Sunday, July 21, 2019




                                                        Zé da Micas
                                                      
   Um dia, há cerca de dez anos, alguém me perguntou:
   - Ouviste falar no Zé da Micas?
   - Eu não.
   - Pois é um malandro, e um malandro de mérito. Abençoado. Está na sua última fase, ele sabe-o. Mas quer publicar um livro de contos da noite, e que certamente será o seu cinquentésimo livro. E deseja que tu leias esse livro. Quando pode ser?
   - Quando ele disser.
   Na manhã seguinte encontrei-me com Zé da Micas, na cervejaria Bica d´Água. Não esquecerei nunca a alegria que existia naquele homem, em cujas palavras revelavam ainda uma força enorme. Sentámo-nos numa mesa de canto, e com rouquidão na voz, durante algum tempo, eu ouvi a leitura de folhas sorteadas, entoada com tamanha fervor. A empregada passava, servindo clientes aquela hora do café da manhã, e, à nossa mesa do canto, eu assistia ao desenrolar das imagens, a música vindo do rádio, e via desfilar as peripécias daquele espírito malandro.
   Recordo-me que naquele momento me lembrei, como ainda hoje me lembro, a página de paródia de Ratazana, nos Escritos Traidores, quando Galileu, o professor biológico, faz loucura na penumbra de um quarto aos olhos do Grupo de Traidores, o triunfo de levar cinco mulheres para a cama (uma de cada vez). 
   Jamais o ouvi ler assim, e espero voltar a ouvi-lo ler assim. Zé da Micas, com a sua rouquidão na voz, quase nem me deixava respirar. Mais tarde, tive oportunidade de o reconhecer quando me chegou às mãos um dos primeiros exemplares saídos da tipografia. Num dos seus trechos, que a sua enternecedora amizade me dedicou, leio estas palavras, escritas pela sua mão, debaixo de meu nome: Ao leitor e ao amigo - Porto, 21.08.2017 - Zé da Micas. Quando o seu punho traçou estas linhas, só lhe restavam meia dúzia de meses de vida. 
                                                                                   
   Zé da Micas  
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   Recordando-o hoje, após cinco anos que ele, o malandro, morreu; aí fica essa meia dúzia de linhas traçadas numa custosa hora de saudade:
   Passava lentamente pela rua barulhenta, como um abrir de boca em meio de uma romaria, uma carrinha levando um morto á paz do tumulto. Quatro carros acompanhavam a melancólica poupa fúnebre, e sob a cortina do sol que espalhava a sua glória no céu, a minha curiosidade inquietou o meu tédio. E numa curva do trajeto, o cortejo ganhou pressa, como se o cadáver, dentro do caixão, gritasse a sua aflição de repouso.
   Havia murmúrios lentos nos troncos, últimos gemidos nos beirais, e os que passavam compunham um sorriso, como quem prende uma irónica máscara de felicidade. Só o morto, àquela hora, pálido e frio, renunciava a sua indiferença, o terno desdém, a fé abençoada, o último bater do seu coração que o silêncio da cerca iria apodrecer. E como de dentro de um carro alguém me bracejasse, perguntei:
- Quem vai aí?
A voz magoada respondeu-me:                                                                            
- O Zé da Micas.
   Era um malandro que ia a enterrar naquele fim de mês de Agosto, quando as folhas se soltavam e o nosso coração estremecia de dor unicamente.
   De repente, passou ante os meus olhos abatidos, toda a malandrice longa da sua sorte desdita, o naufrágio da esperança, alguém na enxurrada do vício, a borga, a boémia - a sua única e fiel amante - o descanso derradeiro. 
   E lá ficou, por uma tarde sem sol, na vala comum dos deserdados e dos esquecidos, esse grande malandro do divertimento; com flores que lhe falavam a nossa saudade, com palavras que lhe diziam o nosso amor. A sua carcaça ficou entregue á bicharada materna da terra, como se a sua alma parasse surpresa nas páginas divertidas do seu livro.
   Vejo-o ainda num banco do jardim de Arca d´Água olhando o silêncio repousado dos pássaros. Aquele último dia de revisão de escritos, em que lia as últimas façanhas de um boémio; Falámos e despedimo-nos:
   - Até quando?
   Sorriu, não sei se um sorriso, se uma lágrima, porque encolheu os ombros e, numa voz fraca, respondeu-me:
 - ... Quem sabe.
   E nunca mais se viu.

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