C A P Í T U L O
9
A estrada
para o Porto tinha o asfalto negro. Tornava-se mole no Verão e duro no Inverno.
E seguia em linha recta durante muitos quilómetros, através dos campos rasos
que estavam vedados em virtude de haver gado a pastar. A terra tinha demasiado
pasto para os animais. Os campos eram sobranceiros à estrada, terminando nas
bermas. Ao longo das bermas cresciam as ervas bravias ao lado das pequenas
flores do campo. Estas alinhavam-se com os seus botões em branco. As flores
estavam erectas e os seus botões haviam florido, devido à força do tempo.
A estrada
dirigia-se em linha recta para os declives das primeiras ladeiras ¾ rampas largas como saias, compridas e quentes como
lã. E a relva verde estava cheia de encanto e a frescura de um vento novo. As
rampas estavam mortas e solitárias e a carrinha rolava na estrada à velocidade
de cruzeiro. Os seus ocupantes exaustos e com olhos de sono balançavam contra o
assento. A Santa Maria Adelaide, no seu vaivém constante, pendurada na frente
do grande espelho, olhava generosamente para os ocupantes.
Não havia
muito movimento na estrada, apenas alguns carros passavam, provenientes do lado
Norte. A estrada permanecia um tanto deserta. Costa recostou-se no banco,
preparado para relaxar na calmaria da viagem. Tinha um grande espelho à sua
frente pelo qual podia observar os ocupantes, e do lado da janela por onde
podia ver a estrada à retaguarda.
Reparou,
pelo retrovisor fronteiro, que Grande João seguia na sua peugada e contava a Canado
qualquer coisa que ambos se riram por momentos. E notou também que Barão do
Cobre conduzia o seu carro de forma atabalho-ada. Por último notou que Gorete e
a loira tinham as cabeças encostadas e falavam. Aumentou um pouco a velocidade.
Não
estava tentado em fazer qualquer tentativa de conquista a Cassilda. Não se
queria meter em sarilhos. E Costa tinha experiência suficiente para não sofrer
as consequências de qualquer problema que estivesse fora do seu alcance.
Havendo uma balda, não tinha dúvidas de que não se importaria de lhe chegar a
roupa ao pêlo. Tinha sentido um calafrio quando vira os peitos da rapariga a
dançar diante dos seus olhos pela primeira vez.
Gorete
mostrara-se dócil para com Dona. Estava tão meiga que não necessitou de muito
tempo para a deixar adocicada. Mas Dora gostava da companhia de Gorete para a
ajudar a passar o tempo até chegarem ambas ao destino.
¾ Nunca estive a trabalhar no Porto ¾ confidenciou Gorete, em voz baixa para que Pimpolho
não pudesse ouvi-la. ¾ Não sei onde hei-de ir pedir trabalho.
¾ O que vais fazer então? ¾ perguntou Dona.
¾ Arranjar outro bar. O que não faltam são escritórios
deste género, acho eu. Gostaria de ser empregada de balcão.
Os lábios
de Dona alargaram-se num sorriso.
¾ Primeiro, arranja um emprego para servir às mesas ¾ aconselhou Dona. ¾ O balcão é um lugar fechado e aborrecido.
¾ Já foste empregada de balcão? ¾ indagou Gorete.
¾ Já ¾ declarou Dona. ¾ Trabalhei num pequeno bar discoteca. Era amante do patrão.
¾ Já vi. Deu-te o chuto?
¾ Não. Era rabo ¾ informou Dona. ¾ Mordia a travesseira. Só tinha pretendentes em vez de
ter clientes.
Os olhos
de Gorete reflectiam interesse.
¾ Tenho algum traquejo ¾ declarou. ¾ Talvez pudéssemos tomar um bar à exploração. Ouve, se
eu arranjar um lorpa dos bons, interessado em investir, levar-te-ia comigo. E levaria
também os clientes todos atrás de mim, ias ver. ¾ O interesse aumentava nos olhos de Gorete. ¾ Procuramos uma casa que esteja em trespasse, não
muito cara a renda, dividíamos a meias. Podia ser que ficássemos ricas em pouco
tempo.
Gorete
sentia-se fascinada com a rapariga. Olhou para o nariz branco, a pele lisa, e
os olhos gaiteiros.
¾ Havemos de pensar nisso ¾ pronunciou.
Dona
chegou-se mais.
¾ Sei que sabes da poda ¾ afirmou. ¾ Mas talvez pudéssemos ensaiar uns truques a teu modo.
Era bonito.
Gorete
deu uma risada.
¾ Tu ficarias abismada se conhecesses o meu repertório
de truques ¾ retorquiu. ¾ Chega-te aqui por uns instantes. ¾ Narrou ao ouvido de Dona, procurando dizer-lhe que
uma cantiga bem ao jeito deixaria o cliente a sonhar e fê-la imaginar o lorpa a
cair com as quadras inventadas na ocasião. Gorete não tinha voz, era uma cana
rachada, mas sabia compor-se.
¾ Havemos de ver isso ¾ declarou. ¾ Isto é uma região muito parada. Gostaria de conhecer
outras paragens. ¾ Várias imagens haviam-se projectado na sua mente, baralhando-lhe os
pensamentos.
Sentia-se
bem disposta e a loira viera contagiá-la.
¾ Vamos pensar.
Na
estrada à sua frente, Costa viu um ouriço-cacheiro atravessar a estrada.
Noutras vezes era capaz de pisá-lo, mas hoje não. Rodou o volante de maneira a
não o atingir e assim foi. O ouriço-cacheiro fez a sua caminhada lenta e
descuidada. A carrinha rolava a sessenta à hora. Havia carrinhas iguais que
percorriam as estradas nacionais com o dobro da velocidade, mas Costa não
gostava de pressas. A estrada era plana durante mais de dez quilómetros antes
de entrar na proximidade da cidade e Costa tirou uma das mãos do volante e
encostou-se para trás.
Cassilda
olhava os campos perpassarem rapidamente como se fossem pequenas setas. Tinha
colocado os óculos de sol e observava o rosto de Costa reflectido no espelho.
Do
pequeno ângulo notou que ele de vez em quando erguia a cabeça para olhar a
loira e sentiu-se um pouco irritada. Estava um pouco confusa sobre o que se
passara naquela noite. E quem poderia saber? A não ser que Costa tivesse
adivinhado. Ainda sentia um pequeno aperto no estômago e um desejo inconsolável
proveniente do acontecimento. Uma frase havia-se declarado no seu espírito:
«Ela não é melhor do que eu, e nem é tão bem feita como eu.» A frase repetiu-se
com um martelar contínuo. Depois sorriu interiormente de si mesma. «Estou a ser
estúpida», pensou. Estou a admitir que estou com ciúmes. Eu, ciumenta? Não, nem
pensar. Mas vamos lá admitir que estou, qual é o problema... se me apetecer ir
com ele? Não, isso não vai acontecer. O que eu quero é ir para o Porto com ele.
Sou capaz de adivinhar tudo quanto ele dirá». Sentia-se arreliada e o andamento
da carrinha mais a arreliava. Contraiu os músculos dos braços e pensou no
cliente Nascido-Lá com a sua reserva acerca das empregadas de bares. Reviveu
mentalmente a conversa que tivera com ele.
Pimpolho
estava alegre e divertido. Às vezes tornava-se muito extrovertido quando estava
alegre. Remexeu-se.
¾ Esta região cheira ao mar ¾ observou para a rapariga. ¾ A Costa Verde é a praia mais bem frequentada pelos
banhistas do Norte, não sei se sabes.
Piolha
ouvia-o desde que entraram para a viatura. «Quem quiser anda quilómetros e
quilómetros de areias finas, cheias do cheiro do mar, exactamente quando está
na vazante». Bateu na tecla repetidas vezes. Piolha dera-lhe a fome. «Só queria
saber que mais ele vai contar», pensou.
Quando
apanhava uma oportunidade lá estava ele a olhar mas ela não lhe passava bola.
Queria que a loira se voltasse para olhar para ela. Desejava sentar-se junto
dela mas Gorete não despegava dali. Cassilda estava do lado oposto a elas e
limpava as unhas com a lima que tinha sacado da bolsa.
¾ Não achas que ela tem peneiras a mais? ¾ perguntou Piolha. A pergunta apanhou-o desprevenido,
porque pensava na mesma coisa.
¾ Ela tem peneiras quem? ¾ retorquiu ele.
¾ A empregada do bar. A
loira.
¾ Como queres que eu
saiba? ¾ A sua voz foi tão grave
que a rapariga se encolheu e ficou amuada. Tentou remediar o erro. ¾ As colegas são as que sabem coisas das colegas. Tu
deves saber melhor do que eu.
¾ Porquê? Bem, não tenho
confiança com ela. Mas, vê-se logo à partida. Deve ter peneiras até morrer,
calculo eu.
¾ Dessas peneiras nada
percebo ¾ afirmou Pimpolho.
Pela janela olhou para as placas na estrada que se aproximavam a indicar
«Zona de Praia». Tinha as pontas das orelhas frias. Queria olhar em volta.
¾ Nada entendo disso. Mas ela é bem boa. É nova e
atraente. Realmente, é uma brasa. É impossível um homem não se atirar a um
pedaço daqueles. ¾ Isto eram ilusões.
Piolha também podia criar à sua volta uma história fantasista, falando
sobre luas ou luares e outras coisas parecidas, e nenhum homem tentaria fugir
dela. As ilusões constituíam o mundo mágico da mente humana. Ela tinha o
direito de se intrometer quando se tratava de ilusões. Era uma coisa íntima
dela e ele pressentia-o.
¾ Parece uma boa rapariga ¾ afirmou. ¾ A sua sexualidade e a sua lata ...
¾ Oh, Piolha! ¾ exclamou ele chateado. ¾ A ilusão não é lata nem sexualidade. É aquilo que uma
pessoa possa sentir. A ilusão é a coisa mais barata que há no mundo. O que
conta é o que cada um sente.
Estava a tentar puxar pelo caco para lhe trazer à ideia a voz da loira.
Acreditava que as raparigas de voz sensual eram taradas. ¾ Gostaria de dar uma palavra ao meu cunhado ¾ afirmou Pimpolho.
Piolha sabia que ele estava irritado.
¾ Porque não esperas para
depois? ¾ sugeriu
¾ Oh, não sei.
Os olhos de Pimpolho não largavam o rosto de Dona. De início, quando se
sentara, tentara assegurar-se de que podia ver-lhe as pernas dela no banco, ou
mesmo os joelhos quando se voltava para olhar pela janela. Uma vez por outra
ela encarava-o de frente e ele via-lhe o perfil, as pestanas escuras e em arco,
e o nariz direito e empoado. Tinha os lábios fechados formando uma bochecha, e
Pimpolho notou que havia neles um creme cor-de-rosa e untuoso. Por qualquer
motivo isto excitou-o bastante. Quando ele lhe fixou os lábios, ela teve
consciência desse olhar, pois mordeu os lábios e abriu a boca, para que o suspiro
saísse e lhe desse um pouco de tranquilidade. Tirou uma das mãos do colo e
sacudiu o cabelo para trás. Foi nesse preciso momento que Pimpolho pela
primeira vez sentiu um baque no coração. Foi tomado por um impulso frenético, e
imaginou-se a segurar-lhe a cabeça com as mãos e a acariciar-lhe os lábios com
beijos longos. Engoliu em seco várias vezes.
Dona ia falando para Gorete em voz baixa:
¾ Depois há a Casa dos
Fantasmas na Feira Popular. Creio que é o local mais electrizante do mundo. Adoro
aquilo. É muito tenso, os vagões rolam nos carris a trinta à hora, e vêm-se lá
fantasmas a circular pelos cantos. Sempre que lá vou não deixo de fazer uma
visita.
¾ Não gosto de ver essas
coisas ¾ declarou Gorete. ¾ Metem-me arrepios.
Pimpolho continuava a conversar de modo vago com Piolha agora sobre a
embriaguez.
¾ Dizem que uma empregada
de bar pode apanhar muitas borracheiras, mas só uma a põe de rastos. E a de vinho
do Porto. Talvez seja por ser doce. Apanha-se num dia e dura uma semana. Mas
uma pessoa não pode embebedar-se sem beber.
¾ Não sei como é porque
nunca apanhei uma dessas ¾ retorquiu Piolha.
¾ Tu nunca apanhaste mesmo
uma borracheira?
¾ Não foi porque quisesse,
mas apanhei.
¾ Onde? ¾ perguntou Pimpolho.
¾ Oh, fica-se borracha
logo no primeiro bar onde se começa a trabalhar ¾ afirmou Piolha. ¾ Precisei de quatro comprimidos para passar a ressaca,
e só depois consegui pôr os pés firmes no chão. Começo agora a alcançar o
equilíbrio. Parece que é uma profissão fácil, mas não o é. Se eu arranjasse
outro modo de vida, escolheria uma profissão que me permitisse ser dona de
casa. É muito bom uma mulher ter homem e ter filhos.
Piolha
dizia sempre isto. Porque acreditava na missa que dizia. Gostava de não fazer
nada e procurava dar o laço a um qualquer. Jovem, fugira de casa a primeira vez
com um homem casado e, no segundo dia, ele foi-se embora e deixou-a no quarto
da pensão, sem dinheiro e com a conta para pagar. Nunca mais o tinha visto.
Havia ficado a lavar pratos para pagar a pensão. Que homem! Um autêntico
chouriço. Piolha quase tremia ao falar dele.
¾ Porque não arranjas uma namorada? ¾ perguntou a Pimpolho.
¾ Não quero namoradas que bebam ¾ declarou Pimpolho. ¾ Essas raparigas de bares não passam de um bando de
borrachonas. Quero namorar uma que não beba.
Dona
tinha-se chegado mais para Gorete e contava-lhe uma anedota ao ouvido. As duas
raparigas sacudiam-se como se tivessem pilhas. A carrinha saía da estrada
estreita e entrou na estrada larga. O piso era escuro e brilhava ao luar da
noite. Costa trocou a mão esquerda para a direita no volante. Iam seguir-se
vinte minutos de linha recta sem a mais pequena curva. Pelo espelho retrovisor
olhou para a loira. Os olhos dela estavam contraídos pelo riso e tinha a boca
aberta com os dentes à mostra, num gesto de moça.
Pimpolho,
ao levantar-se para vir à frente, não se segurou bem e, quando a carrinha mudou
de velocidade, foi atirado para o lado. Procurou agarrar-se ao banco, mas
falhou o lanço e caiu desamparado no colo de Dona. Ao estender a mão esquerda
para se amparar na queda, fez desprender o botão da blusa já aberta da rapariga
e ficou com os dedos entre os seios dela. A blusa ficou com uma pequena
abertura. As duas raparigas ajudaram-no a pôr-se de pé e Dona abotoou a blusa
até cima.
Pimpolho
estava branquíssimo.
¾ Peço-lhe imensa desculpa, menina ¾ balbuciou.
¾ Não faz mal.
¾ Mas abri-lhe a blusa.
¾ Já a fechei.
Fitou-o
no rosto e viu que ele queria dar corda ao relógio até onde fosse possível.
«Há-de querer apalpar mais alguma coisa», pensou.
¾ Pimpolho ¾ gritou Piolha ¾ estás magoado?
Até Costa
se escaqueirou a rir. Todas elas se riram. E de repente, a carrinha passou a
ser o anfiteatro do riso. Gorete riu histericamente. Toda a emoção da madrugada
se espelhou naquele riso.
¾ Não leve a mal o meu descuido ¾ disse Pimpolho. ¾ Não vim cá para a frente com o fito de a apalpar.
Desejava dar uma palavra ao meu cunhado. Costa ¾ disse ele para Costa e sussurrando-lhe ao ouvido. ¾ Importa-se de me dizer se caí bem? Creio que atingi o
alvo...
¾ És campeão ¾ informou Costa. ¾ Um campeão.
Pimpolho tinha uma série de trunfos enfiados
debaixo da manga para tratar com as raparigas. Nunca falhava o primeiro lance a
uma rapariga nova entrada no bar, mas nem sempre alcançava o mais importante.
Tinha descoberto que tocar primeiro numa rapariga punha logo a rapariga em
cheque. O facto de uma rapariga mostrar o seu corpo punha-a um pouco vulnerável
e desprotegida.
Dona
olhava para a blusa a ver se estava apertada e falava serenamente para Gorete.
¾ Sempre desejei viver num Parque Residencial. Adoro as
coisas chiques. Amo o bom.
¾ Isso é muito bonito de dizer se uma pessoa é rica e
tem dinheiro ¾ retorquiu Gorete com firmeza. ¾ Conheço gente do meu bairro que aproveita os
fins-de-semana para ir à pesca, correr na rua, usa fatos de treino e ouve
rádio.
Dona
estava a pôr Gorete mais comunicativa e excitada. Há uns tempos a esta parte
nunca ela se sentira tão excitada e à vontade.
Podia
dizer tudo quanto lhe viesse à toa. Riu fora do tempo.
¾ É pouco normal usar roupas velhas quando uma pessoa
tem o guarda-vestidos cheio de coisas boas ¾ continuou. ¾ Trapos velhos são as coisas que eu tenho a mais e
sinto-me cheia deles. ¾ Olhou para Dona para ver se ela confirmava.
Gorete
acenou com a cabeça.
¾ Contenta-te comigo. ¾ Uma forte amizade crescia entre as duas. Pimpolho
tentou apanhar o rumo à conversa, mas não foi lá.
As bermas
da estrada corriam cheias de ervas baldias que se precipitaram para dentro da
estrada. O manto celeste estava a abrir-se para um novo serão.
─ Não
tarda que adormeça ─ observou Pimpolho esfregando os olhos com as mãos.
¾ Tive um tio que foi preso devido a ser apanhado a
palmar uma carteira ¾ rosnou Piolha.
¾ É porque não foi lesto ¾ retorquiu Pimpolho. Quando um carteirista dá uma
palmada numa pessoa, geralmente a culpa é desta.
¾ De qualquer forma, palmou-o ¾ afirmou Piolha.
A
carrinha estava a aproximar-se do início da lomba e a visibilidade tornava-se
mais ofuscada.
Pela estrada Grande João tinha-se colado
atrás da carrinha. Mostrara-se conversador e afável para com Canado que não
precisou de muito tempo para se familiarizar, uma vez que a conversa de ambos
era a mesma.
¾ Porque não vai ter com ela quando sair da carrinha? ¾ sugeriu Canado.
¾ Oh, não sei. Vai acompanhada da outra rapariga.
¾ Mas não sabe se elas moram no mesmo lugar.
¾ Pois não ¾ declarou Grande João, dizendo para si mesmo se um tal
esquema teria qualquer chance com uma das raparigas. Não sabia. Mas era sempre
melhor tentar. Somente os grandes galãs podiam atrever-se a inventar uma ideia
e iniciar uma relação. Puxou o relógio para o pulso para ver as horas com os
olhos um pouco embaciados devido à poeira da viagem.
¾ Tenho uma ou duas ideias que podiam resultar ¾ prosseguiu. ¾ Ora, vamos lá mandar as ideias cá para fora.
Suponhamos agora que elas saem as duas e moram na mesma zona. Isto é apenas uma
suposição, claro. Eu fazia-me à loira, e você fazia-se à amiga.
¾ Mas elas não podem querer que uma saiba da vida da
outra ¾ retorquiu Canado. ¾ Esqueceu-se desse pormenor.
João
passou a mão pelo queixo. Tinha o pressentimento de que lhe faltava qualquer
coisa, mas lembrou-se da outra ideia. Tinha de a trazer cá para fora.
¾ Suponhamos que as convidávamos para cear e as
levávamos connosco. Então, aí talvez que um de nós... bom, eu não a deixaria
escapar.
¾ Calma aí ¾ interrompeu Canado.
Mas João
tinha ganho embalagem.
¾ Suponha agora que elas nos dão com os pés, ou mesmo
que nos mandam àquela parte. Isso pode acontecer, é claro. Bom, talvez elas
queiram que nós as compremos.
Canado
começou a coçar a careca.
¾ Comprá-las?
¾ Não só o tempo, mas também todo o resto.
¾ Mas, se elas vendessem o tempo, nessa altura nós não
precisávamos de comprar o resto.
A
garganta de João soltou uma gargalhada, as pupilas avermelharam e um grande sorriso
repuxava-lhe um dos cantos da boca. Pela primeira vez, desde que se metera no
seu carro no Apeadeiro Nela, não tinha sorrido com tanto deleite.
¾ Levo as coisas até um ponto mais longe ¾ acrescentou. ¾ Quando aliciamos a companhia, a única coisa que nos
consola é o momento do prazer.
¾ Isso é de homem ¾ retorquiu Canado entusias-ticamente. ¾ Sim, senhor, é
de homem. É técnica, mas técnica da mais pura classe. Sim, senhor, ninguém nos
poderia levar a mal.
O sorriso
reacendeu-se na boca de João.
¾ O que quer dizer com isso de técnica? A nossa
intenção é ir ao encontro delas e engatá-las. Podíamos mesmo levá-las a dar uma
passeata.
¾ É isso mesmo ¾ declarou Canado. ¾ É de homem. O senhor tem classe.
¾ Espero que não pense que é uma coisa feia. Há mais de
vinte anos que lido com raparigas da noite, e soube sempre dar-lhes a volta por
cima. Posso envaidecer-me da minha folha de serviços.
¾ Não estou a duvidar ¾ assegurou Canado. ¾ Até que teve uma ideia magnífica. Aceito-a,
plenamente, mas…
¾ Mas o quê?
Puxou por
ele João.
¾ Estou muito abaixo da sua bolsa e vou precisar de
algum dinheiro mais.
¾ Para que precisa de dinheiro? Talvez eu possa
emprestar-lho...
¾ Sim, sim ¾ retorquiu Canado. ¾ Eu depois
presto-lhe contas.
¾ Claro que sim ¾ declarou João. ¾ Claro que sim. Os amigos são para as ocasiões.
¾ Nunca disse uma coisa tão acertada...
João
olhou para a esquerda e sorriu. A estrada curvava entre as duas margens e a
passagem para a localidade seguinte era feita por duas grandes lombas.
¾ Estamos esclarecidos. Penso que podemos fazer o
engate. Contudo, não devemos deitar foguetes antes da festa. Os meus tios falam-me
muitas vezes nisto.
¾ Oh, não pense nisso ¾ respondeu Canado. ¾ Eu não penso. ¾ Olhou disfarçadamente para João. ¾ A verdade é que tenho no Porto duas artistas muito
vistosas e sedutoras e estão sempre prontas quando eu lhes telefono.
¾ Eu fico algumas vezes no Porto ¾ informou João. ¾ Talvez pudéssemos fazer lá uma chanfana. Ainda esta
noite sou capaz de lá ficar.
¾ Posso-lhe apresentar as artistas de que falei?
¾ Se as outras falharem, por que não? Um homem precisa
de uma distracção. Fico sempre na Residencial do Vieira, em Vale Formoso.
Telefono para lá e pronto.
¾ Assim, ainda é melhor ¾ concordou Canado. ¾ Qual é o tipo de mulher que mais prefere: loira ou
morena?
¾ Não dou muito valor à
cor ¾ retorquiu João. ¾ Gosto de beber um uísque puro e de me deitar de papo
para o ar, mas tenho um pedido a fazer, que me suguem o orgasmo da infidelidade
até ao tutano, sabe como é. Não quero é que me moam o juízo.
¾ Oh, claro ¾ afirmou Canado. ¾ Sabia-lhe bem era se você pudesse engatar a loira que
vai ali à frente na carrinha.
¾ E você não, meu safado? ¾ exclamou João.
Pimpolho tinha-se mudado para a frente da carrinha. Disse a Piolha que a
retaguarda da carrinha chiava muito e sentou-se no banco ao lado de Cassilda. A
sua mão direita ergueu-se e o dedo polegar coçou os olhos. Era o sono a querer
apoquentá-lo. O seu maior problema. Tinha que se manter fino para aguentar o
resto da jornada. Tornou a coçar os olhos com o dedo levemente.
Cassilda olhava através da janela com ar distante.
¾ Gostaria de um dia poder
ir a Angola ¾ observou Pimpolho.
Cassilda voltou a cabeça, rapidamente. Tirou os óculos permitindo-lhe
ter uma visão mais nítida.
Pimpolho engoliu em seco.
¾ Nunca lá fui ¾ pronunciou acanhadamente.
¾ Nem eu ¾ respondeu Cassilda.
¾ Não, mas gostava de lá
ir?
Ela acenou com a cabeça. Não queria fitá-lo porque ele não desviava os
olhos dela, e isso perturbava-a.
¾ Fazer o quê? ¾ perguntou.
¾ Talvez você gostasse de
participar num safari ¾ afirmou Pimpolho. ¾ Veria animais e muitas outras coisas diferentes. Adquiria outras
experiências.
Ela acenou novamente e pôs os óculos como medida de abrigo. Assim podia
olha-lho sem ficar perturbada.
¾ E porque não vai você? ¾ perguntou Cassilda.
¾ Oh, hei-de ir ¾ afirmou Pimpolho. ¾ Hei-de ir conhecer o mundo. Sou um grande
aventureiro. Gosto mais de uma aventura do que de outra coisa qualquer.
Aprende-se muitas coisas.
Pimpolho
ia buscar a maior parte das suas histórias aos livros de banda desenhada e
também às revistas.
¾ Pensei em ser um militar comando como Jaime Neves e
ir para Angola tratar os turras de todas aquelas aflições. Já viu algum filme
de África?
¾ Não ¾ respondeu Cassilda. Estava deslumbrada pela maneira de falar do rapaz.
¾ É um povo muito tapado esse de Angola ¾ explicou ele. ¾ Alguns deles são tão tapados que põem cabras a subir
no nosso elevador, se não aparecer um soldado a dizer-lhes para irem pelas escadas.
E se a gente os ensinar, ficam a adorar-nos e não permitem que apareça outro
colonizador a provocar guerrilhas, pois derrubam-nos à catana. ¾ Respirou para continuar a falar. ¾ Penso que são tão generosos como você e eu ¾ continuou. ¾ Logo que Jaime Neves chegou e lhes tratou da saúde,
ficaram a fixá-lo... e você sabe o que ele fez? Descobriu o seu próprio
instinto. E apareceu depois aquela revolução e ele não sabia se devia ligar-se
a ela em virtude de ela ter um compromisso. E depois, veio a saber-se que a
culpa não fora da revolução e nem mesmo era verdade, mas daqueles que se
intrometeram a contar histórias a respeito da revolução. ¾ Os olhos de Pimpolho brilhavam de fulgor e
entusiasmo. ¾ Jaime Neves não
acreditou nessas histórias e vivia num velho quartel que tinha telefones
secretos e... bom, depois chegaram os revolucionários.
¾ É muito interessante
¾ afirmou Cassilda.
A
carrinha introduziu a terceira velocidade para alcançar a última lomba. Ao
chegar ao cimo passou entre duas viaturas em sentidos opostos, seguiu em frente
e, lá em baixo, apareceu uma placa em cimento na berma a indicar Madalena,
brilhando como cristal límpido sob a luz do candeeiro.
Costa
meteu a quarta velocidade e passou a lomba.