CONTOS
DE RATAZANA
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17.
Episódio
Como o luto dos amigos do Faísca enlutou
a povoação. Como os amigos se foram embora sozinhos
A
morte é um caso pessoal que provoca dor, agonia ou desespero. Os enterros, por
um lado, são funções sociais. Imagine-se ir a um funeral sem primeiro dar
brilho aos sapatos. Imagine-se estar-se junto da campa sem se levar o melhor
fato escuro e vestido a melhor camisa branca, primorosamente adornada por uma
gravata preta. Ah, também não pode esquecer-se, de levar flores para um funeral
sem fazer acompanhar o ramo de um cartão para se provar que se fez a atitude
correta. Calcule-se o choque se, nos velórios, não se usasse uns bancos de
madeira ou umas cadeiras para as pessoas se sentar, mesmo de assento duros.
Não. Moribundo, um homem pode ser amado, odiado, chorado; mas, uma vez
falecido, passa a ser o principal ornamento de uma celebração social e formal. O
Faísca estava morto há um dia; e já deixara de ser o Faísca. Embora o rosto das
pessoas estivesse sentidamente abatido pela tristeza, havia alvoroço nos
corações. A Comarca prometera um funeral simples a todos os seus filhos
nascidos e criados na terra que o desejassem. O Faísca foi o primeiro
sem-abrigo da terra a morrer e o povo estava pronto a pôr em marcha as
promessas da Comarca. Já se tinha informado as entidades, e o corpo do Faísca
tinha sido embalsamado a custo da Comarca. Já se tinha tirado os despojos da
casa do Faísca e entregue aos amigos, incluindo o cão, e feito uma limpeza à
casa que fora colocada, à espera de novos inquilinos. Já fora redigido o adeus final referente a quinta-feira:
«Faísca,
foste um carola da gente. Um camaradão. Partes como um guerreiro.»
Na
noite do segundo dia, os amigos estavam reunidos na casa do velório. O choque e
o vinho tinham passado; estavam exaustos, visto que, em toda a Comarca, só
eles, os amigos, é que mais tinham amado o Faísca, que mais tinham recebido do
seu coração, só eles, é que faziam parte da sua família. A impaciência que se
lhes esvaziava do corpo era frenética. Amaldiçoaram o dia. Pela porta do
velório viam alguns moradores afastarem-se dali. Os amigos estavam sentados, de
mãos dentro dos bolsos das calças, torturados pelo seu mau dia. Todas as ideias
tinham sido postas em discussão. Pela primeira vez na sua vida, o Pipocas
descera ao absurdo.
—
Cada um de nós podia, esta noite, ir engatar uma gaja — sugeriu.
Sabia
que era uma proposta doida, pois nessa noite todos os sentidos estariam
vocacionados para o luto. Era bronca certa engatar uma gaja.
—
O Motel do Pedaço às vezes dá dormida às gajas soltas — disse Very nice.
—
Já lá estive — retorquiu Pascácio. — Desta vez têm meia dúzia de gajos, mas nem
uma gaja.
De
todos os lados não havia volta a dar-lhe. Nino Cardoso entrou com o seu novo
lenço vermelho enrolado no pescoço, mas o ambiente que encontrou fê-lo rumar de
volta dizendo já volto.
—
Se tivéssemos mais uns dias à nossa frente, podíamos ir à Senhora do Porto —
disse o Pipocas sem cerimónia—, mas o funeral é amanhã. Temos de nos concentrar
nas horas. Não podemos deixar de ir ao funeral.
—
Então? — quiseram os outros saber.
—
Podemos ir visitar as nossas amigas, enquanto elas ainda estão de pé. Há sempre
uma pinga para oferecer. Podemos deitar-nos com elas e dividi-las por todos,
como fez o Cristo.
Os
amigos olharam para o Pipocas com admiração. Sabiam como o seu fino traquejo
tinha estado a pensar todas as soluções. Mas a presença no funeral era importante.
Era a melhor homenagem que se pode prestar a um amigo. Deixaram as coisas neste
ponto, mas sentiam que não tinham hipóteses. Durante a noite vaguearam pelas
ruas. De manhã, a campa no cemitério que iria receber o corpo do Faísca estava
quase coberta por montes de ramos das mais bonitas flores dadas pela maioria
dos moradores do Marco de Canaveses. Quis
a natureza que o dia de quinta-feira, o tempo estava bonito. O Sol raiou como
se nesse dia fosse haver um piquenique. Os pássaros voaram através do espesso
monte para as grandes árvores e pinheiros. As lojas do comércio fecharam meia
portada em sinal de respeito pelo falecido. O barbeiro pôs um letreiro na
janela: «Volto daqui a pouco», e foi para casa equipar-se para o enterro. Um
camião entrou na rua carregado de pipas de vinho. O Papagaio pintou o casco e mudou-lhe
o nome para «Faísca». José Gabardines, o guarda-noturno, prendeu um casal de
motoqueiros no trequibrec, deixou-os
ir embora e bebeu duas ginjinhas. Os amigos do Faísca acordaram melancólicos e
levantaram-se da sala, improvisada de camas, na casa do Pipocas. No lugar do
Faísca estava apenas o cão, de orelhas em baixo e olhar triste. O Sol aqueceu
com entusiasmo e colou no chão as delicadas sombras das teias das aranhas.
—
O Faísca ficava tão feliz em manhãs como esta — disse Catanada.
Depois
de terem ido à ravina, os amigos sentaram-se por uns momentos, como de costume,
no quintal e elogiaram a lembrança do amigo. Honestamente, recordaram e
anunciaram a virtude do Faísca. Honestamente, esqueceram-se dos seus defeitos.
—
É ágil — disse Pascácio. — Ágil como uma lebre. Era capaz de correr as ruas para
vender um santinho.
Contaram
pequenas histórias acerca do Faísca, da sua bondade, da sua lealdade, do seu
bom coração. Em breve se fez horas de irem para a igreja. Atravessaram a rua
albergando uma roupa de cada cor. Cheiraram interiormente tanta Água-de-Colónia
dos outros que até aspiraram. Do seu lugar de observação viram o grupo coral da
igreja interpretar uma música missal. O sonoro oh-oh das gargantas dos coristas encheu de ânimo o coração dos
amigos do Faísca. Viram o caixão ser colocado em cima da carrinha fúnebre e
ornamentado pela bandeira dos Sem-Abrigos que o cobriu. A carrinha fúnebre movimentou-se.
Atrás, num passo imponente, caminhavam os homens e mulheres aprumados e de
olhar sério. Toda
a gente estava lá, Xanana Maluca, a Senhora do Porto, o Papagaio e a sua
rechonchuda cara-metade, Nino Cardoso, o fugitivo, Roque, José Gabardines e o
Barbeiro. Enfim, todos, os que na Comarca valiam alguma coisa e também os que
não valiam coisa nenhuma. Durante o percurso, os amigos foram pelo passeio
fora, um tanto colados ao muro, sustentados pelo heroísmo. Foi uma cerimónia
breve e simples. Baixaram o caixão; as pessoas deitaram os olhos na terra. Very nice, baixou a cabeça e desatou a
chorar e, ao ouvi-lo, o Vigília atirou a cabeça para trás e pôs-se a uivar. O
Pipocas ficou orgulhoso do seu novo companheiro! A cerimónia acabou depressa
demais; os amigos afastaram-se rapidamente para que as pessoas não os topassem. Ao
irem para casa passaram pela adega do Papagaio. Catanada entrou pelo postigo
aberto e trouxe duas garrafas de uísque. Depois, dirigiram-se lentamente para a
acolhedora casa do Pipocas. Encheram com cerimónia as tijelas e beberam.
—
O Faísca gostava da pinga — disseram. — Era feliz quando bebia uma boa
pinga.
A
tarde passou e a noite chegou. Com o uísque bebido levou-os a navegar pelo
passado. Às sete e pico, um tímido Nino Cardoso entrou, trazendo uma caixa de
cigarrilhas que lhe tinham oferecido. Os amigos acenderam as cigarrilhas e abriram
a segunda garrafa. O Pipocas tentou entoar algumas notas do tango «Adeus Muchachos...»
para ver se a voz estava nos trinques.
—
Hoje a Xanana vinha sozinha — disse Catanada especulativo.
—
Talvez não fosse mal de nossa parte irmos cantar umas cantiguinhas tristes —
opinou Very nice.
—
Mas o Faísca não gostava nada de cantigas tristes — retorquiu Pascácio. — Do
que ele gostava era daquelas músicas pimba, que as letras falavam de coisas
atrevidas.
Seriamente,
todos exprimiram a sua concordância, com um aceno de cabeça.
—
Sim, para as músicas pimba não havia pai para ele.
Pipocas
tentou o último verso do «Adeus Muchachos...» e Catanada ajudou-o um bocado; os
outros acompanharam-no na parte do fim. Terminado o tango, o Pipocas tirou umas
trincadelas numa maça, mas a maçã caíra-lha ao chão.
— Very nice — disse —, chega aí o tambor para
a gente fazer mais acompanhamento?
Estendeu
a mão e atirou fora o caroço com um piparote. O caroço engrossado foi cair em
cima do carrito que estava encostado à parede. Levantaram-se para segui-lo com
os olhos; mas voltaram a sentar-se; tinha-lhes acorrido um pensamento
cinematográfico. Fitaram-se nos olhos e exibiram o sorriso sabedor de homens
para quem a fé e a morte não existem. Olharam, numa fantasia o carrito imóvel e
inclinado para o lado. E os homens continuaram a sorrir à medida que a ideia e
o rápido pensamento era apanhado.
Assim
vai ser, ó malandros amigos do Faísca. O elo que vos unia, rompeu e perdeu o
poder. O carrito passara para as mãos do Pipocas. Agora este objeto da amizade
sincera, este excêntrico carrito de bugigangas e ganha-pão, de amor e trabalho,
parta como partiu o Faísca, num último, honroso e significativo gesto de solidariedade.
Sorriam. Então os amigos levantaram-se e, como se estivessem a viver o sonho, pegaram
no carrito e saíram para a rua. Catanada,
que tirava proveito de toda a sua habilidade, ligou o motor e pô-lo a trabalhar.
Os amigos sentaram-se nos lados. O Pipocas tomou conta da condução. O carrito desceu
a rua em segunda. O toque da buzina chamou atenção a um monte de gente do Marco
de Canaveses. Estavam fascinados, ao ver o carrito transformar-se numa
carripana de passeio e turismo. Depois, o carrito dos amigos deu uma volta,
afastando-se. A população do Marco de Canaveses dissolveu-se no escuro da
noite. Os amigos do Faísca iniciaram a subida ao monte com o carrito. Ao chegar
ao cume, pararam. Olharam-se uns aos outros estranhamente e em seguida viram o
carrito voar até aos baixos como um pedregulho e, saltitando, escaqueirou-se
aos bocados contra as árvores do monte.
Instantes
depois, voltaram-se e saíram dali lentamente.
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