Zé da Micas
Um dia, há cerca de dez anos, alguém me
perguntou:
- Ouviste falar no Zé da Micas?
- Eu não.
- Pois é um malandro, e um malandro de
mérito. Abençoado. Está na sua última fase, ele sabe-o. Mas quer publicar um
livro de contos da noite, e que
certamente será o seu cinquentésimo livro. E deseja que tu leias esse livro.
Quando pode ser?
- Quando ele disser.
Na manhã seguinte encontrei-me com Zé da
Micas, na cervejaria Bica d´Água. Não esquecerei nunca a alegria que existia
naquele homem, em cujas palavras revelavam ainda uma força enorme. Sentámo-nos
numa mesa de canto, e com rouquidão na voz, durante algum tempo, eu ouvi a
leitura de folhas sorteadas, entoada com tamanha fervor. A empregada passava,
servindo clientes aquela hora do café da manhã, e, à nossa mesa do canto, eu
assistia ao desenrolar das imagens, a música vindo do rádio, e via desfilar as
peripécias daquele espírito malandro.
Recordo-me que naquele momento me lembrei,
como ainda hoje me lembro, a página de paródia de Ratazana, nos Escritos Traidores, quando Galileu, o
professor biológico, faz loucura na penumbra de um quarto aos olhos do Grupo de
Traidores, o triunfo de levar cinco mulheres para a cama (uma de cada
vez).
Jamais o ouvi ler assim, e espero voltar a
ouvi-lo ler assim. Zé da Micas, com a sua rouquidão na voz, quase nem me
deixava respirar. Mais tarde, tive oportunidade de o reconhecer quando me
chegou às mãos um dos primeiros exemplares saídos da tipografia. Num dos seus
trechos, que a sua enternecedora amizade me dedicou, leio estas palavras,
escritas pela sua mão, debaixo de meu nome: Ao
leitor e ao amigo - Porto, 21.08.2017 - Zé da Micas. Quando o seu punho
traçou estas linhas, só lhe restavam meia dúzia de meses de vida.
Zé da Micas
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Recordando-o hoje, após cinco anos que ele,
o malandro, morreu; aí fica essa meia dúzia de linhas traçadas numa custosa
hora de saudade:
Passava lentamente pela rua barulhenta, como
um abrir de boca em meio de uma romaria, uma carrinha levando um morto á paz do
tumulto. Quatro carros acompanhavam a melancólica poupa fúnebre, e sob a
cortina do sol que espalhava a sua glória no céu, a minha curiosidade inquietou
o meu tédio. E numa curva do trajeto, o cortejo ganhou pressa, como se o
cadáver, dentro do caixão, gritasse a sua aflição de repouso.
Havia murmúrios lentos nos troncos, últimos
gemidos nos beirais, e os que passavam compunham um sorriso, como quem prende uma
irónica máscara de felicidade. Só o morto, àquela hora, pálido e frio,
renunciava a sua indiferença, o terno desdém, a fé abençoada, o último bater do
seu coração que o silêncio da cerca iria apodrecer. E como de dentro de um
carro alguém me bracejasse, perguntei:
- Quem vai
aí?
A voz magoada respondeu-me:
- O Zé da
Micas.
Era um malandro que ia a enterrar naquele
fim de mês de Agosto, quando as folhas se soltavam e o nosso coração estremecia
de dor unicamente.
De repente, passou ante os meus olhos
abatidos, toda a malandrice longa da sua sorte desdita, o naufrágio da
esperança, alguém na enxurrada do vício, a borga, a boémia - a sua única e fiel
amante - o descanso derradeiro.
E lá ficou, por uma tarde sem sol, na vala
comum dos deserdados e dos esquecidos, esse grande malandro do divertimento;
com flores que lhe falavam a nossa saudade, com palavras que lhe diziam o nosso
amor. A sua carcaça ficou entregue á bicharada materna da terra, como se a sua
alma parasse surpresa nas páginas divertidas do seu livro.
Vejo-o ainda num banco do jardim de Arca
d´Água olhando o silêncio repousado dos pássaros. Aquele último dia de revisão
de escritos, em que lia as últimas façanhas de um boémio; Falámos e despedimo-nos:
- Até quando?
Sorriu, não sei se um sorriso, se uma
lágrima, porque encolheu os ombros e,
numa voz fraca, respondeu-me:
- ... Quem sabe.
E nunca mais se viu.
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