Monday, January 2, 2012

CONTOS DE RATAZANA
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6. Episódio
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Eis como os amigos de Pipocas
juraram ser mais companheiros


O Sol já aquecia acima dos pinheiros, o chão estava quente e o rescaldo da noite ia secando nos arbustos do monte quando Pipocas saiu da cozinha para se sentar à soalheira do quintal e meditar, ao calor, acerca de alguns acontecimentos. Arremessou os sapatos e as meias para o lado e deixou que os dedos dos pés apanhassem ar sobre o cimento aquecido pelo sol. Manhã cedo tinha ido ver os fios esturricados e a tomada feita em bocados do seu apartamento. Entregara-se a uma pequena raiva momentânea contra os seus desmiolados amigos e lamentara por momentos o abuso de confiança.

«Se ainda pagassem renda, teria a consolação de receber algum», pensou. «Os meus amigos vão ter que me ficar a dever dinheiro. Agora vou ser eu a pagar os prejuízos.»

Pipocas, porém, sabia que devia castigar um pouco os seus amigos, ou estes considerá-lo-iam lorpa. Por isso, enquanto estava sentado com os pés ao sol no quintal, afastado as moscas com as mãos que eram mais avisos de que ameaças, meditou no que havia de dizer aos amigos antes de os aceitar no apartamento. Tinha de lhes fazer ver que não era homem que se deixasse abater. Desejava ser sempre aquele Pipocas de quem toda a terra gostava, aquele Pipocas que as pessoas procuravam quando tinham uma aflição de urgência ou um problema de maior. Como dono de uma herança e dono de duas casas, tinha sido considerado rico e ganhara inúmeras coisas boas. Catanada, Pascácio e Very nice dormiram cada um em suas casas. Tinha sido um dia cheio de acontecimentos excitantes e estavam exaustos. Mas o quente sol da parte da manhã acabou por brilhar-lhes no rosto e obrigá-los a sair da cama. Encontraram-se; sentaram-se; e, então, perguntou Pascácio, lamentoso.

— Como se deu o curto-circuito?

Ninguém sabia.

— Talvez — disse Very nice —, fosse melhor deixarmos de nos ver por uns tempos.

Catanada tirou as fotografias da algibeira e passou os dedos sobre as imagens desnudadas coloridas. Depois, ergueu-as contra a claridade e olhou através delas.

— Isso só trazia problemas para nós — concluiu. — Penso que o melhor era irmos ter com o Pipocas e confessar o nosso descuido, como os filhos fazem com os pais. Assim, ele não pode censurar coisa alguma sem sentir dó. E, além disso, não temos nós aqui um presente para ele?

Os amigos aprovaram com um gesto de cabeça. Os olhos de Catanada vaguearam novamente pelas fotos, franzindo o nariz um pouco, como o de um coelho. Sorriu, absorvido em calma quimera.

— Vou dar uma curva, amigos. Daqui a pouco encontro-me com vocês no quiosque. Não tragam más notícias se puderem deixar de ouvi-las.

Pascácio e Very nice fitaram-se tristemente enquanto Catanada se afastava, pelo meio das pessoas, direito ao quiosque. Por volta das catorze e trinta os três companheiros caminhavam lentamente em direcção a casa de Pipocas. A saca ia preenchida com ofertas de reconciliação: caixas de cigarrilhas, pastilhas elásticas, garrafa de uísque e uma revista da Playboy. Pipocas vi-os chegar, levantou-se e tentou lembrar-se daquilo que tinha a dizer-lhes. De olhos em baixos, os três perfilharam-se em frente dele.

— Javardolas, fodilhões das gajas das ratas peludas, marados! — chamou-lhes.

E mais não lhes chamou, porque de imediato, Catanada tirou da saca e exibiu as pastilhas elásticas. Pipocas disse que já não tinha confiança nos amigos, que a sua amizade tinha sido lesada. Depois a conversa tornou-se um pouco difícil, pois Pascácio tinha aberto a garrafa de uísque e deu-lha a estrear. Catanada sacou das fotografias enroladas no papel com o número do telefone delas e, indiferente, deixou-as ficar viradas de pernas pró ar, no cimento. Pipocas então esqueceu-se de tudo. Sentou-se no quintal, os amigos também e tiraram tudo de dentro da saca. Beberam e fumaram até se satisfazerem. Uma hora mais ou menos tinha passado, confortavelmente recostados, e a gozar as delícias do sol airoso, quando Pipocas perguntou por acaso, como se tratasse de qualquer coisa remota.

— Como é que se deu o início ao curto-circuito?
— Desconhece-se — explicou Catanada. — Fomos malhar e logo aconteceu. Talvez a corrente eléctrica não queira nada connosco.
— Talvez — repetiu Pascácio numa voz de menino do coro, — talvez haja nisto o espírito de Satanás.
— Pode alguém saber o que leva Satanás a fazer isto? — acrescentou Very nice.

Quando Catanada lhe entregou as fotografias e explicou que elas o queriam conhecer, Pipocas ficou reservado. Olhou um tanto indiferente para as fotos. Os seus amigos, pensou, estavam a tentar adormecê-lo.

— Vocês não pensem que eu nasci ontem — disse, por fim. — Muitas vezes ficamos presos a uma amizade pelos copos de uísque que lhe oferecemos.

Não podia mostrar aos seus amigos o gozo que se instalara dentro de si desde que ficara a saber do curto-circuito no seu apartamento nem podia, por delicadeza para com o vizinho que o informara, descrever como esse gozo o agradava.

— Vou pôr estas fotografias arrumadas para aí. Pode ser que algum dia me lembre delas.

Quando a tarde começou a escurecer, Pipocas meteu-os no seu carro e rumou para o Porto, para o seu apartamento. Mas muito antes, tinha dado ordens ao electricista para tratar da ligação eléctrica. Pipocas, como prova do seu perdão, foi buscar uma garrafa de gim e ofereceu aos seus amigos. Habituaram-se facilmente à nova bebida.

— Quando é que nos levas a conhecer os novos pitos da Senhora do Porto? — perguntou Catanada.
— Na sexta-feira ela vai apresentar-me um tridente de pitinhos — disse Pipocas.

Catanada sorriu satisfeito.

— Os pitos da Senhora do Porto costumam ser tenrinhos. Eu disse-lhe uma vez que precisavam de roços jovens e não roços velhos, mas ela mandou-me bugiar.
Beberam os últimos tragos da garrafa, o que chegava e sobrava para fomentar a doçura da camaradagem.
— É bom ter amigos — disse Pipocas. — Como é triste uma pessoa não ter amigos para compartilhar o gim!
— Ou as bifanas — acrescentou Pascácio, rapidamente.

Pascácio ainda não estava completamente liberto dos remorsos, pois não tinha dúvidas de quem tinha provocado o curto-circuito do apartamento.

— Em Portugal inteiro há poucos amigos como tu, Pipocas. Poucos se gabam dessa consolação.

Antes de embalar completamente sob os piropos dos seus amigos, Pipocas lançou um repto.

— Quero as chaves do meu apartamento — ordenou. — Quero-as todas na minha mão.

Embora nenhum deles o tivesse citado, cada um dos quatro sabia que ia haver festas no apartamento de Pipocas. Catanada deu um suspiro de alívio. Passada estava a preocupação com as despesas, passada estava a responsabilidade de dever dinheiro. Já não era devedor. Em meditação, deu graças pelo curto-circuito no apartamento.

— Vamos ser mais felizes agora, Pipocas — disse. — No fim do mês quando tivermos dinheiro, vamos dar uma grande comezaina. E talvez tenhamos aqui, se as convidarmos, uns borrachos da Senhora do Porto para gozarmos à fraternidade.

Então, Very nice, numa excitação grata, fez uma ousada promessa. Era o gim quem o fazia, a noite do curto-circuito e todas os momentos picantes. Imaginou que tinha recebido grandes prendas e queria dar uma também.

— Será nossa parte e obrigação fazermos com que neste apartamento nunca ao Pipocas falte pito — disse com arrojo. — O nosso amigo nunca se há-de fartar.

Catanada e Pascácio levantaram os olhos, pasmados, mas a coisa já estava dita. Ninguém a podia desmentir. Até Very nice compreendeu, depois de a ter lançado cá para fora, semelhante afirmação. Só podiam ter esperança de que Pipocas não a lembrasse.

«Porque», disse Catanada para si próprio, «se esta promessa fosse exigida, seria pior do que as despesas. Seria um comércio.»

— A nossa palavra de honra, Pipocas! — disse.

Sentaram-se à volta da mesa, com os copos nas mãos. A amizade que havia uns pelos outros era quase intolerável. Com as costas da camisa, Pascácio limpou os queixos molhados e repetiu a afirmação de Catanada.

— Seremos mais felizes aqui — disse.

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