Tuesday, April 23, 2013




FERNANDO ABRAÃO
E RATAZANA
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(6)

´A DONZELA FURTIVA`



O
MUNDO
DA
NOITE
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Filipe Mendes desabafara uma conversa, furioso, a um grupo de amigos, que o rodeavam ao balcão de um bar, afirmando que o pai, quando ele era menor, espalhou a notícia em que o declarava herdeiro e dono de umas quantas quintas referenciadas, quando ambos passeavam aos domingos. Com a mudança dos tempos e a crise dos altos e baixos da vida, quando recuperou a maioridade, Mendes verificou que, pobrezito, já não era proprietário. Ganhou um provérbio para si: «Nunca digas o que tens hoje, diz antes o que tens amanhã». Filipe Mendes nasceu à volta dos anos 60. Aos vinte e picos anos licenciou-se em economia, na cidade do Porto. Trabalhou numa empresa industrial. Aí esteve ganhando experiência e curriculum, até se apaixonar por uma jovem senhorita da média alta que lhe deu duas filhas. Aproximadamente uma mão de anos depois do casamento, Mendes fez uma descoberta importante. Tinha chegado à conclusão que não nascera para estar preso a compromissos matrimoniais. No estado em que estava, achou que devia divorciar-se e desistiu de estar casado. Mendes tornou-se um solitário pacato. Na vida de casado, e depois, na vida de solteiro, Mendes foi mais madrugador do que era trabalhador. Tinha o encanto especial dos nascidos sob o signo da Balança. Foi da Rua da Constituição que Mendes adquiriu a paixão pelos bares, especialmente os da diversão noturna. — O seu primo Cebolinha afirmava que ele tinha uma amiga em cada bar. Nessa altura, as tendências de Mendes para as mulheres, eram na verdade catastróficas, com um toque a roçar de pesadelo. Nos bares, sofreu a influência de Cebolinha que o ensinou a apreciar o uísque e a boémia, e de Rui Janeiro, que lhe ensinou que o melhor objetivo na vida é viver com «um aroma resistente como um diamante raro» e que fez renascer a frase de Ratazana «Vício pelo vício». No seu último ano na indústria, Mendes disse a um amigo; «Hei-de ser rico, se não chegar a rico, hei-de ter mau nome». Quando, com a ida para gestor de uma empresa de sapatos pré-falida, não se absteve de pensar que estava a andar como o caranguejo; anunciou que uma revolução no visual era mais importante do que uma revolução na mente, e começou a fazer uma cirurgia para corrigir um defeito nos olhos, deixando de usar aqueles óculos graduados. Durante o ano de 1990 era elogiado semanalmente no pasquim O Jornal Dos Traidores. Nos anos seguintes, Abraão retratou-o no blogue Contos de Ratazana, na personagem do traidor Menino Bom. Abraão não tinha dúvidas de que estava a ser irónico, mas Mendes ficou radiante com a fama que isso lhe trouxe. Em 1993, depois de uma viagem à Europa em que abriu um leque de mais contatos na sua carreira profissional, anunciou o namoro com uma sisuda rapariga de aspeto reservado. Estavam profundamente enraizados, e, na manhã após a noite da pinocada, passeava Mendes na Rua das Doze Casas com a sua beleza, no seu carro, quando foi apanhado no cruzamento da rua por Ratazana. Nasceu mais um artigo para o pasquim do bar. Aproximadamente dois anos depois do encontro, Mendes fez uma descoberta fabulosa. Tinha tido uma relação sexual com uma prostituta chamada Luísa, e fora «terrible» dando duas quecas seguidas (que lhe dera fama e publicidade). Aproximadamente nessa altura conheceu uma divorciada de vinte e nove anos, chamada «Taiti», que era divertida, inteligente e simpática. Taiti afirmou mais tarde que tinha sido o primeiro cliente-traidor que ela tinha ido para a cama. Era óbvio que não gostava de jovens de rara beleza — comentou uma vez que ter relações com tipas coquetes e provocantes o fazia sentir como se estivesse «a dançar com marionetes». O seu apetite parece ter sido pouco — contou a Cebolinha que uma vez tivera quatro goelinhas numa noite e que as tinha rejeitado sem uma desculpa. «Estavam todas charmosas e desinteressei-me por completo». Em 1999, o equilíbrio tardava a chegar; os últimos empregos, como empregado comercial e vendedor imobiliário, não conseguiram ser duradouros, e tornou-se membro de uma caixa económica (a que foi dado o nome de Caixa de 20 Amigos). Finalmente em meados de 2003, por volta dos trinta e cinco anos, entrou para uma firma conceituada no mercado nacional, facto que o deve ter deixado bastante satisfeito. No ano seguinte, Mendes protagonizou uma cena melodramática, durante o evento «O dia do Traidor», quando foi premiado com uma prostituta de borla para uma rapidinha. Quando Mendes chegou ao quarto e viu a prostituta, seminua, deitada na cama, atirou-lhe com uma certa lata a seguinte frase: «É uma deceção que um corpo mal feito qual um camafeu, como o teu, tenha sido feito tanto para uma corrida ao sobreiro como para a tontura dos olhos». (Em conversa com as amigas, a prostituta chama-lhe «vaidoso, arrogante, e de mau gosto», e afirma que era provável que estivesse alcoolizado). Um dia em que Janeiro viu Mendes e um amigo a beberem juntos em O Bar do Traidor, deixou-se ficar a fazer-lhes companhia e ficou deslumbrado com o episódio de Mendes, sobre o caso da prostituta do evento, dizendo-lhe depois que nunca vira coisa igual. A frase do «corpo mal feito como um camafeu» levou Mendes a passar-se dos carretos e mandou uma farpa ao pasquim do bar, furioso, resmungando com os empregados «Os Maus-Olhados» que nunca mais saberiam desabafos seus. Ritinha, um dos empregados, respondeu com um sorriso: «Que cliente mais divertido é o senhor doutor...» A partir daí, Mendes começou a frequentar outros locais onde a malta boémia não parava, querendo mudar o seu rumo. Uma tarde, Mendes resolveu mudar-se para o prédio onde vivia Janeiro, na zona da Senhora da Hora. Ao encontrá-lo na garagem do prédio, observou: «Se é desta maneira que eu consigo mudar os meus problemas, então, não mereço ter nenhum». Porém, o velho hábito desapareceu. A experiência da solidão ia mudando Mendes à acalmia. Afundou-se em trabalhos de casa e começou a escrever um pequeno diário — na verdade uma pequena autobiografia. O desejo de beber tinha desaparecido. «Há qualquer coisa que morreu em mim», contou a Cebolinha. Depois disto, Mendes foi para o Parque da Cidade, onde encontrou inesperadamente um conhecido dos copos, que o convenceu a voltar aos bordéis. Mendes não gostou. «O último foi há cinco anos e há-de ficar por aí», disse e continuou a caminhada, dizendo para si mesmo: «Estou a viver agora com os meus recursos».

Foi durante a crise de 2007, numa tarde soalheira no mês de Maio, que Manuel Castro, corado e ofegante, tocou na buzina do seu carro, para chamar a atenção de Rita, no cruzamento Valongo, junto ao posto de gasolina da Galp. Estava de casaco xadrez e camisa de cetim azul do mar com a gravata às riscas de tom amarelo. Rita usava uma calça de ganga e uma camisete meia esbranquiçada e sapatos ecco. «Tive uma grande discussão com a minha empregada», disse ela, olhando para Castro e depois para o Mercedes. Não parecia estar muito confortável. «Ela tem ciúmes que eu saia com os meus amigos» — «Tem ciúmes?», coroa Castro. Será que Rita só tinha isto para lhe dizer? Talvez ela estivesse a preparar-se para alguma. Castro tinha estado a deitar uns olhos à obra que estava a construir, perto das Antas, e Rita, estava vindo do seu salão de cabeleireira ao seu encontro, para darem uma cabeçada. Ela era faladora, e ele, bem divertido. Os dois formavam uma boa parelha. «Como é, vamos para dentro?», disse Castro, quando desligou o leitor de CD. Parecia o cantor Carlos Gardel ao seu estilo, mas não tão romântico. Rita deu-lhe um beliscão no meio das pernas e correu para a pensão. Castro sentou-se com Rita no sofá. Estava tão grato pela presença dela, como ela estava pela dele. Por uns momentos, Rita parecia ter esquecido o trabalho, senão teria tirado a camisete quando Castro lhe pôs a mão nos seios... em vez disso, deitou-se de costas e deixou que ele a apalpasse a seu bel-prazer... tinha os seios pequenos e caídos. Despiram-se e deitaram-se sobre um conjunto de cobertores tão ásperos e frios que provavelmente Rita vai passar um bom bocado da rapidinha à espera que aqueça o traseiro, mas agora nada disso importa... ela quer ser possuída e, se fosse preciso, deitava-se num colchão em cima do fogo. Abertas as pernas, Rita apoia as pontas dos dedos dos pés numa mesinha e empina o corpo, ao mesmo tempo que enrola os braços à cintura de Castro. «Manel... Manel», suspira ela. Castro manda-lhe o pedaço entre o triângulo de pelos que enfeitam a racha. Apesar da sua gorda barriga não estar equipada com uma cinta medicinal, move-se muito bem. Lá se desenrasca. «Manel! Manel!» Rita não para de o chamar. Agarra-se a ele com força. Parece que tem medo que ele fuja. Está tão em brasa, que não há nada que a possa deter... pode até cair um relâmpago do céu, que o calor continuará a aquecer até o devorar. Castro sente-se como a rola que tem de largar o pombo, para satisfação mútua. A que é que sabia? É isso que ela quer saber, e que lhe pergunta repetidamente. Não consegue esquecer aquela vagina com um triângulo de pelos, nem mesmo, quando as banhas da barriga lhe fizeram cócegas ao contato com os seios. Mas não lhe sai da cabeça aquele pequeno corpo, altura roda vinte e quatro, apertando-se contra ele... Mas o que é que ele sentia? E quando aquela roda vinte e quatro chamara de novo o seu nome, na sua voz meia infantil, e ferrara as suas orelhas, o que é que ele tinha sentido? Oh, que tola, é aquela pequena roda vinte e quatro, que sabe tantas coisas, pensava Castro. E continuam por ali adiante... «Manel! Manel!» Já se passaram sessenta minutos... e mais uns segundos sem darem conta. Mas aquela tarde, ah, eles não a vão esquecer. Depois de tudo terminado, Rita mantém-se escarrapachada sobre os cobertores da cama. Nem se dá ao trabalho de se tapar... comportando-se como se tivesse esquecido onde estava e parece plenamente satisfeita consigo própria. Mas não se esquece de lhe sacar uns euros, que é para ajudar a pagar a luz e o telefone atrasados, e conta-lhe a história do costume... Castro mete a mão à carteira e puxa de uma nota das gordas, e coloca-a dobrada, sobre os seios nus, como uma forma de os cobrir. As ruas, tão alegres e movimentadas, como sempre, acolhem-nos.

«Por favor, faz com que o Cabeleiras venha antes das quatro da tarde», diz Marlene ao dono do bar. «Por favor, faz com que o Cabeleiras venha depressa. Ele não atende o meu número. Vou ter de lhe pedir um pequeno empréstimo, que daqui por duas semanas lhe pagarei. Prometo que lhe pagarei... a não ser que ele me diga que não me empresta ou algo do género... Mas ele, não me faz essa desfeita». Trriiim... O telefone toca duas... três... quatro... «Está lá?» — «Ah, é você. Tenho uma mensagem da sua amiga Marlene. Como é que ela está? Está bonita! Pede para você vir mais cedo... O quê? Se a pus a foder? Bem, ainda não, mas... O quê? O grupo dos clientes do Marco de Canavezes, se está cá? Não, ainda não vieram. Mas não se preocupe com isso. Eu cuido bem dela. Até já». O dono do bar murmura: «Amigos da foda!!». Marlene volta-se para a festa do evento. Talvez não deva vir quem ela quisesse. Praticamente são todos conhecidos uns dos outros. São quase totalmente associados à foda, à rapidinha, como um jogo da bola: Hoje marcas tu, amanhã marco eu. Quem é que não gosta disso? Do bar desfruta-se um panorama maravilhoso. Um evento do Grupo de Traidores, onde os clientes-traidores se encontram uns com os outros, pois são tão dados às festas que não se podem dar ao luxo de perder uma oportunidade para aproveitarem uma boa massagem. Os primeiros que vão entrando na sala, ficam sentados a observar as catraias novas durante um tempo. Aquela malta tem paciência de chinês. Apalpam uma catraia nova que está a passar, tocam-lhe nos seios, passam-lhe a mão pela região do traseiro... É uma russa jovem e elegante de ancas curtas, que se está borrifando. Paulo, o Vigilante, conta que um destes dias quem fazia de mulher-galinha era uma morena e as mulheres-galo tinham gozado tanto com ela, que se os seus clientes quisessem ser efetivos teriam de o mostrar na rapidinha. É uma bela coisa ver o prazer transformar-se em vício. No Porto, funcionam umas falsas casas de passe, onde os clientes dos cabarés costumam frequentar. Cinquenta euros pagos por uma saída dão direito a ter, durante quinze minutos, uma prostituta nua. Tudo isto, bem entendido, com a escolha de uma relação oral ou um babado, com direito a uma camisa-de-vénus. Lá a clientela é toda constituída por jovens de quarenta anos, até aos cotas incluídos. Todos eles sabem para o que vem, a catraia do computador é uma moça completa, com uma linguagem tipicamente do Norte, e cheira sexo por toda a parte do corpo. Está ali à mão, pode-se oferecer uma bebida, e se o cliente quiser levá-la consigo a fazer uma rápida...tanto melhor. Vigilante diz que tem sempre vivido no meio das mulheres... com uma única exceção. As mulheres para ele são todas iguais, exceto a sua mãe. Não é que se importe com o que elas façam ou não, diz Vigilante, mas estava constantemente a levar com elas para a pensão, que já o enfastiaram. As noites eram terríveis, diz ele, e além disso havia sempre a chulice dos amantes, com os mirones acesos do lado de fora dos carros, todos os dias. O mais prático e barato, era esperar pela noite dentro e levar a prostituta a casa e, assim, Vigilante tinha direito ao bobó da praxe, e podia até ver as ondas a bater na areia. E aí sabia bem. Era reconfortante, declara Vigilante, poder contar os pescadores a pescarem nas rochas e ver que pesca não faltava. Vigilante consegue realmente cativar aquela malta com toda aquela conversa à volta das mulheres das rápidas. Uau! O telefone toca. Dois... três... quatro... «És tu, Cabeleiras?» — «Sim». — «Olá, Cabeleiras. Estás a ligar de casa? O Ratazana diz que estás convidado para o evento e temos uma mesa marcada só para nós os dois. Quem é que está cá? Para mim não me interessa ninguém. Ninguém, a não seres tu. Não, não está o Pascácio. Também não está o Cabelos Longos, Cabeleiras! Quem são os clientes-traidores que estão cá? Sei lá! Ainda não olhei bem para eles, porquê? Fui ao trapézio? Que trapézio? Pensas que venho aqui para o engate? Não sou aquilo que pensas. O Pipocas? Cabeleiras, a que propósito é que te foste lembrar do Pipocas? Que horror, Cabeleiras! Alguém já te disse alguma coisa sobre mim e o Pipocas? Disse? Jura? Não, não estou nada nervosa, porque é que iria ficar nervosa por causa do Pipocas, ele é tão molengão! E tem uma pança gordurosa que cada dia cresce mais. Bem, podes chamar-lhe gordo, mas eu chamo àquilo pança de banha». Um pequeno intervalo, para Marlene pôr um cigarro aceso na boca. Prossegue: «Ouve, eu não suporto mesmo o Pipocas. Vamos mas é mudar de con... Nervosa? Não estou nada a ficar nervosa, Cabeleiras, além disso, como é que podes ver pelo telefone? Está bem, já estou a ver que dizes muitos talvez e, não dizes um a valer. Para de rir, Cabeleiras, eu só gosto de rir quando estou na cama. E tu, vens ou não vens? Vens sozinho? Bem, se dizes para eu esperar, eu espero mesmo. Não, não me incomoda nada esperar. Ajudas-me? Oh, Cabeleiras és um querido, ajudas-me mesmo? Obrigado, és o melhor amigo que alguma vez tive. Os traidores? Esses já não são os meus melhores amigos. Se calhar antes de andar contigo eram, mas agora já não são. Eles dizem a todos que eu estou por tua conta, sabes? Eu, uma rapariga do bairro FM por conta! Só porque saí meia dúzia de vezes contigo para a pensão. Cabeleiras, aqueles tipos são do género que nem conhecem o significado da palavra amizade. Eles viram-se contra ti sem motivo nenhum e falam mal de ti pelas costas. Bolas, que horas são? Tantas? É melhor desligar o telefone. Para com os risos, Cabeleiras, não é para eu ficar aqui a tarde toda à tua espera? Prometeste-me que me ajudavas. Eu depois digo-te o que é, Cabeleiras, vamos desligar. Oquei, até já». Marlene acredita que Cabeleiras apareça só ou acompanhado de um amigo, e aproveita a beber um scotch da garrafa dele, e enquanto isso, pensa que é o melhor amigo que ela tem... Está a começar a sentir-se saturada por estar ali paralisada no bar. O Cabeleiras está a chegar e ele vai resolver o seu problema e ainda vai à pensão fazer-lhe uma massagem e tudo será perfeito... Marlene acaba com o cigarro e expira profundamente o fumo. Fhuhu... A porta do bar abriu-se de rompante, e de repente, Marlene topa Cabeleiras, a vir na sua direção, de grande charuto na boca. Olhou para ele sorridente e ele retribuiu-lhe o sorriso. Depois, ela deu-lhe um beliscão, pegou-lhe no braço e pô-lo à volta da cintura dela. «Olá, Cabeleiras, meu amor!», sorriu ela. — «Olá, Marlene, minha fofinha!», respondeu ele ternamente. «Conta-me lá, o teu problema?», perguntou ele. — «Estás pronta para me ajudar, Cabeleiras?», diz ela de olhar grave, e sussurra-lhe ao ouvido. — «Então é isso que tinhas para me dizer? Amanhã de manhã, vais ao stand escolher o carro, marcas encontro com o dono e isso resolve-se logo...». Quase lhe caia os Clérigos em cima de tanta felicidade. Marlene encostou-se mais perto dele e sussurra-lhe novamente que a sua ajuda já lhe tirara o apetite de comer e o seu desejo era levá-lo consigo para a cama. «Oh, fofinha, como é que entraste nos meus desejos?».

Chamavam Ratazana, ao dono de um bar de engate, no Porto. As suas histórias nem sempre eram verdadeiras, mas às vezes, acontecia. Um dia, contou a sua última história. Estava ele de pé ─ pelo menos assim o esteve durante grande parte do tempo que falou ─ numa sala ao lado do balcão. Junto dele, Carlos Alberto, pianista de revista, bebia um refrigerante; havia ainda José Gonçalves, cantor da época, e Mário Reis, elemento do duo Os 2 do Norte e Paulita La Rosa, bailarina de flamengo. Naquele dia de sexta-feira, de noite, tinham ido todos tocar para o Club Lord, o que deu origem, afinal, à sua narrativa. Tinham atuado todos na cerimónia do concurso das misses até ao intervalo, jantaram a seguir e ficaram naquela bela cavaqueira salutar que sabe bem ouvir contar histórias. Quando Ratazana começou a sua narração, alguns deles supuseram, naturalmente, que ele estivesse a enfiar grupos. Iniciou, com ar de quem diz uma coisa muito real, mas eles levaram isso à conta de uma das suas imprescindíveis resenhas. «Não sei se sabem», observou ele, depois de dar uma mirada, por momentos, para o ambiente que se vivia na sala. «Não sei se sabem que eu dormi aqui, sozinho, esta noite?» ─ «E os empregados?» perguntou Reis. ─ «Foram dormir às suas casas» esclareceu Ratazana, «como sempre…». Segurou o cigarro ente os dedos, ao mesmo tempo, que enviou duas bolas de fumo para o ar. Depois, declarou muito sereno: «Apanhei uma virgem!» ─ «O quê? Apanhou uma virgem?» exclamou Alberto. «Onde está ela?». Paulita La Rosa, que é admiradora de Ratazana e que esteve dois meses em Paris, acudiu: ─ «Apanhas-te uma virgem, heim? Admira-me bastante haver disso aqui! Conta-nos tudo, sem demora». Ratazana imediatamente encostou a porta, e em seguida, fitou-os com ar de quem se prepara: «Não há perigo de que nos ouçam; mas, a priori, é bom prevenir; os boatos acerca de donzelas furtivas podiam estragar o excelente trabalho do nosso ambiente. Aqui há muitos clientes e otários ocultos, de que as virgens gostam deveras. Mas aquela a que me refiro não era como a maioria. Essa estou certo de que não voltará… jamais!». ─ «Quer dizer que não a tem aqui?» inquiriu Alberto. ─ «Não tive necessidade para tal». Alberto mostrou-se surpreendido. Ouviram-se gargalhadas. «Compreendo», disse ele, com um sorriso pouco apertado. «Mas o caso é que era uma menina solteira; estou tão certo disso como de estar a falar aqui convosco. Não estou na tanga. Sei muito bem o que digo». Alberto aspirou com força um gole do líquido, fixando Ratazana com o seu olhar aprofundado; depois soltou uma baforada de ar mais convincente do que muitas palavras. O outro, prosseguiu: «Foi a coisa mais extraordinária que me aconteceu na minha carreira. Não ignoram que eu jamais acreditei em donzelas furtivas ou em coisas desse estilo. Pois bem: apanhei uma. Tive-a entre as mãos». Calou-se, repensou alguns minutos; exibiu o tabaco e tirou novo cigarro. «Falaste com ela?», perguntou Reis. ─ «Durante meia hora». ─ «Bela conversa?» arriscou por seu lado Alberto, juntando-se assim ao grupo dos duvidosos. ─ «A pobre rapariga estava atrapalhadíssima» respondeu Ratazana, com um tom de vago lamento. ─ «Desesperava?», indagou Paulita La Rosa. Como se lembrasse da verdade desse facto, o narrador suspirou e disse: «Sim, isso mesmo… Pobre rapariga!» ─ «Onde a encontraste?» Foi a vez de Gonçalves, na sua melhor entoação nortenha. Ratazana passou à frente e prosseguiu: «Nunca imaginei que pudesse ser uma virgem». Deteve-se outra vez, enquanto procurava atirar outra bola de fumo para o ar. Depois abanou a cabeça de desalento. «Eu não tinha informação sobre ela» acrescentou. Nenhum deles estava com pressa. Esperavam a continuação da confidência. «O comportamento de uma rapariga mantém-se igual mesmo depois de puxar as saias para baixo. Todos sabem disso. As raparigas que têm certa veia de imaginação podem dar origem à virgindade com a mesma veia de imaginação. Ora esta de que vos falo era muito diferente». Mostrou-se de súbito um tanto descontraído e olhou à sua volta. «Não digo estas coisas para me valorizar, mas é autêntica verdade. Logo à partida ela impressionou-me pelo seu aspeto coquete. Com o cigarro, Ratazana sublinhava as palavras da sua narrativa. «Fui chamado à porta do bar; ela estava de frente para mim, de maneira que a manjei à- vontade. Percebi logo que se tratava de uma virgem. Nem era gorda nem era magra; era intermédia; através dos seus olhos avistava-se o desejo, ao fundo. E não apenas o seu físico mas também me deram a ideia de ser bastante chavala. Dir-se-ia não saber bem o que queria, de tal forma que parecia confusa. Tinha pousado as duas mãos no casaco e balanceava com as mãos de lado para lado. Assim…». ─ «E que aparência tinha ela?» inquiriu Alberto. ─ «De aspecto fino. Como essas moçoilas de dança de salão… Um penteado à Zeca, com cabelos curtos e orelhas sem brincos. Peito metido para fora, mais peito do que barriga. Vestia um casaco que lhe cobria a saia curta, pernas muito brancas e camisa de colarinho alto. Foi isto que eu topei. Falamos das suas intenções ─ vinha numa de aventura ─ e no bar estavam clientes de vários naipes; de modo que estudei para ela, o melhor. Fiquei admirado, mas não conformado. Nestes casos, creio que o traquejo desempenha um papel importante. Surpreendeu-me, na verdade, por isso, fiquei logo curioso. Pensei: ´Que sorte a minha! Havia-me de aparecer por cá uma virgem! E eu que nunca tinha acreditado na existência delas!´». ─ «Hum…», fez Reis. ─ «A donzela não levou muito tempo a perceber que eu estava lá para a ajudar. Detivemo-nos um momento a falar dos pormenores, até que eu fui à sala à procura de um jeitoso encantado». ─ «Em resumo, sempre a orientou?» perguntou Alberto. ─ «Depois de alguns contratempos, sim, e quase na hora. Mas consegui. Alegrou-se, combinámos e ela pediu-me então que eu fizesse segredo de que ela tinha estado por ali. ´Se alguém lhe perguntar por mim`, explicou, ´não sabe donde vim nem para onde vou!`. Fiz um pacto de silêncio, e em segundos, entreguei-lhe as chaves de um Volvo que se encontrava na rua, para ela entrar para o carro e aguardar. Ela respondeu-me: ´Está bem, não sairei de lá`, e voltei-me para o fundo da rua para a ver entrar no carro. A viagem foi rápida». Pôs-se a olhar, durante uns segundos, o borrão do cigarro. «E, depois, o que aconteceu?» inquiriu Gonçalves. ─ «Que estás à espera?». Ratazana olhou para Reis. Queria rir-se, na voz e na expressão dos outros havia qualquer coisa que o impediu. «E a respeito do jeitoso?» lembrou Alberto. ─ «Creio que escolhi o par ideal». ─ «Oh! Ainda bem!» exclamou o outro. Levou o copo à boca e escorropichou o resto da bebida que ficara na garrafa. «Deu resultado? Indagou ele, batendo com o copo na mesa. ─ «Se deu…» declarou Ratazana. ─ «Mas tu não acreditaste…» notou Paulita La Rosa. Reis olhou para Ratazana que fitara o cinzeiro avolumado de pontas, absorvido nos seus pensamentos. «Acreditei, claro, porque não?» ripostou o nosso contendor e prosseguiu: «O que eu sei é que a pobre donzela, naquela noite, desapareceu perfeitamente. Mais tarde, soube por alguém que, o jeitoso encantado tinha enfiado o maior barrete da sua vida». Paulita La Rosa interrompeu-o. Afastou o copo da água, ergueu-se para a frente e disse em voz alta: «Ratazana, estiveste a contar-nos uma peta colossal. Aquele aparecimento… Que história mais incrível!» O interpelado pôs-se de olhar sério, sem olhar para ela, dirigiu-se para o meio da sala, mesmo de frente deles. Durante momentos passou os olhos pela sala e pelo balcão. Levantou as duas mãos, lentamente, até à altura da cara, e exclamou… «Se eu soubesse…» disse ele. ─ «Acho que deves contar tudo» lembrou Reis. ─ «Ora bolas!» interveio Gonçalves. «O conteúdo é caricato. Ninguém acredita que, com essa jigajoga, alguém vá parar ao paraíso. Por mim, eu experimentaria uma aventura dessas, mas primeiro, tinha de ver de quem se tratava». ─ «Não sou dessa opinião» exclamou Reis, erguendo-se e pondo a mão sobre o ombro de Ratazana. «Contou a história de uma forma que me obrigou a crer que é verdade, pelo menos até agora. Não consinto que duvidem dele». ─ «Não querem deixar ouvir a história?» disse Alberto. «Deixai-o ouvir!». E Ratazana, sempre sorridente, continuou: «A donzela era filha de um carniceiro lá da terra. No dia da sua boda, com o tal dito cliente, depois daquela cerimónia, o noivo preparava-se para comer a febra da noiva quando um caso insólito aconteceu. Ao que consta, a noiva, no ato importante, começou aos berros, e no momento em que o noivo se encontrava como transportado para um mundo invisível, sentiu-se todo arranhado com as unhas da noiva que não lhe poupou uns valentes arranhões na pele. E, pior que isso, veio a seguir, quando o sangue vindo da noiva, começou a trespassar pelo lençol numa mancha vermelha, aterrorizando o noivo que se passou dos carretos e fugiu da cama, trancando-se nos arrumos do quintal. E, mais tarde, começou a sair o boato cá para fora que a noiva era uma jovem com uma rodagem bastante alargada nos «noturnos», e que o noivo era final de contas, muito mais velho do que ela e que fora redondamente enganado. Na história daquela virgindade por uma saca forjada de sangue de porco agarrado à cintura dela e pelas unhas aguçadas de javali, escondidas no sutiã. Portanto, a noiva armou todo aquele banzé para se sentir atraída por alguém que a desposasse. Um escândalo de ficar solteiro toda a vida. Desta vez o barrete cheirou a esturro!». Estavam todos, é fácil de compreender, num estado de verdadeira euforia, principalmente devido à parte final da história. Nenhum deles desviava o olhar da pessoa de Ratazana. As gargalhadas entoavam pela sala. Ratazana abria e reabria os braços, numa atitude de padre, quando acaba o sermão. Quando Ratazana deu por finda a sua história, eles deixaram as cadeiras, rumo ao bar. Ratazana entretivera-os com uma história pitoresca, mas as histórias de virgens, às vezes, levam a isto. No bar a clientela acumulava-se.