Monday, November 12, 2018

 
                                                         O CONVITE
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   O convite tocou-me numa calma manhã de domingo. Era um amigo a convidar-me para uma festa na aldeia, e recusei a princípio, mas depois ele recorreu a uma dica: «Há matança de porco.» Dei-lhe vinte minutos para me aprontar.
   Estava uma brisa suave na quinta, desses que levantam os cabelos e atraem as formigas, e eu ia vestido com traje sport. Levantei a capota do meu carro desportivo preto, e disse ao meu amigo: «Ficas a dever-me uma.» Ele sorriu.
   Chegámos a uma quinta aglomerada de gente ao mesmo tempo que uma desconhecida que tirava os óculos de sol e os metia na sua maleta ao ombro. Lá dentro, enquanto o meu amigo foi captado por amigalhaços seus da aldeia, eu vagueei pelas mesas dos petiscos, sentindo-me comilão. Talvez reparando nisso, a desconhecida aproximou-se a mim, de sumo na mão, e metemos conversa. Falámos de passeios e festas; depois aventuramo-nos nas carreiras. Ela disse-me que desde pequena trabalhava na vida doméstica. As palavras me deixaram pensativo: «Quem estaria disposta a trabalhar nisso durante tantos anos? Passámos aos filhos. Ela tinha um. Quando eu disse dois, de duas mulheres, ela não tremeu.
   Por altura dos rojões à moda da cozinheira, a desconhecida já tinha nome, era Maria. Depois do café, sentámo-nos sozinhos, a um canto. Pedi-lhe o contato telefónico. Ela deu-mo com algumas restrições: não telefonar antes das 8 horas da tarde, quando chegava a casa do trabalho. Não podia demorar mais de 1 hora, porque se tinha que se deitar. E[F1]  não saía aos dias de semana. Eu convidei-a para sair na próxima sexta-feira. Deu-me tampa. Perguntei se podia telefonar no sábado. Ela não disse sim nem não, mas deixou um promissor, talvez.
   Telefonei-lhe mesmo no sábado. Durante quase um mês, encontramo-nos diversas vezes por semana para jantar e ir ao cinema. No domingo, ela ia com o filho até à aldeia. Eu fui dar um passeio de carro pela praia-mar do Porto a Aveiro. Separados por umas centenas de quilómetros, não deixamos de pensar um no outro.
   Os familiares e amigos estavam pasmados com o nosso idílio. Determinado eu, cautelosa ela, tínhamos sido considerados o par com menos chances de curtir uma história apaixonada, mas os preconceitos não valem de grande coisa contra o amor. Ela e eu conhecemo-nos há dois meses. O amor foi repentino, pois ambos necessitávamos amar e sermos amados. E assim quando a amor chega não há barreiras. Tem uma forma enternecedora de nos tocar nos ombros, erguer o queixo, e beijar-nos em cheio na boca. Quando isso acontece, solta-se um Uau. Aos 23, atirei-me de olhos fechados e coração aberto. Aos 41, cavei com olhos abertos e coração marcado.
   Eu jurara a mim mesmo que um terceiro relacionamento estava a lestes do meu planeamento. Ainda dorido pelos meus desaires sofridos, queria dedicar-me à missão que me tinha proposto: cuidar dos filhos sozinho. Sempre que havia uma relação à vista, sabotava-a. Usava os filhos ou as responsabilidades do trabalho como pretexto. Recusava-me a arriscar. Mas a sorte tem vida cómica. Deixou-me estabelecer regras de todo o estilo para defender o meu papel de pai só e depois enviou-me a Maria para mudar o embaraço.
   A primeira vez que pedi a Maria para iniciarmos uma relação, quase três meses depois de nos termos conhecido, ficou indecisa. Fiz a pergunta de uma forma fortuita, mais como constatação que como pergunta. Ela respondeu-me com o que penso ser uma franqueza caraterística: «Tira daí a ideia!», ou outra coisa parecida.
   Quando lhe pedi a segunda vez, ela estava preparada. Estávamos na sala do meu apartamento, quando lhe coloquei um anel de compromisso no dedo e ela soltou uma pequena exclamação de alegria que me fez sentir mais alegre. «Aceito! Aceito!». Agora, não há uma noite em que não agradeça à sorte a boa hora do nosso encontro.

   Os amigos nem queriam acreditar. Uma terceira relação, informaram eles, não traz nenhuma da novidade da primeira e tem obstáculos a menos. Não há penhoras, filhos crescidos, os ex-parceiros – esquecidos ou desaparecidos – e as cicatrizes são somenos. As nossas histórias são similares. Mudamos do subúrbio de Leça para um andar de 150 metros quadrados, no Porto. Não precisamos de vender nada e passamos a viver a meio-tempo nas nossas próprias casas, e a pagarmos as despesas a meias. A família ficou unida.   
   No fim de tudo, pesado na balança, não conseguimos imaginar-nos viver um sem o outro. O que não quer dizer que tenha sido fácil. Demos por esquinas e travessas, por mais curvas e lombas que retas.
   Às vezes eu acordo de matina e fico a olhar para aquela mulher, este milagre aqui ao meu lado, dormindo serenamente, e deixa-me atraído como nunca. É como se ela e eu fôssemos um só. Ambos queremos ser amados, e guardamos uma certa reserva da mente e do coração.   
   Às vezes via-a sentada numa cadeira ao telefone ou a passar a ferro. «Preciso de um lugarzinho», argumentava ela, pela primeira vez. Quanto mais o fazia, mais eu reparava no aumento do serviço que ia pela casa. Que contraste com aquilo a que ela estava habituada. Essa constatação fez-me gostar mais dela.
   Acerca da terceira vez: a Maria e eu esperamos do relacionamento, que seja mais sortalhão e menos azarento. Escolhemos de livre vontade, o que achamos de bom para os dois e o que preferimos fazer a sós, sem sentimentos de culpa. 
   A questão, meus amigos, é fundamentalmente a esperança. Agarrar-se ao amor já com três «falhanços», e um castigo de um rompimento anterior; e acreditar, contra tudo e contra todos, que se vai ter êxito para a vida toda.

 [F1]

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