube. De volta à Madeira, Amorim foi profundamente abalado com as crises do partido e a política na região. Fez mais tarde o seu comentário no ambiente noturno, dizendo que qualquer dia, iria viver para o Brasil, país onde tinha laços sentimentais com as mulheres que conhecera na noite. Por volta da entrada do milénio a sua reputação era mais baixa que a venda dos seus brindes decaiu, tendo um aspeto bonacheirão e avermelhado de rosto que parecia um Pai Natal alcoólico, apreciador de uísque e amante da noite. Por volta do Verão desse ano, Amorim analisava agora que era um homem só e ansiava pela reforma. Travou conhecimento com um grupo de rapaziada jovem para travar um pouco a solidão. Um ano depois, viu as análises no consultório que detetavam uma grande subida dos diabetes e Amorim respondeu de forma irritada: «Estou no fim de uma decadência». Ao sair do consultório, nesse dia, Amorim ripostou: «Não tenho preferência a chegar a velho». Dois dias depois de ir ao bar do desconhecido autor de contos deslumbrantes da noite conhecido por Ratazana, confessou ter que abrandar o ritmo do álcool. Quando prometeu deixar de beber não conseguiu: mas tinha tentado. Era um grande martírio para ele ser excluído da bebida e do fumo. Esta é a história de Jorginho Amorim, tratada provavelmente de maneira sentimental. Um amigo de Amorim, Ribeiro afirma que estava presente no seu último encontro, que foi um almoço de convívio do Grupo de Traidores — o que é provavelmente mais próximo da verdade. O que parece correto é que Amorim não estava à espera de um prognóstico tão ruim. Parece ter ficado abalado desde o dia que fora ao médico. Agora sentia um desalento total. É provável que Amorim se tenha lembrado da mãe, aquém adorava mais do que tudo na vida. Meses depois, de saber que tinha de ir à faca, Amorim escrevia no seu diário: «Não consigo estar muito tempo a trabalhar sem pensar em mim, por isso vou-me submeter à operação esta semana no Porto». Três dias depois, Amorim foi internado no hospital e foi-lhe amputada uma perna.

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