Sunday, February 2, 2014

A jovem da internet
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As paredes do quarto do hospital eram pintadas de cor branca. Uma janela larga de cortina e de caixilharia de madeira, bem no centro, iluminava a pequena divisão, clara e simples. O doente, deitado numa cama de ferro, contemplava-nos com um olhar esquivo, vago e desconfiado. Era um pouco magro, o rosto barbudo e os cabelos quase esbranquiçados ─ falava-se ─ em fratura da bacia. O seu pijama parecia demasiado grande para o seu pequeno corpo, o peito encolhido, a barriga enlatada. Ao fundo da cama, um peso elevava-lhe uma das pernas ao ar. Sentíamos que estava enfraquecido, devorado pelas suas dores, por uma posição presa à cama, como uma fruta por um verme. O seu desespero, a sua raiva, estavam ali, naquele pensamento, obstinados, sofredores, insaciáveis. Aos poucos roíam-lhe o juízo. Que sofrimento aquele homem causado por uma queda! Causava dor e pena, vê-lo naquele estado! Qual seria o sonho estranho, obsessão e fatal, que habitava sua testa enrugada em rasgos profundos e intensamente agitados? O médico disse-me:
«O seu irmão, é pessoa de acessos de raiva eminentes, um dos doentes mais incorrigíveis que já tratei. Insulta todas as enfermeiras. Ainda há dias, por a enfermeira da noite demorar um bocado, atirou com a arrastadeira suja contra a parede e insultou-a do mais reles. Escreveu, até, um diário onde fica claramente demonstrada a malvadez do seu instinto. Neste diário, a paranóia chega a ser palpável. Caso lhe interesse, poderá ler o livro.»
Acompanhei o médico ao gabinete e ele me entregou o diário do meu irmão.
«Leia-o e depois dê-me o seu parecer.»
Eis o que dizia:
´Até contemplar meia-idade, vivi sossegado, sem amor. A vida parecia-me tão simples, tão a meu gosto, tão fácil. Era solitário. Vivia com uma pequena reforma em casa que os meus pais viveram. Gostava de tantas coisas ao mesmo tempo que não podia sentir paixão por coisa nenhuma. Como era bom viver assim! Acordava radiante todos os dias porque me aguardavam trabalhos que gostava de fazer e dormia tranquilo, com a convicção feliz do dia seguinte ser igual ao dia anterior. Nunca possuíra nenhuma amante nem mulheres de relevo, nem nunca sentira o coração disparar de desejo ou a alma perdida por falta de posse. É bom viver assim. Amar pode ser melhor, mas terrível. Aqueles que amam devem experimentar uma felicidade alegre, talvez menos intensa do que a minha, pois o amor veio ao meu encontro em circunstâncias incríveis. Como eu era solitário, vivia à cata de jovens belas e fascinantes, pela internet. Frequentemente pensava nos olhos desconhecidos que tinham mirado aquelas imagens, as mãos que as tinham apalpado, os corações que as tinham amado, pois a verdade é que se amam essas coisas! Ficava tempos infinitos perdido na contemplação de um corpinho daqueles. Era tão perfeito, tão formoso, com o seu esplendor e a sua juventude. E continuava a embelezar como no dia em que o tinham inserido no site. Como gostaria de conhecer, de ver a jovem que se propôs posar naquelas fotos de bom gosto! Já é velha? Vivo torturado de desejo pelas jovens de hoje! Amo, ao longe, todas as que amaram! A história das ternuras destes tempos inunda de calor o meu coração. Oh, as belezas, os sorrisos, as carícias da juventude, as quimeras! Deveriam ser duradouros! Quanto sonhei, noites seguidas, por causa das jovens de hoje: tão belas, tão sensuais, cujos braços se abriam para o amor, e que já morreram! O amor imortal! Passa de um para outro, de século em século, de tempo em tempo. Os homens o recebem, distribuem e morrem.
O passado toca-me, o presente anima-me, o futuro mata-me. Gostaria de parar o tempo, parar a hora. Mas ela passa, vai embora, roubando em cada segundo um pouco de mim mesmo para o nada do dia seguinte. Jamais voltarei a viver. Adeus, belas de hoje. Eu vos adoro. Mas não há porque me lamentar. Encontrei-a, sim, aquela que procurava. E com ela desfrutei de prazeres imagináveis. Navegava pela internet numa tarde apagada, a alma em baixo, os dedos frescos, contemplando os sites da internet com o interesse distraído dos despassarados. De repente entrei num programa de um site internacional uma jovem russa, muito bela e muito fascinante. Acreditei ser imagem de uma atriz de cinema da época. 
Passei à frente. Porque será que a lembrança da jovem me perseguiu com tanta força que tive de voltar atrás? Cliquei de novo no site a fim de revê-la. Senti-me tentado. Que coisa curiosa é a tentação! Contempla-se uma imagem virtual e aos poucos ela seduz, mexe, invade, como o rosto de uma jovem. O seu fascínio penetra nos olhos como a cobiça, e provoca um estranho fascínio pela forma, pela pele, pela fisionomia de coisa. E já se começa a gostar, a enrolar, a querer. Um elo de posse toma conta de nós, primeiro de mansinho, quase tímido, mas cresce e torna-se violento, imperial. Marquei o site e tornei-me imediatamente seu cliente e admirador. Oh, como sinto pena dos que ignoram a lua-de-mel do cibernauta com a imagem que acabou de clicar! Recebe carícias dos olhos como se fosse de carne e osso. Volta-se a admirá-la sob qualquer pretexto, não se tira o pensamento dela, não importa onde se esteja ou o que se faça. Aquela lembrança adorada segue os nossos passos na rua, no quotidiano, por toda a parte. E, quando se chega para casa, antes mesmo de tirar o casaco e descalçar os sapatos, corre-se ao computador a contemplá-la com ternura de amante. Adorei a jovem durante dez dias. Abria o site a cada momento. Explorava-a com encanto, saboreando todas as fotos expostas da posse.
Andava mergulhado em silêncio e emoção, com aquela espécie de inquietação que não nos deixa após um beijo de amor. Parecia-me já ter vivido noutra vida, conhecido aquela jovem. Em casa senti um desejo a puxar por mim de rever o olhar da jovem. Toquei-lhe com as mãos e, senti, um calafrio demorado atravessou toda a minha espinha. Durante uns dias, contudo, continuei as minhas fainas normais, embora a fascinante imagem da jovem jamais se descolasse de mim.
Sempre que chegava da rua, corria a vê-la e a focá-la? Virava a página do site com o estremecimento de que se fica possuído ao abrir a porta da casa da sua amada. Após acariciá-la, e fixá-la no monitor, continuava sempre a senti-la, como uma criatura viva, escondida, prisioneira. Sentia-a e desejava-a de novo. Acho que vivi assim um par de semanas, nem me lembro do tempo. Trancava-me sozinho com ela a fim de senti-la contra o meu corpo, beijar os lábios dela, mordê-la. Amava-a! Sim, amava-a! Já não podia viver sem ela, nem passar um só momento sem vê-la. E fica ali… esperava… de quê? Não sei. Ela.
Uma noite, despertei subitamente com a sensação de não estar sozinho no quarto. Contudo, estava. Mas não consegui novamente pregar olho. Agitado pelo quente da insónia, levantei-me para abrir o site, e passar os meus dedos no rosto da jovem. Pareceu-me mais sedutora do que nunca, mais viva. Os apalpões que lhe dei para a aquecer fizeram-me desfalecer de felicidade. Puxei-a mais para a minha beira, e encostei-me, apertando-a contra o meu peito, como uma amante que vai ser possuída. Percorri em carícias a linha ondulada e escultural da cabeça aos pés, seguindo as curvas do corpo.
Ora, no dia seguinte, ao enfiar um dedo no laço que ata a calcinha da jovem, que a imagem fechou e vi, estupefacto sobre uma cadeira de veludo vermelho, um letreiro em letras douradas. Sim, um pequeno letreiro escrito com os dizeres: To secret - do not distribus! Olhei abismado a cena, inconformado, perturbado!

Fui invadido por uma estranha onda. Porque seria aquilo? Quando em circunstâncias habituais nunca me tinha acontecido tal? Que mistério, que drama, ocultava aquela imagem? Quem a teria apagado? O programador decidiu acabar com o site para sempre? Ou eu mesmo, que fora além do que devia, num momento de desespero?  
Não soube disfarçar por mais tempo a minha ventura. Amava-a com tanta loucura, que não queria mais perdê-la. Estava sempre comigo em todo o pensamento. Passava pela cidade com ela como se fosse minha mulher e levava-a à praia, nos meus passeios pela praia mar, como uma amante… Mas toparam-na… localizaram… e tiraram-na de mim. Fui parar para um hospital depois de cair do teto em cima do computador como se fosse uma rocha. Roubaram-na… Oh, desgraça minha!...`
O diário terminava ali. Subitamente ao levantar os meus olhos admirados para o médico, um grito frenético, um rugido de fera débil, ecoou pelo hospital.
─ Está a ouvir? ─ perguntou o médico. ─ Temos de manter este obsceno atado ao peso nas pernas mais cinco dias. Só o Robinson Crusoe se apaixonou por imagens virtuais.
Cheio de assombro, proferi com hesitação, confuso entre o sofrimento e a compaixão.
─ Mas… e o site… existe na verdade?
O médico levantou-se, abriu um computador ligado à Net repleto de programas e sites, e pô-lo por cima da secretária, mostrando uma longa fila de jovens de cabelos louros e morenos que voaram na minha direção como umas tentações aos olhos. O médico abriu os braços e concluiu:

─ A paranóia do homem vai para além de tudo.