Saturday, December 24, 2016




                                                C A P Í T U L O  9


       A estrada para o Porto tinha o asfalto negro. Tornava-se mole no Verão e duro no Inverno. E seguia em linha recta durante muitos quilómetros, através dos campos rasos que estavam vedados em virtude de haver gado a pastar. A terra tinha demasiado pasto para os animais. Os campos eram sobranceiros à estrada, terminando nas bermas. Ao longo das bermas cresciam as ervas bravias ao lado das pequenas flores do campo. Estas alinhavam-se com os seus botões em branco. As flores estavam erectas e os seus botões haviam florido, devido à força do tempo.
       A estrada dirigia-se em linha recta para os declives das primeiras ladeiras ¾ rampas largas como saias, compridas e quentes como lã. E a relva verde estava cheia de encanto e a frescura de um vento novo. As rampas estavam mortas e solitárias e a carrinha rolava na estrada à velocidade de cruzeiro. Os seus ocupantes exaustos e com olhos de sono balançavam contra o assento. A Santa Maria Adelaide, no seu vaivém constante, pendurada na frente do grande espelho, olhava generosamente para os ocupantes.
       Não havia muito movimento na estrada, apenas alguns carros passavam, provenientes do lado Norte. A estrada permanecia um tanto deserta. Costa recostou-se no banco, preparado para relaxar na calmaria da viagem. Tinha um grande espelho à sua frente pelo qual podia observar os ocupantes, e do lado da janela por onde podia ver a estrada à retaguarda.                                          
       Reparou, pelo retrovisor fronteiro, que Grande João seguia na sua peugada e contava a Canado qualquer coisa que ambos se riram por momentos. E notou também que Barão do Cobre conduzia o seu carro de forma atabalhoada. Por último notou que Gorete e a loira tinham as cabeças encostadas e falavam. Aumentou um pouco a velocidade.
       Não estava tentado em fazer qualquer tentativa de conquista a Cassilda. Não se queria meter em sarilhos. E Costa tinha experiência suficiente para não sofrer as consequências de qualquer problema que estivesse fora do seu alcance. Havendo uma balda, não tinha dúvidas de que não se importaria de lhe chegar a roupa ao pêlo. Tinha sentido um calafrio quando vira os peitos da rapariga a dançar diante dos seus olhos pela primeira vez.
       Gorete mostrara-se dócil para com Dona. Estava tão meiga que não necessitou de muito tempo para a deixar adocicada. Mas Dora gostava da companhia de Gorete para a ajudar a passar o tempo até chegarem ambas ao destino.
       ¾ Nunca estive a trabalhar no Porto ¾ confidenciou Gorete, em voz baixa para que Pimpolho não pudesse ouvi-la. ¾ Não sei onde hei-de ir pedir trabalho.
       ¾ O que vais fazer então? ¾ perguntou Dona.
       ¾ Arranjar outro bar. O que não faltam são escritórios deste género, acho eu. Gostaria de ser empregada de balcão.
       Os lábios de Dona alargaram-se num sorriso.
       ¾ Primeiro, arranja um emprego para servir às mesas ¾ aconselhou Dona. ¾ O balcão é um lugar fechado e aborrecido.
       ¾ Já foste empregada de balcão? ¾ indagou Gorete.
       ¾¾ declarou Dona. ¾ Trabalhei num pequeno bar discoteca. Era amante do patrão.
       ¾ Já vi. Deu-te o chuto?                                            
       ¾ Não. Era rabo ¾ informou Dona. ¾ Mordia a travesseira. Só tinha pretendentes em vez de ter clientes.
       Os olhos de Gorete reflectiam interesse.
       ¾ Tenho algum traquejo ¾ declarou. ¾ Talvez pudéssemos tomar um bar à exploração. Ouve, se eu arranjar um lorpa dos bons, interessado em investir, levar-te-ia comigo. E levaria também os clientes todos atrás de mim, ias ver. ¾ O interesse aumentava nos olhos de Gorete. ¾ Procuramos uma casa que esteja em trespasse, não muito cara a renda, dividíamos a meias. Podia ser que ficássemos ricas em pouco tempo.
       Gorete sentia-se fascinada com a rapariga. Olhou para o nariz branco, a pele lisa, e os olhos gaiteiros.
       ¾ Havemos de pensar nisso ¾ pronunciou.
       Dona chegou-se mais.
       ¾ Sei que sabes da poda ¾ afirmou. ¾ Mas talvez pudéssemos ensaiar uns truques a teu modo. Era bonito.
       Gorete deu uma risada.
       ¾ Tu ficarias abismada se conhecesses o meu repertório de truques ¾ retorquiu. ¾ Chega-te aqui por uns instantes. ¾ Narrou ao ouvido de Dona, procurando dizer-lhe que uma cantiga bem ao jeito deixaria o cliente a sonhar e fê-la imaginar o lorpa a cair com as quadras inventadas na ocasião. Gorete não tinha voz, era uma cana rachada, mas sabia compor-se.
       ¾ Havemos de ver isso ¾ declarou. ¾ Isto é uma região muito parada. Gostaria de conhecer outras paragens. ¾ Várias imagens haviam-se projectado na sua mente, baralhando-lhe os pensamentos.
       Sentia-se bem disposta e a loira viera contagiá-la.
       ¾ Vamos pensar.
       Na estrada à sua frente, Costa viu um ouriço-cacheiro atravessar a estrada. Noutras vezes era capaz de pisá-lo, mas hoje não. Rodou o volante de maneira a não o atingir e assim foi. O ouriço-cacheiro fez a sua caminhada lenta e descuidada. A carrinha rolava a sessenta à hora. Havia carrinhas iguais que percorriam as estradas nacionais com o dobro da velocidade, mas Costa não gostava de pressas. A estrada era plana durante mais de dez quilómetros antes de entrar na proximidade da cidade e Costa tirou uma das mãos do volante e encostou-se para trás.    
       Cassilda olhava os campos perpassarem rapidamente como se fossem pequenas setas. Tinha colocado os óculos de sol e observava o rosto de Costa reflectido no espelho.                                       
       Do pequeno ângulo notou que ele de vez em quando erguia a cabeça para olhar a loira e sentiu-se um pouco irritada. Estava um pouco confusa sobre o que se passara naquela noite. E quem poderia saber? A não ser que Costa tivesse adivinhado. Ainda sentia um pequeno aperto no estômago e um desejo inconsolável proveniente do acontecimento. Uma frase havia-se declarado no seu espírito: «Ela não é melhor do que eu, e nem é tão bem feita como eu.» A frase repetiu-se com um martelar contínuo. Depois sorriu interiormente de si mesma. «Estou a ser estúpida», pensou. Estou a admitir que estou com ciúmes. Eu, ciumenta? Não, nem pensar. Mas vamos lá admitir que estou, qual é o problema... se me apetecer ir com ele? Não, isso não vai acontecer. O que eu quero é ir para o Porto com ele. Sou capaz de adivinhar tudo quanto ele dirá». Sentia-se arreliada e o andamento da carrinha mais a arreliava. Contraiu os músculos dos braços e pensou no cliente Nascido-Lá com a sua reserva acerca das empregadas de bares. Reviveu mentalmente a conversa que tivera com ele. 
       Pimpolho estava alegre e divertido. Às vezes tornava-se muito extrovertido quando estava alegre. Remexeu-se.
       ¾ Esta região cheira ao mar ¾ observou para a rapariga. ¾ A Costa Verde é a praia mais bem frequentada pelos banhistas do Norte, não sei se sabes.
       Piolha ouvia-o desde que entraram para a viatura. «Quem quiser anda quilómetros e quilómetros de areias finas, cheias do cheiro do mar, exactamente quando está na vazante». Bateu na tecla repetidas vezes. Piolha dera-lhe a fome. «Só queria saber que mais ele vai contar», pensou.
       Quando apanhava uma oportunidade lá estava ele a olhar mas ela não lhe passava bola. Queria que a loira se voltasse para olhar para ela. Desejava sentar-se junto dela mas Gorete não despegava dali. Cassilda estava do lado oposto a elas e limpava as unhas com a lima que tinha sacado da bolsa. 
       ¾ Não achas que ela tem peneiras a mais? ¾ perguntou Piolha. A pergunta apanhou-o desprevenido, porque pensava na mesma coisa.
       ¾ Ela tem peneiras quem? ¾ retorquiu ele.
       ¾ A empregada do bar. A loira.
       ¾ Como queres que eu saiba? ¾ A sua voz foi tão grave que a rapariga se encolheu e ficou amuada. Tentou remediar o erro. ¾ As colegas são as que sabem coisas das colegas. Tu deves saber melhor do que eu.
       ¾ Porquê? Bem, não tenho confiança com ela. Mas, vê-se logo à partida. Deve ter peneiras até morrer, calculo eu.
       ¾ Dessas peneiras nada percebo ¾ afirmou Pimpolho.
       Pela janela olhou para as placas na estrada que se aproximavam a indicar «Zona de Praia». Tinha as pontas das orelhas frias. Queria olhar em volta. 
       ¾ Nada entendo disso. Mas ela é bem boa. É nova e atraente. Realmente, é uma brasa. É impossível um homem não se atirar a um pedaço daqueles. ¾ Isto eram ilusões.
       Piolha também podia criar à sua volta uma história fantasista, falando sobre luas ou luares e outras coisas parecidas, e nenhum homem tentaria fugir dela. As ilusões constituíam o mundo mágico da mente humana. Ela tinha o direito de se intrometer quando se tratava de ilusões. Era uma coisa íntima dela e ele pressentia-o.                                              
       ¾ Parece uma boa rapariga ¾ afirmou. ¾ A sua sexualidade e a sua lata ...
       ¾ Oh, Piolha! ¾ exclamou ele chateado. ¾ A ilusão não é lata nem sexualidade. É aquilo que uma pessoa possa sentir. A ilusão é a coisa mais barata que há no mundo. O que conta é o que cada um sente.
       Estava a tentar puxar pelo caco para lhe trazer à ideia a voz da loira. Acreditava que as raparigas de voz sensual eram taradas. ¾ Gostaria de dar uma palavra ao meu cunhado ¾ afirmou Pimpolho.
       Piolha sabia que ele estava irritado.
       ¾ Porque não esperas para depois? ¾ sugeriu
       ¾ Oh, não sei.
       Os olhos de Pimpolho não largavam o rosto de Dona. De início, quando se sentara, tentara assegurar-se de que podia ver-lhe as pernas dela no banco, ou mesmo os joelhos quando se voltava para olhar pela janela. Uma vez por outra ela encarava-o de frente e ele via-lhe o perfil, as pestanas escuras e em arco, e o nariz direito e empoado. Tinha os lábios fechados formando uma bochecha, e Pimpolho notou que havia neles um creme cor-de-rosa e untuoso. Por qualquer motivo isto excitou-o bastante. Quando ele lhe fixou os lábios, ela teve consciência desse olhar, pois mordeu os lábios e abriu a boca, para que o suspiro saísse e lhe desse um pouco de tranquilidade. Tirou uma das mãos do colo e sacudiu o cabelo para trás. Foi nesse preciso momento que Pimpolho pela primeira vez sentiu um baque no coração. Foi tomado por um impulso frenético, e imaginou-se a segurar-lhe a cabeça com as mãos e a acariciar-lhe os lábios com beijos longos. Engoliu em seco várias vezes.
       Dona ia falando para Gorete em voz baixa:
       ¾ Depois há a Casa dos Fantasmas na Feira Popular. Creio que é o local mais electrizante do mundo. Adoro aquilo. É muito tenso, os vagões rolam nos carris a trinta à hora, e vêm-se lá fantasmas a circular pelos cantos. Sempre que lá vou não deixo de fazer uma visita.                           
       ¾ Não gosto de ver essas coisas ¾ declarou Gorete. ¾ Metem-me arrepios.
       Pimpolho continuava a conversar de modo vago com Piolha agora sobre a embriaguez.
       ¾ Dizem que uma empregada de bar pode apanhar muitas borracheiras, mas só uma a põe de rastos. E a de vinho do Porto. Talvez seja por ser doce. Apanha-se num dia e dura uma semana. Mas uma pessoa não pode embebedar-se sem beber. 
       ¾ Não sei como é porque nunca apanhei uma dessas ¾ retorquiu Piolha.
       ¾ Tu nunca apanhaste mesmo uma borracheira?
       ¾ Não foi porque quisesse, mas apanhei.
       ¾ Onde? ¾ perguntou Pimpolho.
       ¾ Oh, fica-se borracha logo no primeiro bar onde se começa a trabalhar ¾ afirmou Piolha. ¾ Precisei de quatro comprimidos para passar a ressaca, e só depois consegui pôr os pés firmes no chão. Começo agora a alcançar o equilíbrio. Parece que é uma profissão fácil, mas não o é. Se eu arranjasse outro modo de vida, escolheria uma profissão que me permitisse ser dona de casa. É muito bom uma mulher ter homem e ter filhos.
       Piolha dizia sempre isto. Porque acreditava na missa que dizia. Gostava de não fazer nada e procurava dar o laço a um qualquer. Jovem, fugira de casa a primeira vez com um homem casado e, no segundo dia, ele foi-se embora e deixou-a no quarto da pensão, sem dinheiro e com a conta para pagar. Nunca mais o tinha visto. Havia ficado a lavar pratos para pagar a pensão. Que homem! Um autêntico chouriço. Piolha quase tremia ao falar dele.
       ¾ Porque não arranjas uma namorada? ¾ perguntou a Pimpolho.
       ¾ Não quero namoradas que bebam ¾ declarou Pimpolho. ¾ Essas raparigas de bares não passam de um bando de borrachonas. Quero namorar uma que não beba. 
       Dona tinha-se chegado mais para Gorete e contava-lhe uma anedota ao ouvido. As duas raparigas sacudiam-se como se tivessem pilhas. A carrinha saía da estrada estreita e entrou na estrada larga. O piso era escuro e brilhava ao luar da noite. Costa trocou a mão esquerda para a direita no volante. Iam seguir-se vinte minutos de linha recta sem a mais pequena curva. Pelo espelho retrovisor olhou para a loira. Os olhos dela estavam contraídos pelo riso e tinha a boca aberta com os dentes à mostra, num gesto de moça.
       Pimpolho, ao levantar-se para vir à frente, não se segurou bem e, quando a carrinha mudou de velocidade, foi atirado para o lado. Procurou agarrar-se ao banco, mas falhou o lanço e caiu desamparado no colo de Dona. Ao estender a mão esquerda para se amparar na queda, fez desprender o botão da blusa já aberta da rapariga e ficou com os dedos entre os seios dela. A blusa ficou com uma pequena abertura. As duas raparigas ajudaram-no a pôr-se de pé e Dona abotoou a blusa até cima.
       Pimpolho estava branquíssimo.        
       ¾ Peço-lhe imensa desculpa, menina ¾ balbuciou.
       ¾ Não faz mal.
       ¾ Mas abri-lhe a blusa.
       ¾ Já a fechei.
       Fitou-o no rosto e viu que ele queria dar corda ao relógio até onde fosse possível. «Há-de querer apalpar mais alguma coisa», pensou.
       ¾ Pimpolho ¾ gritou Piolha ¾ estás magoado?
       Até Costa se escaqueirou a rir. Todas elas se riram. E de repente, a carrinha passou a ser o anfiteatro do riso. Gorete riu histericamente. Toda a emoção da madrugada se espelhou naquele riso.
       ¾ Não leve a mal o meu descuido ¾ disse Pimpolho. ¾ Não vim cá para a frente com o fito de a apalpar. Desejava dar uma palavra ao meu cunhado. Costa ¾ disse ele para Costa e sussurrando-lhe ao ouvido. ¾ Importa-se de me dizer se caí bem? Creio que atingi o alvo... 
       ¾ És campeão ¾ informou Costa. ¾ Um campeão.                                           
       Pimpolho tinha uma série de trunfos enfiados debaixo da manga para tratar com as raparigas. Nunca falhava o primeiro lance a uma rapariga nova entrada no bar, mas nem sempre alcançava o mais importante. Tinha descoberto que tocar primeiro numa rapariga punha logo a rapariga em cheque. O facto de uma rapariga mostrar o seu corpo punha-a um pouco vulnerável e desprotegida.
       Dona olhava para a blusa a ver se estava apertada e falava serenamente para Gorete.
      ¾ Sempre desejei viver num Parque Residencial. Adoro as coisas chiques. Amo o bom.
       ¾ Isso é muito bonito de dizer se uma pessoa é rica e tem dinheiro ¾ retorquiu Gorete com firmeza. ¾ Conheço gente do meu bairro que aproveita os fins-de-semana para ir à pesca, correr na rua, usa fatos de treino e ouve rádio.
       Dona estava a pôr Gorete mais comunicativa e excitada. Há uns tempos a esta parte nunca ela se sentira tão excitada e à vontade.
       Podia dizer tudo quanto lhe viesse à toa. Riu fora do tempo.
       ¾ É pouco normal usar roupas velhas quando uma pessoa tem o guarda-vestidos cheio de coisas boas ¾ continuou. ¾ Trapos velhos são as coisas que eu tenho a mais e sinto-me cheia deles. ¾ Olhou para Dona para ver se ela confirmava.                                
       Gorete acenou com a cabeça.
       ¾ Contenta-te comigo. ¾ Uma forte amizade crescia entre as duas. Pimpolho tentou apanhar o rumo à conversa, mas não foi lá.
       As bermas da estrada corriam cheias de ervas baldias que se precipitaram para dentro da estrada. O manto celeste estava a abrir-se para um novo serão.
       ─ Não tarda que adormeça ─ observou Pimpolho esfregando os olhos com as mãos.
       ¾ Tive um tio que foi preso devido a ser apanhado a palmar uma carteira ¾ rosnou Piolha.                                             
       ¾ É porque não foi lesto ¾ retorquiu Pimpolho. Quando um carteirista dá uma palmada numa pessoa, geralmente a culpa é desta.
       ¾ De qualquer forma, palmou-o ¾ afirmou Piolha.
       A carrinha estava a aproximar-se do início da lomba e a visibilidade tornava-se mais ofuscada.


       Pela estrada Grande João tinha-se colado atrás da carrinha. Mostrara-se conversador e afável para com Canado que não precisou de muito tempo para se familiarizar, uma vez que a conversa de ambos era a mesma.
       ¾ Porque não vai ter com ela quando sair da carrinha? ¾ sugeriu Canado.
       ¾ Oh, não sei. Vai acompanhada da outra rapariga.
       ¾ Mas não sabe se elas moram no mesmo lugar.
       ¾ Pois não ¾ declarou Grande João, dizendo para si mesmo se um tal esquema teria qualquer chance com uma das raparigas. Não sabia. Mas era sempre melhor tentar. Somente os grandes galãs podiam atrever-se a inventar uma ideia e iniciar uma relação. Puxou o relógio para o pulso para ver as horas com os olhos um pouco embaciados devido à poeira da viagem.
       ¾ Tenho uma ou duas ideias que podiam resultar ¾ prosseguiu. ¾ Ora, vamos lá mandar as ideias cá para fora. Suponhamos agora que elas saem as duas e moram na mesma zona. Isto é apenas uma suposição, claro. Eu fazia-me à loira, e você fazia-se à amiga.
       ¾ Mas elas não podem querer que uma saiba da vida da outra ¾ retorquiu Canado. ¾ Esqueceu-se desse pormenor.
       João passou a mão pelo queixo. Tinha o pressentimento de que lhe faltava qualquer coisa, mas lembrou-se da outra ideia. Tinha de a trazer cá para fora.
       ¾ Suponhamos que as convidávamos para cear e as levávamos connosco. Então, aí talvez que um de nós... bom, eu não a deixaria escapar.  
       ¾ Calma aí ¾ interrompeu Canado.
       Mas João tinha ganho embalagem.
       ¾ Suponha agora que elas nos dão com os pés, ou mesmo que nos mandam àquela parte. Isso pode acontecer, é claro. Bom, talvez elas queiram que nós as compremos.
       Canado começou a coçar a careca.
       ¾ Comprá-las? 
       ¾ Não só o tempo, mas também todo o resto.
       ¾ Mas, se elas vendessem o tempo, nessa altura nós não precisávamos de comprar o resto.
       A garganta de João soltou uma gargalhada, as pupilas avermelharam e um grande sorriso repuxava-lhe um dos cantos da boca. Pela primeira vez, desde que se metera no seu carro no Apeadeiro Nela, não tinha sorrido com tanto deleite.
       ¾ Levo as coisas até um ponto mais longe ¾ acrescentou. ¾ Quando aliciamos a companhia, a única coisa que nos consola é o momento do prazer.
       ¾ Isso é de homem ¾ retorquiu Canado entusiasticamente. ¾  Sim, senhor, é de homem. É técnica, mas técnica da mais pura classe. Sim, senhor, ninguém nos poderia levar a mal.  
       O sorriso reacendeu-se na boca de João.
       ¾ O que quer dizer com isso de técnica? A nossa intenção é ir ao encontro delas e engatá-las. Podíamos mesmo levá-las a dar uma passeata.
       ¾ É isso mesmo ¾ declarou Canado. ¾ É de homem. O senhor tem classe.
        ¾ Espero que não pense que é uma coisa feia. Há mais de vinte anos que lido com raparigas da noite, e soube sempre dar-lhes a volta por cima. Posso envaidecer-me da minha folha de serviços.
       ¾ Não estou a duvidar ¾ assegurou Canado. ¾ Até que teve uma ideia magnífica. Aceito-a, plenamente, mas...                                                                                      
       ¾ Mas o quê?
       Puxou por ele João.
       ¾ Estou muito abaixo da sua bolsa e vou precisar de algum dinheiro mais.
       ¾ Para que precisa de dinheiro? Talvez eu possa emprestar-lho...
       ¾ Sim, sim ¾ retorquiu Canado. ¾  Eu depois presto-lhe contas.
       ¾ Claro que sim ¾ declarou João. ¾ Claro que sim. Os amigos são para as ocasiões. 
       ¾ Nunca disse uma coisa tão acertada...
       João olhou para a esquerda e sorriu. A estrada curvava entre as duas margens e a passagem para a localidade seguinte era feita por duas grandes lombas.
       ¾ Estamos esclarecidos. Penso que podemos fazer o engate. Contudo, não devemos deitar foguetes antes da festa. Os meus tios falam-me muitas vezes nisto.
       ¾ Oh, não pense nisso ¾ respondeu Canado. ¾ Eu não penso. ¾ Olhou disfarçadamente para João. ¾ A verdade é que tenho no Porto duas artistas muito vistosas e sedutoras e estão sempre prontas quando eu lhes telefono.
       ¾ Eu fico algumas vezes no Porto ¾ informou João. ¾ Talvez pudéssemos fazer lá uma chanfana. Ainda esta noite sou capaz de lá ficar.
       ¾ Posso-lhe apresentar as artistas de que falei?
       ¾ Se as outras falharem, por que não? Um homem precisa de uma distracção. Fico sempre na Residencial do Vieira, em Vale Formoso. Telefono para lá e pronto.
       ¾ Assim, ainda é melhor ¾ concordou Canado. ¾ Qual é o tipo de mulher que mais prefere: loira ou morena?
       ¾ Não dou muito valor à cor ¾ retorquiu João. ¾ Gosto de beber um uísque puro e de me deitar de papo para o ar, mas tenho um pedido a fazer, que me suguem o orgasmo da infidelidade até ao tutano, sabe como é. Não quero é que me moam o juízo.                                             
      ¾ Oh, claro ¾ afirmou Canado. ¾ Sabia-lhe bem era se você pudesse engatar a loira que vai ali à frente na carrinha.
      ¾ E você não, meu safado? ¾ exclamou João.


       Pimpolho tinha-se mudado para a frente da carrinha. Disse a Piolha que a retaguarda da carrinha chiava muito e sentou-se no banco ao lado de Cassilda. A sua mão direita ergueu-se e o dedo polegar coçou os olhos. Era o sono a querer apoquentá-lo. O seu maior problema. Tinha que se manter fino para aguentar o resto da jornada. Tornou a coçar os olhos com o dedo levemente.
       Cassilda olhava através da janela com ar distante.
       ¾ Gostaria de um dia poder ir a Angola ¾ observou Pimpolho.
       Cassilda voltou a cabeça, rapidamente. Tirou os óculos permitindo-lhe ter uma visão mais nítida.
       Pimpolho engoliu em seco.
       ¾ Nunca lá fui ¾ pronunciou acanhadamente.
       ¾ Nem eu ¾ respondeu Cassilda.
       ¾ Não, mas gostava de lá ir?
       Ela acenou com a cabeça. Não queria fitá-lo porque ele não desviava os olhos dela, e isso perturbava-a.
       ¾ Fazer o quê? ¾ perguntou.
       ¾ Talvez você gostasse de participar num safari ¾ afirmou Pimpolho. ¾ Veria animais e muitas outras coisas diferentes. Adquiria outras experiências.
       Ela acenou novamente e pôs os óculos como medida de abrigo. Assim podia olha-lho sem ficar perturbada.
       ¾ E porque não vai você? ¾ perguntou Cassilda.
       ¾ Oh, hei-de ir ¾ afirmou Pimpolho. ¾ Hei-de ir conhecer o mundo. Sou um grande aventureiro. Gosto mais de uma aventura do que de outra coisa qualquer. Aprende-se muitas coisas.
       Pimpolho ia buscar a maior parte das suas histórias aos livros de banda desenhada e também às revistas.                                             
       ¾ Pensei em ser um militar comando como Jaime Neves e ir para Angola tratar os turras de todas aquelas aflições. Já viu algum filme de África? 
       ¾ Não ¾ respondeu Cassilda. Estava deslumbrada pela maneira de falar do rapaz.
       ¾ É um povo muito tapado esse de Angola ¾ explicou ele. ¾ Alguns deles são tão tapados que põem cabras a subir no nosso elevador, se não aparecer um soldado a dizer-lhes para irem pelas escadas. E se a gente os ensinar, ficam a adorar-nos e não permitem que apareça outro colonizador a provocar guerrilhas, pois derrubam-nos à catana. ¾ Respirou para continuar a falar. ¾ Penso que são tão generosos como você e eu ¾ continuou. ¾ Logo que Jaime Neves chegou e lhes tratou da saúde, ficaram a fixá-lo... e você sabe o que ele fez? Descobriu o seu próprio instinto. E apareceu depois aquela revolução e ele não sabia se devia ligar-se a ela em virtude de ela ter um compromisso. E depois, veio a saber-se que a culpa não fora da revolução e nem mesmo era verdade, mas daqueles que se intrometeram a contar histórias a respeito da revolução. ¾ Os olhos de Pimpolho brilhavam de fulgor e entusiasmo. ¾ Jaime Neves não acreditou nessas histórias e vivia num velho quartel que tinha telefones secretos e... bom, depois chegaram os revolucionários.          
       ¾ É muito interessante  ¾ afirmou Cassilda.
       A carrinha introduziu a terceira velocidade para alcançar a última lomba. Ao chegar ao cimo passou entre duas viaturas em sentidos opostos, seguiu em frente e, lá em baixo, apareceu uma placa em cimento na berma a indicar Madalena, brilhando como cristal límpido sob a luz do candeeiro.

       Costa meteu a quarta velocidade e passou a lomba.