FERNANDO ABRAÃO
E RATAZANA
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O
MUNDO
DA
NOITE
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Baixo Neves, foi tema de bastantes fofoquices no seu
papel de atirador de sexo do Grupo de Traidores — Abraão referia no seu pasquim
semanal, talvez com uma ponta de ironia, que Neves exibia publicamente, na
consola do carro, as fotos das suas inúmeras amantes. No entanto, as fofoquices
nunca chegaram ao conhecimento da família, em particular. Neves tinha uma
empresa de plantas e flores e era casado com filhos. Durante o começo da sua
carreira empresarial, viveu um ambiente de grande pressão e trabalho, vendendo
pela província e centros urbanos da região do Norte, onde geria o seu negócio
que não dava para se alargar. Esteve quase a sofrer um acidente de viação, mas
escapou por centímetros. Contudo, no período em que lutava para conseguir
ganhar um pouco de liberdade, a sua infidelidade veio ao de cima, e envolveu-se
com uma das suas miúdas de engates por telefone, Sónia. Infelizmente para
Neves, que era sexualmente insaciável, Sónia interessava-se muito menos pelo amor
mas muito mais pelo dinheiro, mas isso não o desmotivou de continuar obcecado
sexualmente por ela. (Na sua confissão, admite mesmo ter ajudá-la
financeiramente a montar um salão de cabeleireira, pedindo-lhe que continuasse
a entregar-se a ele; ela prometeu.) Logo a seguir ao seu caso com Sónia, em
Fevereiro de 1998, Neves foi infiel com a sua amiga pela primeira vez. Estava
de carro à porta de casa da Sónia, quando viu chegar Emanuela, a quem a amiga
andava a ensinar a fazer uns engates, e salvou-a. «Não me recordo da forma que
Emanuela arranjou, para a porta onde me enfiou, para a sua cama, que estava ali
mesmo à minha espera... o som no trinco, feito pela chave da minha amiga que
regressava a casa, separou-nos num estado de consumação excitante e feliz».
Neves tinha começado praticamente a viver o sexo a partir dos trinta anos.
Contudo, dispôs-se a compensar-se dessa falta nos quase quarenta e cinco que
levava de vida. No ano seguinte, Neves conta como se encontrou novamente com um
amigo da praça, Artur Calado, que era agora empresário industrial, e que
converteu a sua atitude romântica em relação às mulheres numa determinação de
as «conquistar». Calado gabava-se das suas conquistas. A primeira rapariga que
Neves tentou «conquistar» era uma jovem chamada Nani, estudante de biologia,
que viera da Suíça passar umas férias a Portugal. Neves pagava a pensão da
rapariga e convidou-a a dar um passeio para conhecer a cidade do Porto.
Descreve-a como uma «rapariga saloia e bastante sabichona» de vinte e um ou
vinte e dois anos, por quem não se sentia particularmente atraído, até que «um
dia no pub, na zona da Boavista, no
Porto, encostou-se a mim, com um perfume cheiroso e penetrante que me encheu as
narinas de suavidade; nesse instante, fui invadido por um súbito desejo
físico...» Continua dizendo: «Fiz amor com Nani, um tanto atabalhoadamente, e
de forma inútil...» Porém, esta aventura amorosa «tinha os dias contados».
Conheceu, numa venda de flores, uma florista chamada Clotilde, que «sentiu como
eu, o desejo insatisfeito de abraçar um corpo de que se atrai». Foram amantes.
«Por essa altura houve uma ou duas cabritadas».
Uma foi com Sandra, que se meteu debaixo dos seus amigos; a outra foi
Bruna, uma companheira da hora de jantar de Nani, e que agora era figurante de
um grupo teatral. «Para mim, foi uma relação sexual, porque Bruna era então uma
rapariga excitante... Mas uma certa tendência nela para a muleta fazia com que me irritasse variavelmente, e tudo acabou
entre nós». Nani fez mais tarde a descrição da sua aventura amorosa com Neves —
chamando-lhe «O abominável homem das neves». Ele lembra também uma rapariga da
casa de Miss Piggy que tinha ouvido coisas a seu respeito e que o convidou para
ir lá a casa, e uma prostituta negra com quem fizeram o «cavalinho» na altura de fazerem amor. Em 1999, um evento
denominado Óscares da Academia das Belas Artes da Desgraça e do Amor do Grupo
de Traidores, que nomeava os melhores traidores do ano, teve grande impacto, e
Neves estava nomeado para o prémio de o Melhor Atirador de Sexo do ano, um
grupo em que incluía os traidores Pedreiro, Caga-Milhões e Gentleman, que
parecia um típico cavalheiro inglês, com os seus fatos sempre ao primor e trato
impecável, e que era um Atirador de Sexo incorrigível, era industrial e convivia
com eles em O Bar do Traidor. Neves estava a tornar-se uma figura importante no
meio dos traidores desafiando os amigos Calado, Gentleman e a velha guarda na
liderança do tiro ao sexo. Os seus engates inteligentes sobre os anúncios dos
jornais, encheram uma agenda de números de telefones de jovens prostitutas. Uma
delas foi Maria Alice, que andava atrás de fabianos de notas, e era uma
rapariga bonita de olhos escuros. Costumavam ter grandes conversas ao telefone
e discutiam possíveis negócios. Neves chamara-lhe a sua Musa. Um dia, Alice
contou a Neves que estava com tesão e quando Neves lhe perguntou «É para já?»,
lançou-lhe os braços à volta do pescoço. Neves nunca foi um homem para dizer
que não a uma traulitada. Despiram-se
e saltaram para a cama, embora sem pressas. Pouco tempo depois, na Serra da
Estrela, Alice especializou-se no sexo vocal — possivelmente num dos quartos
alugados de que Neves tinha conhecimento através de amigos. Passaram alguns
dias juntos numa propriedade particular, enquanto se supunha que Neves
estivesse em viagem pelo Nordeste, ele conta como procurava arranjar tempo para
fazer amor, e como conseguiram que o leiteiro lhe desse a chave da vacaria, e
como fizeram amor no armazém em frente das vacas. Miss Piggy, que tinha uma
casa de prostitutas, sentiu-se particularmente atraída por Neves e começou a
enviar mensagens, tanto para ele como para os seus amigos Calado e Gentleman,
que tinha umas novidades, ainda a roçarem a virgindade, pedindo-lhe para lá
irem fazer uma visita. Uma dessas novidades foi apresentada a Neves por Miss
Piggy, dizendo: «Aqui está uma menina que o vai pôr direito». Neves ficou
furioso ao olhar para o camafeu que estava diante de si. Nem teve comentários.
Saiu pela porta a rir. Em 2.003, a vida privada de Neves quase se tornou
propriedade das prostitutas. Uma «bonita jovem com um rosto parecido como o de
Madona» veio de Espinho para assistir a um evento em O Bar do Traidor. Nesse
dia, foi-lhe apresentada por uma amiga do fandango, e ele convidou-a a tomar
uma bebida. Ele estava cheio de pressa, e viu que ela era uma jovem
extremamente apetitosa... No fim-de-semana a seguir ao evento, ela veio ao
Porto, à Residencial Xangô, e telefonou-lhe que a viesse visitar. Quando Neves
chegou, encontrou-a sozinha. Vestia apenas uma calcinha e sutiã. «´Isto assim é
que é bom de ver`, disse, ´isto assim é que é bom de ver`, levando-me para
dentro». Ela regressou a Espinho para a sua lida e, quando voltou a telefonar,
Neves decidiu que era altura de fazer uma pausa. No entanto, Neves parecia que
nunca acabava com a putice. Foi aproximadamente nesta altura que iniciou uma
aventura amorosa com uma rapariga que lhe causou boa impressão — Bela Corista.
Tocou o telefone e uma voz feminina desabafou que tinha vindo de Vila do Conde
para o conhecer; pedir-lhe fosse ter com ela ao hotel. Há algumas semanas que
lhe enviara SMS, esclarecendo que o
queria fazer. Por isso, Neves nem
pensou duas vezes. «Encontrei-me, num quarto com pouca luz, com uma rapariga
alegre e formosa, com pouca roupa e cheirando a jasmim». Disse-lhe que ele era
o número um de uma reduzida lista de sortalhões. «Se você diz isso...», respondeu. E, ao narrar o
episódio, Neves faz o seguinte comentário subtil: «Este género de ofertas, são
as que não se devem desaproveitar». Começava a pensar que esta espécie de
chamariz tem um conto no fim. Porém, não foi à primeira. Bela Corista
revelou-se a sua boa aventura de sempre. Era muito inteligente, mas meiga,
sensual, e propensa a mistérios. Alugou um quarto para eles se encontrarem à
saída da Póvoa do Varzim, inscrevendo uma inscrição por cima do candeeiro de
fora: «Neste quarto moram dois amantes». (Neves contou a Ratazana, que ouviu
falar do caso, que retirou a inscrição depois dela desaparecer de cena.) Porém,
em breve começou a achar que ela fora um enigma. Ela tinha uma vida dupla
secreta. Tinha-o considerado uma espécie de super-amigo. «A minha visão era que
ela não gostava de contar nada de si... Felizmente, que não consegui tê-la por
mais tempo, parecia ter-se evaporado da terra». Por ironia, a única rapariga
que Neves gostou profundamente durante estes anos da sua vida boémia, recusou a
ficar por conta dele. Era Sónia, que Neves encontrara pela primeira vez, em
Oliveira do Douro, em 1998. Voltou a encontrá-la em 2001, quando foi a França
visitar uma feira artesanal; ela estava na altura de visita a uns familiares.
Neves conta como a conheceu por causa de um contato de um amigo. «Na primeira
vez que a vi, apaixonei-me por ela, fiz amor com ela, e um mês, a meu pedido,
apagou os números dos telefones no seu telemóvel, dos amigos e conhecidos, para
meu espanto». A sua relação com Sónia, continua a perdurar, com alguns
intervalos, para além do ano 2005.
Para Artur Bófia, o amor era como o atuar. Esta é a
história de um dos seus casos amorosos. Tinha regressado da esquadra do Porto,
depois de mais uns dias de licença. O dia estava chuvoso. Poucas eram as
pessoas que andavam a pé pelas ruas, mas de todos os estabelecimentos topava-se
pessoas a ver a chuva a cair, e outras enroladas numa conversa. O ar cheirava a
lavado e fresco. Quando, às quatro da tarde, a chuva pareceu querer escassear
por uns instantes, Artur Bófia que tinha passado um bocado no café, saiu e
pôs-se a caminho da casa do Pipocas. Estava com frio e com saudades. Na altura
em que chegava precisamente perto da loja de frutas, levou com uma tromba de
água em cima. Artur Bófia ficou como um gato-pingado. Correu da chuva, e
procurou a casa mais próxima, que era aquela onde habitava a tia Justa, uma
viúva de cerca de trinta e oito anos, cuja recente viuvez a deixara
razoavelmente calçada. A tia Justa era em geral aberta e descomplexada, o que
de certo modo, dispunha-se sempre alegre. Quando Artur Bófia bateu à porta,
tinha ela acabado de tomar um banho e estava a 0secar o cabelo. Quando abriu a
porta, Artur Bófia estava á entrada pingando água para cima do soalho. «Entra e
aconchega-te, antes que te constipes — disse a tia Justa». Artur Bófia, olhando
para os seios como um mirolha observa um elefante, tirou o casaco. A chuva
batia no telhado. A tia Justa pegou numa garrafa de uísque e colocou-a no
centro da mesa. «Queres tomar um copo de uísque?» Ainda o primeiro copo de
uísque não estava emborcado e já os olhos de Artur Bófia estavam de novo
pregados nos seios. Bebeu o copo de uísque antes de proferir palavra. A tia
Justa bebeu também, pois só assim conseguiria descontrair e começou a saborear o
uísque quando bebeu uma boa dose. «Este uísque não é do mercado?» — «Ah, pois
não; uma amiga minha, uma senhora espanhola é que mo orienta». Embutiu novo
copo. Começara a escurecer. A tia Justa atirou umas achas para o lume. «Já que
a chuva tem de cair, que caia», disse de si para si. Fixadores, os seus olhos
prenderam-se no enorme físico de Artur. O peito encheu-lhe um pouco. «Andas a
vir muito para estes lados, meu malandro. Chega-te, dá-me a roupa, que é para a
pôr a secar, e cobre-te aí com o cobertor». Artur Bófia não usava muito a
mentira. O seu pensamento não atinava lá com esse processo. «Tive no café a
fazer horas com uns amigos». — «Mas estás feito numa rodilha». Captou-o em
busca de alguma reação em relação à sua generosidade, mas o rosto de Artur
Bófia não alterou uma unha sequer, a não ser o contentamento que sentia por
estar coberto da chuva e a beber uísque. Estendeu o copo para beber de novo. A
tia Justa emborcou outro copo para si. O fogo aquecia, deu uma sensação de
bem-estar que contrastava com o bater da chuva no telhado. Artur Bófia não fez
o mínimo esforço para se mostrar grato para com a anfitriã. Bebeu o uísque em
pequenas doses, sorria estupidamente para o fogo e fumava na cadeira. A ira e o
desespero crescerem na tia Justa. «Olhem para este animal», disse de si para
si. «Olhem que besta esta que me havia de aparecer. Antes tivesse eu abrigado
um cão da chuva. Outro homem qualquer teria para mim, pelo mínimo, uma palavra
amiga». Artur Bófia pediu para encher mais um copo. Foi a vez de tia Justa
dizer o que ia dentro da sua alma. «Quando a chuva cai e o fogão arde, não há
como um grupo de amigos aconchegados no calor, não achas?» — «Acho». — «Talvez
as persianas te incomodem — arriscou ela. — Queres que as feche?» — «Não me
incomoda — respondeu Artur Bófia —, mas se vê inconveniente, não faça cerimónia».
A tia Justa fechou as persianas e a sala mergulhou no semiescuro. Depois,
voltou a sentar-se esperou que Artur despertasse a sedução. Aos seus ouvidos
chegou o ruído do brusco atirar do fumo do cigarro de Artur. «Pensar — disse
ela —, que ainda há minutos estavas lá fora, a correr da chuva, e agora, estás
aqui, sentado na cadeira, a beber bom uísque, a fumar a teu bel-prazer e na
companhia de uma viúva que te estima que quer o teu bem». De Artur Bófia nem
uma palavra se ouviu. A tia Justa não o via nem ouvia. Bebeu o último trago do
uísque e atirou às malvas a vergonha por ares e ventos. «A minha amiga Xanana
Maluca contou-me que alguns dos teus amigos a visitaram numa ocasião em que
chovia a rodos e ela tratou-os tão bem que eles foram muito gentis com ela. Da
direção de Artur veio o som de um pequeno ronco. A tia Justa quando se
aproximou, nem queria acreditar no que os seus olhos estavam a ver. Artur Bófia
estava mergulhado num profundo sono. A cabeça voltada para trás, os pés
atirados para a frente, a boca toda escancarada. Enquanto a tia Justa,
atordoada e chocada, comtemplava a cena, um tremendo ronco saiu da boca de
Artur Bófia. Passou-se dos carretos. Nas suas veias correu uma boa dose de
revolta e frustração. Não gritou. Não, embora a sua vontade fosse tanta,
dirigiu-se à banca da cozinha, encheu um balde de água, deixou-o atestado, e
pegou nele. Depois, voltou-se lentamente para Artur. O primeiro lanço apanhou-o
na metade da cabeça e atirou-o da cadeira ao chão. «Reles! — gritou a tia Justa
—, reles imundo! Vai roncar para a tua rua!» Artur rolou pelo soalho. O lanço
seguinte fez-lhe um penteado novo no cabelo todo puxado para trás. Artur Bófia
despertava agora rapidamente. «Ei! — disse. — Que mal eu te fiz?» — «Já te
digo! — gritou ela». Abriu a porta para trás e com o dedo esticado fez sinal de
marcha. Artur Bófia levantou-se meio cambaleante sob as enxurradas de água.
Saiu pela porta fora, enxugando o cabelo com as mãos. «Não atires mais água —
implorou. — Mas que mal eu te fiz?» Com uma fúria animal, agarrou-se a ela e
caíram no carreiro do jardim. A fúria dele era terrível. Sem deixar de a
largar, segurou-a forte contra si, enquanto ela agitava violentamente os
braços, para se libertar dele. Continuando a agarrá-la e estado abraçado a ela,
o amor surgiu nele. Acariciou-lhe o cabelo, percorreu-lhe o corpo com as mãos
grossas, sacudiu-a como se sacode uma trouxa. Apertou-a por uns momentos até a
calma dela abrandar. «Reles imundo — gritou —, cão!» À noite, no Marco de
Canaveses, um guarda-noturno patrulha as ruas a pé para impedir que as coisas
boas se transformem em más. Desta vez José Gabardines equipava uma gabardina
impermeável com um brilho semelhante ao alcatrão. José estava triste e
chateado. Não era nada difícil fazer patrulhamento nas ruas pavimentadas; mas
parte do seu itinerário estava localizado nas ruas de paralelepípedos e nos
caminhos lamacentos do Marco de Canavezes e aí, os seus calos sofriam mais. A
pequena lanterna iluminava aqui e ali. A noite resplandecia com intensidade. De
repente, José Gabardinas gritou, espantado, e olhou para o chão. «Ei, lá! Isto
já vai aí?» Artur Bófia voltou a cabeça». — «Oh, és tu, José? Ouve, já que de
qualquer modo viste o que não devias ver, não podes mudar de rua uns minutos?» O
guarda-noturno fez as pernas mudar de rota. «Acabem mas é lá com isso. Ainda
alguém vos topa e vocês ficam nas bocas». O guarda-noturno desapareceu por
detrás do edifício dos correios. A chuva batia de mansinho por entre as árvores
do Marco de Canaveses.
Todos os dias, o Faísca guiava o carrito de pedais
cheio de bugigangas, pelas ruas em frente, e enfiava-se no jardim. Encostava-o
junto a uma árvore e abria-lhe a porta com um alfinete. Em seguida, deixava o
material à venda, pois, como toda a gente sabe, as pessoas metidas no jardim
tornam-se muito mais solidárias. Só no fim da tarde voltava para casa. De uma
bolsa que trazia presa ao braço, tirava os dez escudos que apurara nesse dia e
depositava-as na lata da graxa, as novas moedas. Este vício durava há muito
tempo. Depois, na companhia do cão, sentava-se numa cadeira e das sacas
repartia duas refeições. O esconderijo do dinheiro do Faísca tornara-se o centro
emblemático da concórdia, e o ponto de confiança do qual girava a amizade. Os
amigos estavam esquecidos do dinheiro, esquecidos de nunca lhe terem deitado a
mão. É uma bonita coisa um homem saber que respeitam ele. No espirito dos
amigos esse dinheiro há muito deixara de ser uma obsessão. É verdade que,
durante um certo período, os amigos tinham imaginado com a quantidade de moedas
que ele devia ter arrecadado, mas com o tempo, deixaram de considera-las
importante. O dinheiro era ganho pelo suor e sacrifício e esse potencial dom
era propriedade do Faísca. É muito pior roubar um pobreta do que se permitir
desfraldar a lei. Uma manhã, trazida por aquela rápida boca de um motorista de
camião que ninguém duvida, chegou a notícia de que uma camioneta de coelhos tinha
ido por uma ribanceira abaixo próximo de Baião. Artur Bófia estava ocupado em
assuntos seus, mas o Pipocas, Pascácio, Catanada, Pascácio, Very nice, o Faísca e o cão puseram-se alegremente a caminho pelo
monte acima, pois se havia coisa de que adorassem era de andar no monte
à caça de coelhos aos saltos. Achavam esse desafio o mais excitante do mundo.
Chegaram um pouco tardio ao local, mas recuperaram o tempo perdido. Percorreram
o monte durante parte da manhã; no fim, apanharam uma boa quantidade de
coelhos; um latão de comida, diversos caixotes partidos, meia dúzia de
garrafões de água, uma corrente para prender à carroçaria e um atado de
tronchudas. Quando a tarde rompeu, tinham à sua conta um achado muito razoável.
Por um casal de coelhos aceitaram dez escudos dados por um dos presentes, pois
a hipótese de fazerem algum dinheiro com alguns daqueles bichos era
simplesmente pensável. Depois, exaustos, mas levando na alma o bom cumprimento
da missão, iniciaram o caminho de volta para o Marco de Canaveses através do
monte. Passava das seis da tarde quando entraram pela casa do Pipocas seguidos
pelo cão. Primeiramente, o Pipocas abriu o saco e sacudiu os bichos para dentro
de um anexo. O grupo entrou no quintal. Pipocas meteu a mão dentro da camisa e
tirou um cigarro para fumar. Arremessou o fumo para trás e depois voltou-se
calmamente para os amigos; os olhos tinham-se-lhe tornado risonhos como os de
um bebé. Olhou cara após cara e todos viram um sorriso e uma satisfação
difíceis de enganar. «Bem, malta...» — disse o Pipocas num tom amigável. «Não
foi nada mau. Há dias de estimar». Lentamente, os amigos saíram do quintal e
entraram para a sala. Pipocas, dirigiu-se aos anexos. Aí, pegou em dois pesados
coelhos por debaixo das orelhas... e zás...
deu-lhes uma troçada com a mão. Tirou a pele para trás, esticou-os ao comprido
e retirou os enchidos e depois meteu-os numa bacia. Pascácio entrou na dispensa
e trouxe um tacho com batatas. Very nice
afiou as facas e pôs mãos à obra. O Faísca olhava-os perplexo. Na sala todos
conversavam animadamente. O Faísca alongou o olhar para a rua. «Ele? —
perguntou». Pipocas acenou rapidamente com a cabeça. O seu olhar era luminoso e
acolhedor; o queixo inclinava-se-lhe para cima. Quando se sentou na cadeira,
todo o seu corpo foi projetado por um impulso como o de uma rocha a poisar no
solo. O Faísca dirigiu-se ao centro e armou a mesa. Continuaram a conversar
durante algum tempo. Ninguém despregava das cadeiras, mas uma onda de emoção
sentida dominava a sala. Havia na sala uma sensação semelhante à de que uma
rapariga experimentaria quando o rapaz está a pedi-la em casamento. A tarde
acabava; o sol escondeu-se por detrás do monte. A população estava mergulhada
numa autêntica acalmia. Dir-se-ia que os dez escudos que os coelhos tinham
rendido pouco tempo aqueceram os bolsos do Pipocas; agora, porém, já tinham destino
encomendado. Pipocas e Catanada foram ao mercado comprar dois quilos de batatas
e cebolas, uma saca de pimentos e uma garrafa de azeite e outra de óleo.
Pascácio e Very nice foram ao café buscar
dois garrafões de vinho. Na rua ouviram-se os passos de Artur Bófia; os pratos
foram postos com mais vigor. Artur Bófia aproximou-se caminhando pelo passeio e
entrou pelo portão. Trazia na mão um jornal desportivo. O seu olhar passou de
cara para cara com satisfação; os amigos, de imediato, deixaram de estar sentados
e, logo o encararam diretamente. «Olá — disse Artur Bófia». — «Olá» — respondeu
o Pipocas ao mesmo tempo que se espreguiçava e só depois se levantava fixando o
olhar em Artur Bófia. Foi direito a ele e, quando se encontrou defronte dele,
abriu os braços com a rapidez dum voador. O abraço foi em cheio que, Artur
Bófia ficou redondamente sem fôlego. Repentino, o Pipocas libertou as mãos dos
ombros dele e, agarrando a mão de Artur Bófia, elevou-a ao ar. «Palmas — disse».
Pascácio bateu com a colher na panela com tanta força que partiu a colher.
Voltou a pegar noutra colher e desta vez bateu com menos força na panela e
encarou sorridente os amigos. Os amigos levaram as mãos ao ar e fizerem um
chinfrim danado. Very nice estava
encarregado da cozinha. Catanada sentou-se à direita e o Pipocas à esquerda.
Artur Bófia, desconfiado, olhava de lado e, então, gritou de surpresa: «Estais-me
a venerar?» — berrou. — «Pelo amor da nossa amizade, o que é que se passa?» — «Quantas
é que lhe destes? — indagou o Pipocas num desvio de voz». «Duas no chão, e duas
na cama. Eu escanei como um leão e volto lá outra vez». Pipocas levantou-se e
voltou a pedir uma salva de palmas. Os amigos bateram as mãos com o mesmo
entusiasmo. As palmas tornaram-se mais fortes, e só pararam quando Artur Bófia
pediu-lhes para cessar. «Acho que agora passarás e ser cobiçado — disse o
Pipocas». — «Devíamos levá-lo à Xanana Maluca — observou Catanada. — Há muito
tempo que não a visitámos». Abriram o garrafão que Pascácio trouxera e encheram
as tijelas, pois estavam cansados do paleio e a emoção esgotava-se-lhes. Nessa
noite, com o fogo a arder na lareira, os amigos encheram-se até não poderem
mais. A comezaina era em honra de Artur Bófia. Este comportava-se como nunca.
Embora ao primeiro fosse apanhado em contrapé, depois sorriu sem intervalo.
Pascácio cobriu-lhe o prato de coelho estufado e batatas. Cada batata era do
tamanho de um molete. Depois de terem ingerido uma grande dose de coelho
acompanhado de uma salada de pimentos e cebolas, encostaram-se e puseram-se a
fumar e a beberricar o vinho das tigelas. Chamavam a Artur Bófia «o nosso
fodilhão». Depois foi a vez de ouvirem a história dos quatro coitos e os olhos
deles vidraram-se. «...e depois, rapaziada — disse Artur Bófia —, a tiazinha
tinha o nariz empinado, e os seus olhos faziam lembrar o brilho das gatas
quando se apanham com o cio e ela gemia porque tinha calores lá por dentro. E
depois, rapaziada, prometi à tiazinha que lhe dava uma por cada estação do ano.
Ela é mesmo tarada, podem crer, rapaziada. E depois chegou-se ao Sul! A
tiazinha fechou o rabo e começou logo a dormir. Foi S. Pedro que foi o
causador, não foi, rapaziada?» Os amigos manearam a cabeça com força. «Foi —
respondeu Catanada. Foi a chuva do nosso bom amigo S. Pedro. Eu só queria lá
ter estado no teu lugar». Artur Bófia ficou muito contente, pois não era caso
para menos ver-se naquela situação por um acontecimento fenomenal. Se o caso
começasse a constar-se, Artur Bófia passaria a ser uma atração para as mulheres
do Marco de Canaveses. Depois, cantaram uma cantiga em estilo coral e, galvanizados,
voltaram a cantá-la. «Faísca — exclamou o Pipocas —, já todos entramos para as
despesas! Já não temos mais dinheiro! Chegou a altura de comprares dois
garrafões de vinho para a malta!» O dia fora demasiado cansativo para o Faísca.
Retirou-se com o cão e foi a casa. Pegou num monte de moedas antes de fechar a
lata e pensou nos seus novos amigos com uma generosidade que parecia desmentir
o caso de que há cerca de dois anos não gastava uma moeda mal gasta. Regressou
como um cavaleiro andante a casa do Pipocas, trazendo os bolsos atestados de
moedas. Pipocas pôs o dinheiro debaixo de um armário. Os seus amigos olharam
para as moedas com surpresa. «Mas pró que é que te deu trazeres tantas moedas?
— perguntou o Pipocas, abismado. — Bastavam duas para comprares os garrafões de
vinho. Temos que guardar as restantes para a próxima vez. Voltaram a cantar uma
canção obscena acompanhada pelos urros do cão. O Faísca sentiu que praticara
uma boa ação. Os seus amigos estavam satisfeitos por lhe verem trazer as
moedas, pois, assim, até eles partilhavam um pouco da generosidade do gesto. Catanada
sentia-se aliviado por não lhe ter deitado a mão ao dinheiro logo ao início.
Que terrível coisa não poderia ter acontecido se tivesse rapado umas moedas que
pertencia a um pobre diabo! Todos os amigos se mostravam dominados como se
estivessem em família. Durante muito tempo a festa esteve animada. Artur Bófia
redobrou as forças e soltou um berro, pois o álcool estava a fazer-lhe efeito
na cabeça. Os amigos olharam-no com estupefação. Por fim, Very nice, esse amigo do amigo, desatou aos risos e deu-lhe um
cigarro dos seus. «Até os amantes do lugar invejam por um consolo — disse,
animando-se». Esta frase fez crescer o ânimo. Os amigos voltaram a cantar.
Estavam entusiasmados. Se á coisas de que gostassem era de beber e de cantar. O
histerismo do Faísca acabara. Bebia o vinho e o rosto iluminara-lhe de prazer
ao ouvir as palavras que o Pipocas dizia. «Se levarmos todos estes coelhos ao
mercado, pensarão que os roubamos dalgum galinheiro numa quinta. Devemos é
vendê-los nos particulares. Depois, cada um de nós trás o dinheiro para aqui, e
guarda-se para as nossas patuscadas. Talvez, no domingo seja boa altura, o
Faísca deve lá estar na igreja para tentar vender». Catanada olhou com
desagrado para as roupas sujas e remendadas que o Faísca vestia. «Domingo —
disse com tom severo —, agarras nos coelhos que sobram e vais á igreja
vendê-los. Mas deves levar roupa mais decente, senão pareces um rato do bueiro.
Deixavas ficar mal os teus amigos». O Faísca sorriu. «Faço tudo o que vós
dizeis — prometeu». — «Temos que lhe emprestar roupa — disse Very nice. — Eu tenho um casaco e um
colete. Catanada empresta o chapéu que ficou do pai. Tu, Pipocas, tens muitas
camisas e cedes-lhe uma e o Pascácio empresta as suas bonitas calças de
bombazine vermelhas». — «Mas não me borras as calças — protestou Pascácio». — «Também
não me amasses o chapéu — replicou Catanada. — Os fiéis provavelmente não nos
vão dar qualquer elogio». O Faísca estava embriagado de tanta felicidade devido
às benesses que lhe prestavam. «O meu Vigília viu uma cadela no largo do jardim
— disse o Faísca. — Estava doudo, quase a babar-se, e eu próprio tive de
gritar-lhe: Estou a ver que hoje te vou mandar capar. Meu rafeiro, cheio de
tesão». — «Há alturas em que os bichos andam com o cio — comentou o Pipocas. —
Tive um jeco não muito entesuado, mas
algumas vezes viu-o coçar o instrumento nas pernas das mesas. Dependia de como
estava. Se estava com a tusa atirava-se às galinhas, coelhos, era um perigo, se
não estava não se atirava a nada. Já alguma vez o levaste às cadelas, Faísca?» —
«Não — respondeu o Faísca. — Ficava com medo se visse os olhos dele». Durante
algum tempo a conversa gerou-se sobre o tema. Era desconcertante como nessa
noite bebiam abertamente. Passaram três horas depois mesmo de esvaziarem a
segunda série dos garrafões. Só bastante tarde os seus sentidos descambaram
para o sono e alguns pareciam bebés de olhos fechados. Essa noite constituiu
uma noite fantástica das suas vidas. No domingo de manhã os preparativos foram
executados. Deixaram primeiro o Faísca, vestido como manda a sapatilha, calças
de bombazine vermelhas, casaco e colete, na cabeça posto ao jeito amalandrado,
o chapéu do pai de Catanada. Convenceram o Faísca a não levar a gravata
estampada de um clube, de modo a que não criasse divergências com os fiéis
doutras cores clubistas. Os sapatos é que continuaram a ser um obstáculo.
Nenhuns sapatos dos seus amigos lhe eram suficiente compridos e largos para os
pés do Faísca, sendo assim, não houve outro remédio se não, que o Faísca
utilizasse os seus sapatos com dois buracos abertos por onde os calos podiam
respirar melhor. Finalmente deixaram-no junto ao muro da igreja. Deu uns passos
em roda com o corpo para os amigos o toparem. Estes contemplaram-no,
intimamente. «Vende os coelhos, Faísca». — «Não os tragas de volta». — «Deixa
de pedir muito». — «Quem te vir pensará que não estás habituado a vender coisa
boa». Por fim, o Faísca virou-se para os amigos. — «Se ao menos um de vocês
pudesse ficar comigo — queixou-se. — Eu talvez tivesse mais arrojo». Os amigos
não cederam. «Não — disse o Pipocas. — Eles têm que ir vender. A gente depois
encontra-se lá em casa». O Faísca saiu sorrateiramente através do caminho até
chegar ao adro da igreja, na mão levava o saco com os coelhos e o cão seguia
atrás. As portas do vaivém não se cansavam do abre e fecha, mas a missa ainda
não tinha começado. O Faísca colocou-se debaixo da árvore, puxou o colarinho da
camisa para baixo, pôs a saca com os coelhos junto da roseira e encostou-se. A
igreja era bastante comprida e algumas vezes a população enchia a igreja para
cumprirem as suas obrigações. Durante uns momentos, o Faísca ficou encostado a
olhar para os fiéis, mas estes quase o ignoraram, tão habituados a vê-lo aos
domingos com a roupa velha e o carrito a vender santinhos. O Faísca aguentou,
enervado. E, embora os fiéis entrassem, os coelhos estivessem ensacados, a
missa começava e o Faísca não queria tirar os coelhos do saco com medo que eles
fugissem. Como era difícil depois apanhá-los! Falou a uns fiéis para ver se os
coelhos lhe interessavam. Tinha esperança de que, um entre os fiéis, havia de
se mostrar interessado em comprá-los. Nem que fosse apenas um. Em seguida, o
padre começou o sermão. O Faísca ouvia-o contar a história do cão amigo do
homem, que nunca abandona o dono, a história das formigas voadoras e das araras
surdas. Maravilhado, o Faísca escutava-o fazendo carícias ao Vigília e vertendo
lágrimas de emoção. De repente, ouviu-se gritar e latir furiosamente. As portas
abriram-se com estrondo e pela igreja dentro surgiram os coelhos, Vigília e o
Faísca. Correram uns atrás dos outros, lançaram-se à porfia na direção dos
bancos de madeira, e esgueiraram-se por baixo dos bancos, gemendo e soltando
pequenos latidos. O Faísca ficou apavorado com os olhos à procura deles. E não
esperou muito. Deitou-se sobre o chão, esticou-se totalmente para a frente,
deixando descair a cabeça em busca dos coelhos. Foi nesse preciso momento que
micou um coelho. Tinha ultrapassado os primeiros bancos e parara junto do canto
do banco. Ergueu a cabeça para o escuro e ficou-se. O Faísca ficou em pulgas.
Sentia os nervos subirem-lhe aos cabelos. Todo o seu fracasso, todos os seus
ressentimentos se voltaram para o coelho. Com uma boa dose de calma,
concentrou-se em ser mortífero. «Ah, seu filho da... — pronunciou baixinho —
pensas que estou trôpego? Já vais ver». Devagarinho, muito devagarinho,
arrastou-se como pôde, levou a mão até ao sapato, trazendo-o de volta. O seu
olhar águia não descolava do coelho. Este encontrava-se na mesma posição. O
Faísca pegou no sapato, pô-lo em posição de lance. Fez mira com um olho fechado
a distância. Não podia falhar. Deixou deslizar o braço o máximo que pôde. «Vou
despachar este filho da... — declarou —, preparando o corpo para o lançamento
final». O coelho continuava lá, com as orelhas viradas para baixo. O Faísca
esticou o braço e aspirou todo o ar dos pulmões. Apertou com mais força o
sapato e esticou mais o braço. Desferiu o golpe com toda a força que tinha. O
sapato voou como uma bala. Bateu no santo e gerou um barulho. Os cacos
espalharam-se e o Faísca ficou estátua. A igreja estava ruidosa e num
burburinho. Os coelhos passaram velozes pela porta do vaivém, descrevendo alguns
oitos, correndo para o outro extremo da rua. O padre interrompeu o sermão e
olhou com severidade para a confusão. O Faísca levantou-se, débil e
atormentado. Os seus esforços tinham sido frustrados; o prejuízo fora cometido.
Então, o padre exaltou-se, e os fiéis, também. «Leva o cão lá para fora —
disse. — Procedeste mal. Estou muito zangado contigo; estou envergonhado pelo
que fizeste. E tu espera até eu acabar a missa». O Faísca não conseguiu
articular uma palavra, cheio de gestos de desculpa, trouxe o cão para a rua. «Vamos
— disse-lhe —, o que tu foste arranjar. Mordestes os coelhos, desataste atrás
deles para a igreja, e eu fui no vosso encalço. Agora vê quem vai pagar as
culpas de ter quebrado o santo, meu patife? Tu ajudaste-me a cometer um estrago».
Deixou-o, por uns momentos, deitado no chão a ganir tristemente. Em seguida
desatou numa corrida amiúde pelas ruas na direção do monte, seguido pelo cão,
que corria e saltava à sua frente. No alto da colina havia uns bancos entre os
pinheiros e o ar estava cheirando a resina. A brisa fazia os pinheiros murmurar
suavemente. Impondo-se, o Faísca disse: «Aqui estamos melhor. Vigília, meu
grande doido, senta-te aí e não faças ondas. O senhor padre não nos vai perdoar».
O cão, sentado no chão, observava-o com atenção. Depois, deu um ar grave, mas o
Faísca, dirigindo-se-lhe, disse: «Aqui não é preciso pôr-te assim. Os coelhos
não se importariam, mas eu não gosto que me olhes gravemente quando estou a
falar para ti. Agora, descontrai». Nesse dia a palavra do Faísca estava
inspirada. O Sol, entre intervalos, lançava fogachos de luz nas folhas dos
pinheiros. O cão, pacientemente sentado, não tirava os olhos da boca do dono. O
Faísca dobrou e esticou as pernas um pouco, apertou os cordões dos sapatos,
depois disto, fitou solenemente o cão. «Os coelhos fizeram muito mal em
separar-se de nós». As folhas dos pinheiros deixaram de abanar. O monte ficou
iluminado e em silêncio. Subitamente, ouviu-se um seco ruído por trás do
Faísca. Logo o cão levantou as orelhas. O Faísca não teve coragem para voltar a
cabeça. Decorreu uns longos minutos. Depois o tempo passou. O cão baixou os
olhos. O vento voltou a abanar as folhas dos pinheiros que se agitaram de novo.
O Faísca ficou tão comovido que o coração lhe parou. «Tu viste-os? — exclamou.
— Eram os coelhos? Oh!, que cão bondoso tu deves ser para veres uma miragem
destas!» Ao ouvir estas palavras, o cão levantou-se dum salto, abriu a boca e
deu uma de olhar grave.
Poucos eram os habitantes do Marco de Canaveses que
usavam relógios de boa marca de parede ou de bolso. De vez em quando, um dos
amigos arranjava um relógio de alguma maneira muito afamado, mas só o tinha
durante o tempo suficiente para o trocar por qualquer outro que realmente se
sentisse agradado. Na loja do Pipocas, os relógios tinham boa procura e havia
dois escalões, mas apenas como objetos de venda. Para uso normal havia o
relógio vulgar. Era mais barato e de funcionamento prático, do que um relógio
de marca afamada. No Verão, aos domingos de manhã, quando as pessoas iam à
feira dos selos, nas imediações da Caixa do Povo, é certo e sabido, que era uma
bela altura para uma pessoa trocar ou comprar um relógio de outra marca, mais
em voga, nos vendedores ambulantes que por lá se cruzavam. Quão melhor não é
uma marca mundial? É uma bela ocasião em que nem as posses de uma pessoa
derretem nos bolsos nem a bondade tem interrogações por não levar nada. O
Faísca e o cão seguiam, firmes e seguros, no seu trajeto habitual para o
trabalho. A loja do Pipocas só abria passado três horas depois de o Faísca
passar por lá. Quando o Pipocas fechou a loja, o dia ainda estava claro. O Sol
já se tinha refugiado para lá do monte. O tempo tinha um cheiro seco e
agradável, como o perfume das flores. E quando chegava o momento do grupo se
juntar, havia sempre qualquer coisa para se contar, e as boas notícias
guardavam-nas para essa ocasião. «Vi o Arnaldo Curto — disse o Pipocas, — saia
da casa da Xanana Maluca. Não há um dia que aquela mulher não se meta em
barafundas». — «Só sabe viver assim — comentou Pascácio. — Quem sou eu para
atirar a primeira pedra, mas em dado momento penso que a Xanana é um bocado
atiradiça de mais. Só lhe acontecem duas coisas na vida: amor e sarilhos». — «Mas
que é que vocês esperam? — disse Catanada». — «Nunca tem paz nenhuma — lamentou
Very nice». — «Também a escorraça
pela porta fora — retorquiu Catanada. — Dar-lhe a paz é acabar com ela. Amor e
sarilhos... Está visto. Ah, mas não esqueçamos a pinga, porque aí está uma
mulher sempre fresca, sempre feliz. Mas que é que aconteceu à Xanana?» — «Vocês
conhecem bem a Xanana — começou. — Há homens que algumas vezes lhe levam
presentes, um frasco de água-de-colónia, um par de cuequinhas de fio dental ou
um sutiã. Não passam de pequeninas coisas, mas Xanana aprecia-as. Ora bem,
ontem, salvo erro, Manuel Chapadas levou-lhe um pó-de-arroz, uma caixita assim
brilhante e bonita, que ele comprara num salão de beleza. A Xanana ainda deitou
um pouco de pó-de-arroz na cara quando ele se envolveu com ela, mas ele foi-se
abaixo antes de Xanana ter despertado». — «Como sabem, dinheiro é coisa que não
falta ao Chapadas. Disse ele à Xanana: Não há nada melhor do que uma mulher ter
um cheiro agradável. Sabe bem. Este pó aqui é muito bem-cheiroso. Vais gostar
muito dele». Os amigos sorriram francamente e Catanada disse: «Chapadas tem
artes de Don Juan. Vejam lá o que ele
não fez com o pó-de-arroz... gozo e amor. Um dia destes tenho de ir ter com ele».
Mas os amigos viam bem que Catanada estava era com inveja dele. «Anda lá com
essa história do pó-de-arroz — disse Pascácio». — «Bom — disse Catanada, — a
Xanana ficou com o pó-de-arroz e mostrou-se amável para com o Chapadas.
Disse-lhe que quando ficasse cheia de pó-de-arroz, ele podia dar outro presente
qualquer. Depois, o Chapadas foi-se embora e a Xanana guardou o pó-de-arroz na
cómoda para quando fosse visitada pelos amigos especiais». — «Depois, veio um
amigo daqueles especiais visitá-la e a Xanana deixou que ele abrisse a caixa do
pó-de-arroz e a borrifasse toda com ele. A certa altura o Barbas, como era
apelidado, beijou a rata de Xanana. Nem imaginam. A língua entrou por ali
dentro à procura do prazer. Os lençóis e os cobertores voaram e as almofadas
abafaram os gritos. E, depois, quando o gozo se foi embora, o Barbas ficou com
a cara como um palhaço. Agora a Xanana anda endiabrada e diz que há-de comprar
mais caixas de pó-de-arroz iguais à do Chapadas». — «Ai a viciada! — disse
Pascácio — O prazer é mesmo assim, quando corre conforme os nossos desejos. Já
quando o jovem André se estreou, foi do mesmo jeito». O rosto dos amigos do
Pipocas alterou, interessadamente, na direção de Pascácio. «Vocês devem saber aquém
eu me refiro, ao jovem André — começou Pascácio. — Parece mesmo um cobói, tronco largo e pernas compridas;
mas não é lá grande coisa a pinar. Nas rapidinhas é muitas vezes atirado ao
tapete. Pois bem, o homem não quer outra coisa senão que o convidem. Quando há
noitadas, gosta de levar a pequena; nos quartos é sempre o primeiro a dizer: — Vamos
a ver se aguentas com esta! Não há duvida, está ali um homem que quer ser um
grande cobridor, que as mulheres olhem para ele, que o desejem e, até que
gostem de fazer amor com ele». — «Porventura vocês se lembram daquela vez na
receção da residencial em que ele armou uma cena monumental. Ia acompanhado,
muito sério, com uma grande cavalona loira. Mesmo em frente do balcão da
receção, a doida da cavalona puxou a saia para cima e o André topou-a sem
cuequinhas e deu-lhe uma chupadela no grelo, que ela deu um grito e foi
deitar-se no sofá, aos tremeliques. Catanada riu-se, apanhou um pauzito e
atirou-o contra a perna da cadeira. «Lembro-me das cenas dele — disse o Pipocas.
— Esse André não tem os parafusos todos. O Ratazana é que o conhece bem, quando
vocês falarem com ele. Às vezes põe as gajas na mesa do André e os clientes
pensam que foi ele que as chamou e dizem: — Ora aí está um sujeito que sabe do
seu ofício». Não é assim tão fácil apanhar gajas quando se faz por obrigação. Very nice, que tinha estado a pensar de
cabeça encostado ao braço, comentou: — «É pior falarem mal de uma pessoa do que
lhe darem com uma paulada. Toda a gente gozou daquele estouvado amalucado do
jovem André até ele se mostrar. Mas depois ficaram com inveja de se terem
divertido dele. Essa história do André é reinante. É também uma história que dá
vontade de rir». — «Ouvi contar coisas a respeito dele — disse Catanada —, mas
são tantas que nem sei por onde começar». — «Bem — disse Very nice, — eu vou conta-la
e vocês logo veem se são engraçadas ou não. Quando eu era puto, costumava
brincar com o Trindade. Era um bom miúdo e esperto, mas andava sempre à procura
de se meter em sarilhos. O clã era composto por cinco pessoas. O pai, a mãe, e
três irmãos. A maioria dessa gente já cavou daqui. Um dos irmãos perdi-lhe o
rasto, o outro está na Madalena e o outro foi apanhado por uma peixeira da
Afurada por lhe andar sempre a comprar linguados».— «De modo que me dei sempre
bem com o Trindade e o irmão mais novo Ricardo. Trindade cresceu comigo e os
sarilhos nunca o abandonaram. Passou uma temporada no serviço noturno e depois
voltou para casa. Aos sábados apanhava uma liberdade e ia dormir para a praia
até segunda-feira. O irmão mais novo era um daqueles rapazes de boas intenções
e todas as semanas se enrolava com uma cachopa. De modo que estavam quase
sempre os dois à distância. O mais novo Ricardo sentia-se só quando não tinha o
Trindade ao pé de si. Adorava o irmão. Tudo o que o irmão mais velho fazia, o
mais novo fazia também, mesmo quando já tinha passado dos limites». — «Talvez
vocês se lembrem da Graça Gracinha — continuou Very nice. — Não era uma rapariga lá muito séria. Não tinha mais de
dezassete anos quando uma rusga policial veio ao Porto e ela ficou logo retida
por não ter documentação. Era gaiata e esperta e não deixava ninguém ficar sem
levar resposta. Parecia andar constantemente a fugir dos polícias e os polícias
bem seguiam no encalço dela. E algumas vezes levavam-na. Mas uma pessoa não lhe
podia dirigir palavra quando ela estava com os azeites. A moça parecia ter o
demónio dentro dela». — «Eu sei
disto — prosseguiu Very nice — porque
também me atirei a ela; eu e o Trindade. Só que o Trindade tinha outro feitio».
— Very nice olhou os amigos bem nos
olhos fincando esta tese. — «Trindade desejava tanto o que Gracinha tinha que
uma noite saiu em sua defesa e deu um pontapé nos tomates dum polícia e fugiu
pela rua abaixo como os corredores de cem metros livres. Não conseguia deixá-la
ser injuriada e agiu. O irmão foi falar com a Gracinha e disse-lhe: “Se não
fores simpática para com o Trindade ele desaparece.” Ela, porém, limitou-se a
sorrir. Não era lá muita coisa». — «Que é que vocês pensam que eles depois
fizeram?» — continuou Very nice. — «Trindade
foi apanhar sol para a praia e deu apalpões a Gracinha, chochos grandes de
artista, carícias, festas. Depois,
pegou-lhe pelas ancas e sentou-a no colo e em seguida, deu-lhe uma varada ao
som das ondas. — «Gracinha passava-se com tanta marmelada, mas vinha-se e
chorava como uma criança. Vocês deviam ter ouvido como ela berrava. Uma pessoa ficava
com ganas de lhe dar outra varada e, ao mesmo tempo, de a calar. Eu imagino
como era. Andei na cuca dela e o Trindade disse-me, também. Só que, ao Trindade
dava-lhe cabo dos nervos. Já só conseguia dormir com comprimidos. Um dia
confessou-me: “Se a Gracinha quiser ser minha amante, deixará de ter coragem de
se meter nos copos, pois nessa altura é comprometida e é um crime desrespeitar
o amante.” De maneira que pediu-a para ser sua amante. Ela desatou a beber
daquela maneira maluca que dava vontade de a mandar àquela parte». — «Oh! O
Trindade ficou desnorteado. Foi para o quarto, prendeu uma corda a uma perna da
cama e pôs-se à espera dela. Quando a Gracinha entrou, deixou-a despir-se; em
seguida colocou a corda à volta dela e atou-a à cama. Depois fechou a porta e
foi-se embora. Mas ainda se passaram duas horas antes de Gracinha conseguir se
libertar das cordas e três dias antes de poder insultá-lo». Very nice intervalou-se. Via, com
alegria, que os seus amigos acompanhavam a história com interesse. «A coisa era
deste estilo». — «Mas a Graça Gracinha foi amante do Trindade! — exclamou
Catanada, excitado. — Eu conheço-a. É uma boa dona de casa; nunca nos deixa
sair sem nos oferecer de beber e vai à missa todos os domingos». — «As coisas também se compuseram da
maneira que o Trindade tinha desejado. O confessor disse a Gracinha que fosse
uma boa mulher e ela foi uma boa mulher. Deixou de andar nos copos e de
insultar os homens. Como não bebia, deixaram de se intrometer com ela. Trindade
continuou a ir dormir para a praia e, passado algum tempo, arranjou lá um
emprego para segurança de condóminos. Não tardou muito a entrar nos eixos. Como
veem, esta história é magnífica. Era digna de ser apresentada nos palcos do
cinema por um realizador se terminasse aqui». — «Pois era — disse Catanada com
olhar sério. — Esta história também nos ensina algumas coisas». Os amigos
acenaram com a cabeça em sinal confirmativo, pois adoravam de uma história
emotiva. — «No Douro conheci uma rapariga como essa — disse o Pipocas. — A
única diferença é que não se modificou. Chamavam-lhe a rapariga da segunda
escolha. —A Senhorita Segunda Escolha», era o nome que eles lhe davam». Pascácio
fez um gesto com a mão: — «A história ainda não terminou — disse. — Deixa lá o Very nice contar o resto». — «Sim, ainda
não terminou. E, no fim, a história não é lá boa como vocês imaginam. Ricardo passava já
dos vinte e cinco anos. Trindade e Gracinha foram morar para uma casa isolada.
Ricardo ficou sozinho, pois acabara com a peixeira. Não tinha sossego nenhum.
Passava a vida na estroina, embriagado; até que um dia conheceu uma chavalita
chamada Celina. Tinha dezasseis anos e era mais bonita do que a Gracinha. Todos
os clientes da cervejaria andavam atrás dela como se fossem lobos. Então, o que
se tinha passado com o Trindade, deu-se com o Ricardo. O desejo corrompia-lhe o
corpo todo. Bebia mais do que comia. O olhar ficou estrábico e ganhou aquele
aspeto alarmado que os fumadores de droga têm. Enviara-lhe chochos atirados de
mão, mas ela ria-se dele. “Vem cá, meu passarinho, vem cá ao teu príncipe.” Ela
não parava de fazer chacota». — «Como vendia livros sempre que arranjava uma
promoção guardava-a em presentes para a Celina, magazines e agendas. Pagou-lhe
um concerto dos GNR, música ao ar livre». — «Então o Ricardo contou ao Trindade
o que se passava. Trindade riu-se também. “Meu tolo”, disse, já tiveste na tua
frente tanta rapariga. Não andes atrás de miuditas que sabem mais do que tu.”
Mas aquilo de pouco lhe serviu. Ricardo ficou louco de desejo. Esses Trindades
é gente de sangue na guelra. Escondia-se nas esquinas para a ver passar. O
coração saltava-lhe do peito». — «Ela não fazia outra coisa senão esquivar-se,
e Ricardo estava quase paranoico. De maneira que agiu em conformidade. E,
assim, pediu-a para sair com ele. Ela riu-se como nunca e, sacudindo as saias,
fez-lhe sinal de never para o afinar.
Era um diabinho, aquela miúda». — «E ele um idiota — disse Catanada com
descaramento. — O dever dele é meter-se com raparigas da sua idade, e não chavalitas».
Very nice, arreliado, prosseguiu: — «Os
Trindades são irresistíveis; aquece-lhes a veia». — «De qualquer das formas,
foi incorreto. Foi uma vergonha para o Trindade — disse Catanada». Pascácio
voltou-se para ele. — «Deixa lá o Very
nice contar. É a história dele e não a tua. Um dia destes contas a tua». Very nice mostrou-se grato pela
intervenção de Pascácio. — «Como ia dizendo, Ricardo não podia com aquilo mais,
mas não era capaz de mudar fosse o que fosse. Não era como o Catanada. Como não
tinha jeito para inventar nada de novo, deixou aguardar uma oportunidade». — «Vocês
devem saber — prosseguiu Very nice —
que lá no quarteirão há uma hospedaria. Uma tarde, Ricardo convidou Celina a
dar uma volta no carro com ele e levou-a até lá. Depois, esperou até a
convencer a uma rapidinha numa desportiva. Viu o tempo passar. Passou o braço à
volta da cintura dela e puxou-a bruscamente para si. Ele a fazer isto e ela a
retribuir-lhe com uma sonora galheta». Largos sorrisos surgiram no rosto dos
amigos. Algumas vezes, pensaram, a vida tinha coisas do arco-da-velha. — «Ricardo
mal se conteve — continuou Very nice.
— Disse de si para si: — A miúda é capaz de andar por aí atrás de algum, mas
isso não dou — Só passado um minuto é que abriu a porta da hospedaria». Very nice olhou à volta. Os largos
sorrisos mantinham-se em foco. — «Vocês estão a topar — disse Very nice — a coisa é engraçada, mas
também tem o seu quê». — «O que é que a Celina disse? — perguntou Catanada. —
Acedeu ao impulso e mudou de procedimento?» — «Não. Não mudou nada. Ricardo
aguentou-se e ela mandou-se. Mandou-se também, mas ficou fulo. E disse para si
mesmo: — Que miúda parva ela me saiu. Uma noite destas vai ser ela a puxar-me
para a levar para o pinhal. Depois Ricardo entrou no carro sem ela». Catanada
queixou-se: — «Essa história não vale. Tem rodriguinhos a mais e podem tirar-se
dela demasiadas lições, e alguns delas são contraditórias. É uma história que
não vale a pena guardar na memória. Não se chega a conclusão nenhuma». — Eu
atino com ela — disse Pascácio. — Atino com ela porque não tem nenhum sentido
à-priori; contudo, parece que realmente quer dizer alguma coisa, embora eu não
saiba bem o quê». A manhã já ia a meio e o ar estava quente.— «Que é que vamos
comer? — disse o Pipocas. — «Na adega há lá um sável de escabeche — observou
Pascácio». Os olhos de Catanada reluziram. — «Estive a pensar numa coisa —
disse. — Quando eu era pequeno vivia nas férias com o meu tio ao pé do
elétrico. Todos os dias, quando o elétrico passava, os meus amigos e eu
pulávamos por trás e íamos à boleia e o guarda-freio enxotava-nos com correia.
Havia alturas em que o elétrico enchia de passageiros que aí ninguém nos
enxotava. Pensei agora que talvez a gente pudesse comer à borla na adega.
Quando o empregado se aproximar, chamamos nomes uns aos outros e distribuímos
galhetas por todos. Como é que o empregado pode responder-nos? Atirando-nos com
os pratos ou com as cadeiras? Não. Só pode é deixar-nos sair em grande». Pascácio
levantou-se cheio de contentamento. — «Ora aqui está uma bela ideia! —
exclamou. — Isto é que o Catanada é um génio! O que é que a gente fazia sem
ele? Vamos lá; eu sei onde há um grande empregado medroso». — «E o sável é o
meu peixe predileto — disse o Pipocas».