Saturday, March 24, 2012

CONTOS DE RATAZANA
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10. Episódio
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Eis como os amigos embebedaram uma rapariga e, depois, aproveitaram uns mimos calorosos


Roque, o primo de Pipocas, era um sonhador a dar ao romantismo. Tentava saborear a conquista, procurava acalentar a sedução, compartilhava o prazer. Um Roque durão ou em pensamentos do diabo era coisa que não existia. O seu coração estava aberto para quem dele quisesse fazer uso. O seu expediente e o seu saber estavam à disposição de todos aqueles que, nesses moldes, fossem menos espertos que ele. Foi ele quem levou a melhor sobre Miss Zara durante a ida ao bar quando ela traiu o primo Pipocas. Quando a enfermeira Sandra perdeu a chama do seu coração, a sua rica chama que lhe dava todos os prazeres do corpo, foi Roque quem lhe perdeu o rasto, armou a confusão e pôs ela contra o primo. Foi Roque quem, uma vez, sacou a amante a António Caço onde ela se encontrava a atacar na sua própria casa, e um tal ato exigia não só um coração aventureiro como também um estômago tenaz. Juntamente com esta capacidade de seduzir bem, Roque tinha o dom de dar com situações em que a prática de um episódio burlesco era necessário. A sua fama era tal que uma vez Catanada disse: «Se o Roque tivesse ido para pastor, Marco de Canaveses teria dado um terreno para um curral.»

Era hábito de Roque ir todos os dias para o refeitório do pessoal da fábrica de confeções onde trabalhava porque em primeiro lugar, podia espalhar aí a sua veia conquistadora e, em segundo lugar, porque do canto da coluna do prédio em que se colocava podia ver as pernas de um grande número de raparigas. E não era nenhum crime. Roque gostava de olhar para as pernas das raparigas. Um dia, depois de ter saído do trabalho, Roque presenciou uma cena caricata. Um empregado de café enxotara de dentro do estabelecimento, um rapazola de dezoito anos, que por sua vez, trazia atrás de si uma rapariga de idade parecida com uma saia curta. O empregado de café ia dizendo:

— Quero lá saber que não vás com a minha cara. Não podes é ficar aqui sentado na cadeira a tarde toda, com a rapariga sem fazer despesa. Andai lá para a rua.

O rapazola protestou num tom de revolta.

— Mas, calma camareiro, nós não estávamos a estorvar. Porque és assim tão ranhoso?

O empregado de café reparou em Roque.

— Eh, conterrâneo — chamou. — Que é que este azeitona está a querer levar?

Roque adiantou-se e dirigiu-se ao rapazola.

— Posso ser-te útil nalguma coisa?

Um rode palavras brotou do atrevido rapazola.

— Vim à procura de um gringo. Uns conhecidos disseram-me que aqui é que ele parava, mas não o encontrei. Estava sentado mais a rapariga à espera e este músico veio ter comigo a insinuar coisas e pôs-se cá fora.

Roque acenou com a cabeça e voltou-se para o empregado do café.

— Este amigalhaço partiu alguma loiça?
— Não, mas está quase há duas horas a ocupar uma mesa, e a rapariga atira-se aos clientes.
— É um conhecido meu — retorquiu Roque. — Eu desenrasco a eles.
— Está bem, mas não os traga para aqui.

Roque e os seus novos amigos subiram a rua.

— Vou levar-te aí a uma cabana onde param uns amigos para tratarem do teu caso. É a tua namorada?
— É a minha rapariga — respondeu o rapazola. — Sou azeitona, e a rapariga é minha. Agora está a treinar, mas quando for boa há-de ser rainha.

Olhou o corpo da rapariga. Na verdade a rapariga parecia estar ainda verde. A vontade de Roque duplicou.

— A cabana onde vamos é um local onde estacionam uns amigos da corda. O maioral chama-se Pipocas. É um individuo de que uma rapariga se pode erguer quando está em dificuldades. Vamos lá, que Pipocas dá-vos apoio. A Senhora do Porto, que é minha amiga, tem uns senhores de bem. Pedimos-lhes uma ajuda para a rapariga.

Pela primeira vez surgiu na cara do rapazola um sorriso de alívio.

— Isso são boas notícias — disse ele. — De onde eu venho, tenho eu muitas pessoas que eram capazes de me dar este mundo e o outro só para eu os deixar ter um consolo com a rapariga. — Gabou-se um tanto a Roque: — Tenho conhecidos donos de casas de passe, mas, claro, só sabem explorar as raparigas.

Roque empurrou a porta da cabana e entraram todos de uma assentada. Pipocas, Pascácio e Very nice estavam sentados em redor da mesa, fazendo as moscas voar. Roque empurrou o par para dentro da cabana.

— Está aqui um jovem mãos-leves, um azeitona — apresentou-os. — Trás uma rapariga com ele e a rapariga está a treinar nas lides.

Os amigos levantaram-se com rapidez e olharam para o corpo da rapariga.

— Está mesmo a treinar — disse Pipocas. — Era talvez melhor a gente levá-la para o Porto.

O rapazola, porém, rejeitou a ideia redondamente.

— Para o Porto, não. Não gosto do Porto. A rapariga não quer nem se rala muito. Depois de treinar talvez fique mais alegre.

Nesse momento, entrou Catanada e observou a rapariga.

— Esta rapariga está triste.

Catanada, então, meteu mãos à obra. Mandou Very nice ao mercado pedir uma garrafa de uísque fiada e uma caixa de doce sortido. Disse a Pascácio e a Artur Bófia para arranjarem café e porem a grafonola a dar música. O Pipocas ofereceu uma pastilha elástica à rapariga que aceitou. O rapazola, de pé no meio da cabana, sorria de satisfação para aqueles bons rapazes. Por fim, a rapariga foi posta no sofá e foi-lhe dado cigarros e café à rapariga e, logo no seu olhar, apareceu uma expressão de alegria e repetiu o café. O Faísca entrou, trazendo um saco de amendoins. Os amigos tiraram as cascas e comeram os amendoins. A rapariga só queria beber uísque e comer amendoins. Depois de comerem e beberem sentaram-se em volta da mesa, dispostos a cavaquear um pouco. A música tocava ramaldeiras. De vez em quando um dos amigos levantava-se e ia treinar a rapariga. O rapazola estava calado a ouvir. Os amigos estavam um pouco apreensivos com a sua atitude, pois queriam saber coisas a seu respeito. Catanada, para quem o saber era tão fundamental como descobrir uma mina de ouro, tentou algumas vezes desmantelar as escusas do rapazola.

— Raras vezes se vê um jovem mãos-leves com uma jovem no bota-abaixodisse ele num tom baixo para a rapariga não ouvir.

O rapazola sorriu, vaidoso. Pascácio continuou:

— Esta rapariga foi provavelmente encontrada no albergue de menores. E é com certeza o melhor local, pois aí só há raparigas boas.

O rapazola aproveitou a oportunidade para fugir à conversa, ao mesmo tempo que exprimia a sua gratidão.

— Vocês têm sido amigos para mim. Têm sido tão amigos que eu não contava com isso. Nem eu, nem a minha rapariga.
— E onde é que está a família dela? — perguntou Pascácio.

O rapazola ficou sério.

— Na França — respondeu. Depois, recuperando a esperteza, continuou: —Conheci um velhote que me contou uma história curiosa. Disse que a gente pode fazer das raparigas aquilo que a gente quiser. Disse-me ele: «Diz muitas vezes à rapariga o que tu quiseres que ela seja que, quando ela se mentalizar, faz isso que lhe disseste.» Não me fartei de dizer a esta: «há-des ser uma rainha.» Vocês acham que ela chegará a ser rainha?

Delicadamente, os amigos acenaram com a cabeça em sinal de concordância.

— É capaz — disse Catanada. — Eu nunca ouvi falar nesse uso.
— Eu digo uma quantidade de vezes ao dia: «Maria, um dia há-des chegar a rainha. Há-des ter grandes escoltas, um castelo e uma coroa de ouro. Há-des viajar num jacto privado e ter um pénis dourado. Que loucura, Maria.» O velhote disse que a rapariga tinha de ser mesmo rainha se fosse isso que eu lhe dissesse.

Pipocas levantou-se e aproximou-se da rapariga no sofá.

— Há-des ser rainha — disse à rapariga. — Se fores meiguinha, serás a rainha de todos nós.

O Faísca foi atrás dele, e murmurou:

— Há-des ser rainha — e perguntou a si próprio se aquela forma teria efeito no cão.

Voltaram a conversar.

— A família dela está em França... — sugeriu Catanada.

O rapazola franziu o sobrolho e manteve-se calado durante um momento; depois, sorriu com excesso.

— Vou contar-vos isto. Isto, são coisas que só se contam aos amigos. Eu era copeiro em Campanhã e como era aplicado e mexido tinha as raparigas sempre em cima de mim, fui promovido para a sala. Depois enrolei com uma bela rapariga. Não digo que não foi por causa das minhas bocas que ela se meteu comigo. Mas era bonita e chavalita e tinha uns olhos azuis, belos peitos para fora e uns dentes brancos e perfeitos. De modo que em breve nasceu este projecto.
— Boa — antecipou o Pipocas, de volta à sala. — Gostava de estar no teu lugar. Não há nada tão bom como ter uma rapariga a trabalhar para nós.
— Pois não — disse o rapazola. — Eu fiquei todo a ferver. No dia da estreia no motel, levei uma bolsa agarrada à cintura, para meter o dinheiro. Quando saímos do motel, um chulão, com gajas foleiras e um casebre pequeno viu a minha rapariga. Não demorou muito que ela me fugisse. Então, fui ter com o chulão e disse-lhe: «Devolve-me a minha rapariga?», e ele respondeu: «Tu não dás valor à rapariga para falares desse modo com quem sabe mais do que tu.»

O rapazola levantou os ombros num gesto de resignação.

— Ah, o sacana! — exclamou o Very nice.
— Arranjastes uns amigos e lixaste esse chulão — interpôs Pascácio.

O rapazola ficou à rasca.

— Não. Não tinha por onde lhe chegar. Na primeira noite, alguém se atirou contra mim no quarto de banho. Na segunda noite, uma garrafa voou para mim que os gritos atiraram comigo para o chão. De modo que me pus ao largo e trouxe a rapariga comigo.

O rosto dos amigos tinham uma expressão de intensidade e os seus olhos brilhavam ansiosos. Lá dentro, o Faísca soltou um berro e logo o cão rosnou.

— Nós é que gostaríamos de ter assistido a essa cena! — exclamou Catanada. — Havíamos de ver como é que o chulão se desmedrava da situação. Um fiscal fez sofrer o meu avô e ele, então, prendeu-o, nu, a uma árvore, regou-o com leite e soltou uma matilha de gatos esfomeados para fora. Oh, pá, há sempre maneiras!
— Eu era um simples novato — retorquiu o rapazola. — Tive de cavar. — Laivos de revolta rolaram-lhe dos olhos. — Quando um chulão se mete contra um novato, pouco há que lhe possa valer. De modo que cavei e trouxe a Maria comigo. Em Campanhã encontrei esse velhote sábio que me disse que eu podia fazer da Maria o que eu quisesse. Digo à rapariga quantidade de vezes por dia: «Há-des ser uma rainha. Há-des ter escoltas e uma coroa de ouro.»

Olharam para o rapazola com estupefação. Era tão jovem para ter tido uma aventura daquelas!

— Se a gente estivesse agora em Campanhã — disse o Pipocas, caloroso. — Catanada fazia um plano da situação.
— É realmente pena. Mas um dia a gente vai lá ir.

Artur Bófia tinha-se mantido à distância, matutando sobre a fascinante história do rapazola. Aproximou-se do sofá e espreitou.

— Há-des ser rainha — disse. E momentos depois: — Eh! A rapariga está com uma moca monumental.

Os amigos cercaram o sofá. O álcool já tinha feito efeito. A rapariga estava de pernas abertas uma para cada lado e o corpo meio desnudado. Os olhos, vidrados, olhavam, esgazeados, pra um e pra outro. A rapariga rebolava-se constantemente e sorria.

— Sais de frutos! — gritou o Pipocas. — É preciso uns sais de frutos.

Mas ele, e os outros sabiam o que havia de fazer. Aqui estava uma situação que exigia a ação dos amigos. A bebedeira que se apanha usa uma cara que a ninguém engana. Enquanto observavam, a rapariga endireitou-se e pediu de beber. Catanada chegou-lhe uma tigela com água que rapidamente deslizou pela garganta abaixo. A boca ficou de novo seca. Estava mocada. Amável, o Pipocas cobriu as costas dela com um pequeno cobertor. O rapazola, muito firme, olhava fixamente para a rapariga, tão chocado que não podia falar sequer. Very nice pôs-lhe a mão no ombro e levou-o para uma cadeira.

— És novo — disse. — Há-des prepará-la melhor.

O rapazola lamentou-se.

— Está embriagada. Não a devia ter deixado beber. Assim, nunca será rainha; nem nunca terá um castelo e uma coroa de ouro.

Havia pena nos olhos dos amigos. No canto, o cão olhava atentamente. O Faísca coçou com a mão no pelo do Vigília. Num tom calmo, quase uma explicação, Catanada disse.

— Agora, tu mesmo tens de a avisar a não beber. Cumprimos o teu pedido do treino; esse treino já foi dado; agora, tens de ser tu a preparar um esquema de treino, nós ajudar-te-emos, se quiseres.

O rapazola encarou Catanada com uma expressão indiferente.

— Treino? — perguntou. — É o que você quer dizer?
— É fácil ver qual é a tua ideia — retorquiu Catanada. — A rapariga evolui e chegará a rainha; a seu tempo, explora o chulão e suga-o lentamente. É uma boa ideia. Uma longa jornada e depois finito. Uma tal ideia torna-te merecedor da nossa estima.

O rapazola olhou perplexo para Catanada.

— Que é que está para aí a dizer? — perguntou. — Eu não tenho nada a ver com esse chulão. Um chulão é sempre um chulão.

Os amigos chegaram-se ao pé deles. Catanada exclamou:

— Então, que vem a ser isso de quereres fazer da rapariga rainha?

O rapazola ficou um pouco atrapalhado.

— O homem tem o dever de querer o melhor para a sua rapariga. Eu quero que a Maria tenha mais coisas boas do que aquelas que eu sonhei.
— E que mais? — interrogou o Pipocas.
— Bem — respondeu o rapazote —, a minha rapariga é uma chavalita, mas não é nenhuma puta. É uma boa chavalita e o chulão cobiçou-ma. O chulão tem umas gajas foleiras e um casebre pequeno e a freguesia é só de rasca baixa. Agora, topem-me, — continuou ele, entrelaçando as mãos —, se o chulão com gajas foleiras e um casebre pequeno quis sacar-me a rapariga, o que é que uma rainha com um castelo grande e uma coroa de ouro não pode sacar.

Criou-se um clima silencioso, enquanto o Pipocas, Catanada, Pascácio, Very nice, o Faísca, Artur Bófia e Roque punham o raciocínio a funcionar. Depois de terem raciocinado, esperaram que o Pipocas falasse.

— É bonito — disse por fim o Pipocas — saber que tão poucos homens se preocupam com o bem-estar das raparigas. Agora desejamos mais do que nunca que a rapariga tenha sucesso, pois com um homem assim, que feliz futuro não será o dela.

Todos os amigos, olharam uns para os outros, concordaram com a cabeça.

E agora que é que pensas fazer? — perguntou Very nice, o pensador.
— Vou para França — respondeu o rapazola. — No fundo, sou um mãos-leves, como vocês dizem. Pode ser que, se eu continuar a pôr ideias na rapariga, ela chegue um dia a rainha. Quem sabe?

Os sete amigos olharam-no com admiração. Estavam radiantes de terem conhecido um rapazola assim.

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