A
jovem da internet
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As
paredes do quarto do hospital eram pintadas de cor branca. Uma janela larga de
cortina e de caixilharia de madeira, bem no centro, iluminava a pequena
divisão, clara e simples. O doente, deitado numa cama de ferro, contemplava-nos
com um olhar esquivo, vago e desconfiado. Era um pouco magro, o rosto barbudo e
os cabelos quase esbranquiçados ─ falava-se ─ em fratura da bacia. O seu pijama
parecia demasiado grande para o seu pequeno corpo, o peito encolhido, a barriga
enlatada. Ao fundo da cama, um peso elevava-lhe uma das pernas ao ar. Sentíamos
que estava enfraquecido, devorado pelas suas dores, por uma posição presa à
cama, como uma fruta por um verme. O seu desespero, a sua raiva, estavam ali,
naquele pensamento, obstinados, sofredores, insaciáveis. Aos poucos roíam-lhe o
juízo. Que sofrimento aquele homem causado por uma queda! Causava dor e pena,
vê-lo naquele estado! Qual seria o sonho estranho, obsessão e fatal, que habitava
sua testa enrugada em rasgos profundos e intensamente agitados? O médico
disse-me:
«O
seu irmão, é pessoa de acessos de raiva eminentes, um dos doentes mais
incorrigíveis que já tratei. Insulta todas as enfermeiras. Ainda há dias, por a
enfermeira da noite demorar um bocado, atirou com a arrastadeira suja contra a
parede e insultou-a do mais reles. Escreveu, até, um diário onde fica claramente
demonstrada a malvadez do seu instinto. Neste diário, a paranóia chega a ser palpável.
Caso lhe interesse, poderá ler o livro.»
Acompanhei
o médico ao gabinete e ele me entregou o diário do meu irmão.
«Leia-o
e depois dê-me o seu parecer.»
Eis
o que dizia:
´Até
contemplar meia-idade, vivi sossegado, sem amor. A vida parecia-me tão simples,
tão a meu gosto, tão fácil. Era solitário. Vivia com uma pequena reforma em
casa que os meus pais viveram. Gostava de tantas coisas ao mesmo tempo que não
podia sentir paixão por coisa nenhuma. Como era bom viver assim! Acordava
radiante todos os dias porque me aguardavam trabalhos que gostava de fazer e
dormia tranquilo, com a convicção feliz do dia seguinte ser igual ao dia
anterior. Nunca possuíra nenhuma amante nem mulheres de relevo, nem nunca sentira
o coração disparar de desejo ou a alma perdida por falta de posse. É bom viver
assim. Amar pode ser melhor, mas terrível. Aqueles que amam devem experimentar
uma felicidade alegre, talvez menos intensa do que a minha, pois o amor veio ao
meu encontro em circunstâncias incríveis. Como eu era solitário, vivia à cata de
jovens belas e fascinantes, pela internet. Frequentemente pensava nos olhos desconhecidos
que tinham mirado aquelas imagens, as mãos que as tinham apalpado, os corações
que as tinham amado, pois a verdade é que se amam essas coisas! Ficava tempos
infinitos perdido na contemplação de um corpinho daqueles. Era tão perfeito,
tão formoso, com o seu esplendor e a sua juventude. E continuava a embelezar
como no dia em que o tinham inserido no site. Como
gostaria de conhecer, de ver a jovem que se propôs posar naquelas fotos de bom
gosto! Já é velha? Vivo torturado de desejo pelas jovens de hoje! Amo, ao longe,
todas as que amaram! A história das ternuras destes tempos inunda de calor o meu
coração. Oh, as belezas, os sorrisos, as carícias da juventude, as quimeras!
Deveriam ser duradouros! Quanto sonhei, noites seguidas, por causa das jovens
de hoje: tão belas, tão sensuais, cujos braços se abriam para o amor, e que já morreram!
O amor imortal! Passa de um para outro, de século em século, de tempo em tempo.
Os homens o recebem, distribuem e morrem.
O
passado toca-me, o presente anima-me, o futuro mata-me. Gostaria de parar o
tempo, parar a hora. Mas ela passa, vai embora, roubando em cada segundo um
pouco de mim mesmo para o nada do dia seguinte. Jamais voltarei a viver. Adeus,
belas de hoje. Eu vos adoro. Mas não há porque me lamentar. Encontrei-a, sim,
aquela que procurava. E com ela desfrutei de prazeres imagináveis. Navegava
pela internet numa tarde apagada, a alma em baixo, os dedos frescos, contemplando
os sites da internet com o interesse distraído dos despassarados. De repente entrei
num programa de um site internacional uma jovem russa, muito bela e muito fascinante.
Acreditei ser imagem de uma atriz de cinema da época.
Passei à frente. Porque
será que a lembrança da jovem me perseguiu com tanta força que tive de voltar
atrás? Cliquei de novo no site a fim de revê-la. Senti-me tentado. Que coisa curiosa
é a tentação! Contempla-se uma imagem virtual e aos poucos ela seduz, mexe,
invade, como o rosto de uma jovem. O seu fascínio penetra nos olhos como a
cobiça, e provoca um estranho fascínio pela forma, pela pele, pela fisionomia
de coisa. E já se começa a gostar, a enrolar, a querer. Um elo de posse toma
conta de nós, primeiro de mansinho, quase tímido, mas cresce e torna-se violento,
imperial. Marquei o site e tornei-me imediatamente seu cliente e admirador. Oh,
como sinto pena dos que ignoram a lua-de-mel do cibernauta com a imagem que
acabou de clicar! Recebe carícias dos olhos como se fosse de carne e osso.
Volta-se a admirá-la sob qualquer pretexto, não se tira o pensamento dela, não
importa onde se esteja ou o que se faça. Aquela lembrança adorada segue os
nossos passos na rua, no quotidiano, por toda a parte. E, quando se chega para
casa, antes mesmo de tirar o casaco e descalçar os sapatos, corre-se ao
computador a contemplá-la com ternura de amante. Adorei a jovem durante dez
dias. Abria o site a cada momento. Explorava-a com encanto, saboreando todas as
fotos expostas da posse.
Andava
mergulhado em silêncio e emoção, com aquela espécie de inquietação que não nos
deixa após um beijo de amor. Parecia-me já ter vivido noutra vida, conhecido
aquela jovem. Em casa senti um desejo a puxar por mim de rever o olhar da jovem.
Toquei-lhe com as mãos e, senti, um calafrio demorado atravessou toda a minha
espinha. Durante uns dias, contudo, continuei as minhas fainas normais, embora
a fascinante imagem da jovem jamais se descolasse de mim.
Sempre
que chegava da rua, corria a vê-la e a focá-la? Virava a página do site com o
estremecimento de que se fica possuído ao abrir a porta da casa da sua amada.
Após acariciá-la, e fixá-la no monitor, continuava sempre a senti-la, como uma
criatura viva, escondida, prisioneira. Sentia-a e desejava-a de novo. Acho que
vivi assim um par de semanas, nem me lembro do tempo. Trancava-me sozinho com
ela a fim de senti-la contra o meu corpo, beijar os lábios dela, mordê-la. Amava-a!
Sim, amava-a! Já não podia viver sem ela, nem passar um só momento sem vê-la. E
fica ali… esperava… de quê? Não sei. Ela.
Uma
noite, despertei subitamente com a sensação de não estar sozinho no quarto.
Contudo, estava. Mas não consegui novamente pregar olho. Agitado pelo quente da
insónia, levantei-me para abrir o site, e passar os meus dedos no rosto da
jovem. Pareceu-me mais sedutora do que nunca, mais viva. Os apalpões que lhe
dei para a aquecer fizeram-me desfalecer de felicidade. Puxei-a mais para a
minha beira, e encostei-me, apertando-a contra o meu peito, como uma amante que
vai ser possuída. Percorri em carícias a linha ondulada e escultural da cabeça
aos pés, seguindo as curvas do corpo.
Ora,
no dia seguinte, ao enfiar um dedo no laço que ata a calcinha da jovem, que a
imagem fechou e vi, estupefacto sobre uma cadeira de veludo vermelho, um
letreiro em letras douradas. Sim, um pequeno letreiro escrito com os dizeres: To secret - do not distribus! Olhei
abismado a cena, inconformado, perturbado!
Fui
invadido por uma estranha onda. Porque seria aquilo? Quando em circunstâncias
habituais nunca me tinha acontecido tal? Que mistério, que drama, ocultava
aquela imagem? Quem a teria apagado? O programador decidiu acabar com o site
para sempre? Ou eu mesmo, que fora além do que devia, num momento de desespero?
Não
soube disfarçar por mais tempo a minha ventura. Amava-a com tanta loucura, que
não queria mais perdê-la. Estava sempre comigo em todo o pensamento. Passava
pela cidade com ela como se fosse minha mulher e levava-a à praia, nos meus
passeios pela praia mar, como uma amante… Mas toparam-na… localizaram… e
tiraram-na de mim. Fui parar para um hospital depois de cair do teto em cima do
computador como se fosse uma rocha. Roubaram-na… Oh, desgraça minha!...`
O
diário terminava ali. Subitamente ao levantar os meus olhos admirados para o
médico, um grito frenético, um rugido de fera débil, ecoou pelo hospital.
─
Está a ouvir? ─ perguntou o médico. ─ Temos de manter este obsceno atado ao
peso nas pernas mais cinco dias. Só o Robinson Crusoe se apaixonou por imagens
virtuais.
Cheio
de assombro, proferi com hesitação, confuso entre o sofrimento e a compaixão.
─
Mas… e o site… existe na verdade?
O
médico levantou-se, abriu um computador ligado à Net repleto de programas e
sites, e pô-lo por cima da secretária, mostrando uma longa fila de jovens de
cabelos louros e morenos que voaram na minha direção como umas tentações aos
olhos. O médico abriu os braços e concluiu:
─
A paranóia do homem vai para além de tudo.