Sunday, March 31, 2013


FERNANDO ABRAÃO
E RATAZANA
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(5)
O
MUNDO
DA
NOITE
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Baixo Neves, foi tema de bastantes fofoquices no seu papel de atirador de sexo do Grupo de Traidores — Abraão referia no seu pasquim semanal, talvez com uma ponta de ironia, que Neves exibia publicamente, na consola do carro, as fotos das suas inúmeras amantes. No entanto, as fofoquices nunca chegaram ao conhecimento da família, em particular. Neves tinha uma empresa de plantas e flores e era casado com filhos. Durante o começo da sua carreira empresarial, viveu um ambiente de grande pressão e trabalho, vendendo pela província e centros urbanos da região do Norte, onde geria o seu negócio que não dava para se alargar. Esteve quase a sofrer um acidente de viação, mas escapou por centímetros. Contudo, no período em que lutava para conseguir ganhar um pouco de liberdade, a sua infidelidade veio ao de cima, e envolveu-se com uma das suas miúdas de engates por telefone, Sónia. Infelizmente para Neves, que era sexualmente insaciável, Sónia interessava-se muito menos pelo amor mas muito mais pelo dinheiro, mas isso não o desmotivou de continuar obcecado sexualmente por ela. (Na sua confissão, admite mesmo ter ajudá-la financeiramente a montar um salão de cabeleireira, pedindo-lhe que continuasse a entregar-se a ele; ela prometeu.) Logo a seguir ao seu caso com Sónia, em Fevereiro de 1998, Neves foi infiel com a sua amiga pela primeira vez. Estava de carro à porta de casa da Sónia, quando viu chegar Emanuela, a quem a amiga andava a ensinar a fazer uns engates, e salvou-a. «Não me recordo da forma que Emanuela arranjou, para a porta onde me enfiou, para a sua cama, que estava ali mesmo à minha espera... o som no trinco, feito pela chave da minha amiga que regressava a casa, separou-nos num estado de consumação excitante e feliz». Neves tinha começado praticamente a viver o sexo a partir dos trinta anos. Contudo, dispôs-se a compensar-se dessa falta nos quase quarenta e cinco que levava de vida. No ano seguinte, Neves conta como se encontrou novamente com um amigo da praça, Artur Calado, que era agora empresário industrial, e que converteu a sua atitude romântica em relação às mulheres numa determinação de as «conquistar». Calado gabava-se das suas conquistas. A primeira rapariga que Neves tentou «conquistar» era uma jovem chamada Nani, estudante de biologia, que viera da Suíça passar umas férias a Portugal. Neves pagava a pensão da rapariga e convidou-a a dar um passeio para conhecer a cidade do Porto. Descreve-a como uma «rapariga saloia e bastante sabichona» de vinte e um ou vinte e dois anos, por quem não se sentia particularmente atraído, até que «um dia no pub, na zona da Boavista, no Porto, encostou-se a mim, com um perfume cheiroso e penetrante que me encheu as narinas de suavidade; nesse instante, fui invadido por um súbito desejo físico...» Continua dizendo: «Fiz amor com Nani, um tanto atabalhoadamente, e de forma inútil...» Porém, esta aventura amorosa «tinha os dias contados». Conheceu, numa venda de flores, uma florista chamada Clotilde, que «sentiu como eu, o desejo insatisfeito de abraçar um corpo de que se atrai». Foram amantes. «Por essa altura houve uma ou duas cabritadas». Uma foi com Sandra, que se meteu debaixo dos seus amigos; a outra foi Bruna, uma companheira da hora de jantar de Nani, e que agora era figurante de um grupo teatral. «Para mim, foi uma relação sexual, porque Bruna era então uma rapariga excitante... Mas uma certa tendência nela para a muleta fazia com que me irritasse variavelmente, e tudo acabou entre nós». Nani fez mais tarde a descrição da sua aventura amorosa com Neves — chamando-lhe «O abominável homem das neves». Ele lembra também uma rapariga da casa de Miss Piggy que tinha ouvido coisas a seu respeito e que o convidou para ir lá a casa, e uma prostituta negra com quem fizeram o «cavalinho» na altura de fazerem amor. Em 1999, um evento denominado Óscares da Academia das Belas Artes da Desgraça e do Amor do Grupo de Traidores, que nomeava os melhores traidores do ano, teve grande impacto, e Neves estava nomeado para o prémio de o Melhor Atirador de Sexo do ano, um grupo em que incluía os traidores Pedreiro, Caga-Milhões e Gentleman, que parecia um típico cavalheiro inglês, com os seus fatos sempre ao primor e trato impecável, e que era um Atirador de Sexo incorrigível, era industrial e convivia com eles em O Bar do Traidor. Neves estava a tornar-se uma figura importante no meio dos traidores desafiando os amigos Calado, Gentleman e a velha guarda na liderança do tiro ao sexo. Os seus engates inteligentes sobre os anúncios dos jornais, encheram uma agenda de números de telefones de jovens prostitutas. Uma delas foi Maria Alice, que andava atrás de fabianos de notas, e era uma rapariga bonita de olhos escuros. Costumavam ter grandes conversas ao telefone e discutiam possíveis negócios. Neves chamara-lhe a sua Musa. Um dia, Alice contou a Neves que estava com tesão e quando Neves lhe perguntou «É para já?», lançou-lhe os braços à volta do pescoço. Neves nunca foi um homem para dizer que não a uma traulitada. Despiram-se e saltaram para a cama, embora sem pressas. Pouco tempo depois, na Serra da Estrela, Alice especializou-se no sexo vocal — possivelmente num dos quartos alugados de que Neves tinha conhecimento através de amigos. Passaram alguns dias juntos numa propriedade particular, enquanto se supunha que Neves estivesse em viagem pelo Nordeste, ele conta como procurava arranjar tempo para fazer amor, e como conseguiram que o leiteiro lhe desse a chave da vacaria, e como fizeram amor no armazém em frente das vacas. Miss Piggy, que tinha uma casa de prostitutas, sentiu-se particularmente atraída por Neves e começou a enviar mensagens, tanto para ele como para os seus amigos Calado e Gentleman, que tinha umas novidades, ainda a roçarem a virgindade, pedindo-lhe para lá irem fazer uma visita. Uma dessas novidades foi apresentada a Neves por Miss Piggy, dizendo: «Aqui está uma menina que o vai pôr direito». Neves ficou furioso ao olhar para o camafeu que estava diante de si. Nem teve comentários. Saiu pela porta a rir. Em 2.003, a vida privada de Neves quase se tornou propriedade das prostitutas. Uma «bonita jovem com um rosto parecido como o de Madona» veio de Espinho para assistir a um evento em O Bar do Traidor. Nesse dia, foi-lhe apresentada por uma amiga do fandango, e ele convidou-a a tomar uma bebida. Ele estava cheio de pressa, e viu que ela era uma jovem extremamente apetitosa... No fim-de-semana a seguir ao evento, ela veio ao Porto, à Residencial Xangô, e telefonou-lhe que a viesse visitar. Quando Neves chegou, encontrou-a sozinha. Vestia apenas uma calcinha e sutiã. «´Isto assim é que é bom de ver`, disse, ´isto assim é que é bom de ver`, levando-me para dentro». Ela regressou a Espinho para a sua lida e, quando voltou a telefonar, Neves decidiu que era altura de fazer uma pausa. No entanto, Neves parecia que nunca acabava com a putice. Foi aproximadamente nesta altura que iniciou uma aventura amorosa com uma rapariga que lhe causou boa impressão — Bela Corista. Tocou o telefone e uma voz feminina desabafou que tinha vindo de Vila do Conde para o conhecer; pedir-lhe fosse ter com ela ao hotel. Há algumas semanas que lhe enviara SMS, esclarecendo que o queria fazer. Por isso, Neves nem pensou duas vezes. «Encontrei-me, num quarto com pouca luz, com uma rapariga alegre e formosa, com pouca roupa e cheirando a jasmim». Disse-lhe que ele era o número um de uma reduzida lista de sortalhões. «Se você diz isso...», respondeu. E, ao narrar o episódio, Neves faz o seguinte comentário subtil: «Este género de ofertas, são as que não se devem desaproveitar». Começava a pensar que esta espécie de chamariz tem um conto no fim. Porém, não foi à primeira. Bela Corista revelou-se a sua boa aventura de sempre. Era muito inteligente, mas meiga, sensual, e propensa a mistérios. Alugou um quarto para eles se encontrarem à saída da Póvoa do Varzim, inscrevendo uma inscrição por cima do candeeiro de fora: «Neste quarto moram dois amantes». (Neves contou a Ratazana, que ouviu falar do caso, que retirou a inscrição depois dela desaparecer de cena.) Porém, em breve começou a achar que ela fora um enigma. Ela tinha uma vida dupla secreta. Tinha-o considerado uma espécie de super-amigo. «A minha visão era que ela não gostava de contar nada de si... Felizmente, que não consegui tê-la por mais tempo, parecia ter-se evaporado da terra». Por ironia, a única rapariga que Neves gostou profundamente durante estes anos da sua vida boémia, recusou a ficar por conta dele. Era Sónia, que Neves encontrara pela primeira vez, em Oliveira do Douro, em 1998. Voltou a encontrá-la em 2001, quando foi a França visitar uma feira artesanal; ela estava na altura de visita a uns familiares. Neves conta como a conheceu por causa de um contato de um amigo. «Na primeira vez que a vi, apaixonei-me por ela, fiz amor com ela, e um mês, a meu pedido, apagou os números dos telefones no seu telemóvel, dos amigos e conhecidos, para meu espanto». A sua relação com Sónia, continua a perdurar, com alguns intervalos, para além do ano 2005.

Para Artur Bófia, o amor era como o atuar. Esta é a história de um dos seus casos amorosos. Tinha regressado da esquadra do Porto, depois de mais uns dias de licença. O dia estava chuvoso. Poucas eram as pessoas que andavam a pé pelas ruas, mas de todos os estabelecimentos topava-se pessoas a ver a chuva a cair, e outras enroladas numa conversa. O ar cheirava a lavado e fresco. Quando, às quatro da tarde, a chuva pareceu querer escassear por uns instantes, Artur Bófia que tinha passado um bocado no café, saiu e pôs-se a caminho da casa do Pipocas. Estava com frio e com saudades. Na altura em que chegava precisamente perto da loja de frutas, levou com uma tromba de água em cima. Artur Bófia ficou como um gato-pingado. Correu da chuva, e procurou a casa mais próxima, que era aquela onde habitava a tia Justa, uma viúva de cerca de trinta e oito anos, cuja recente viuvez a deixara razoavelmente calçada. A tia Justa era em geral aberta e descomplexada, o que de certo modo, dispunha-se sempre alegre. Quando Artur Bófia bateu à porta, tinha ela acabado de tomar um banho e estava a 0secar o cabelo. Quando abriu a porta, Artur Bófia estava á entrada pingando água para cima do soalho. «Entra e aconchega-te, antes que te constipes — disse a tia Justa». Artur Bófia, olhando para os seios como um mirolha observa um elefante, tirou o casaco. A chuva batia no telhado. A tia Justa pegou numa garrafa de uísque e colocou-a no centro da mesa. «Queres tomar um copo de uísque?» Ainda o primeiro copo de uísque não estava emborcado e já os olhos de Artur Bófia estavam de novo pregados nos seios. Bebeu o copo de uísque antes de proferir palavra. A tia Justa bebeu também, pois só assim conseguiria descontrair e começou a saborear o uísque quando bebeu uma boa dose. «Este uísque não é do mercado?» — «Ah, pois não; uma amiga minha, uma senhora espanhola é que mo orienta». Embutiu novo copo. Começara a escurecer. A tia Justa atirou umas achas para o lume. «Já que a chuva tem de cair, que caia», disse de si para si. Fixadores, os seus olhos prenderam-se no enorme físico de Artur. O peito encheu-lhe um pouco. «Andas a vir muito para estes lados, meu malandro. Chega-te, dá-me a roupa, que é para a pôr a secar, e cobre-te aí com o cobertor». Artur Bófia não usava muito a mentira. O seu pensamento não atinava lá com esse processo. «Tive no café a fazer horas com uns amigos». — «Mas estás feito numa rodilha». Captou-o em busca de alguma reação em relação à sua generosidade, mas o rosto de Artur Bófia não alterou uma unha sequer, a não ser o contentamento que sentia por estar coberto da chuva e a beber uísque. Estendeu o copo para beber de novo. A tia Justa emborcou outro copo para si. O fogo aquecia, deu uma sensação de bem-estar que contrastava com o bater da chuva no telhado. Artur Bófia não fez o mínimo esforço para se mostrar grato para com a anfitriã. Bebeu o uísque em pequenas doses, sorria estupidamente para o fogo e fumava na cadeira. A ira e o desespero crescerem na tia Justa. «Olhem para este animal», disse de si para si. «Olhem que besta esta que me havia de aparecer. Antes tivesse eu abrigado um cão da chuva. Outro homem qualquer teria para mim, pelo mínimo, uma palavra amiga». Artur Bófia pediu para encher mais um copo. Foi a vez de tia Justa dizer o que ia dentro da sua alma. «Quando a chuva cai e o fogão arde, não há como um grupo de amigos aconchegados no calor, não achas?» — «Acho». — «Talvez as persianas te incomodem — arriscou ela. — Queres que as feche?» — «Não me incomoda — respondeu Artur Bófia —, mas se vê inconveniente, não faça cerimónia». A tia Justa fechou as persianas e a sala mergulhou no semiescuro. Depois, voltou a sentar-se esperou que Artur despertasse a sedução. Aos seus ouvidos chegou o ruído do brusco atirar do fumo do cigarro de Artur. «Pensar — disse ela —, que ainda há minutos estavas lá fora, a correr da chuva, e agora, estás aqui, sentado na cadeira, a beber bom uísque, a fumar a teu bel-prazer e na companhia de uma viúva que te estima que quer o teu bem». De Artur Bófia nem uma palavra se ouviu. A tia Justa não o via nem ouvia. Bebeu o último trago do uísque e atirou às malvas a vergonha por ares e ventos. «A minha amiga Xanana Maluca contou-me que alguns dos teus amigos a visitaram numa ocasião em que chovia a rodos e ela tratou-os tão bem que eles foram muito gentis com ela. Da direção de Artur veio o som de um pequeno ronco. A tia Justa quando se aproximou, nem queria acreditar no que os seus olhos estavam a ver. Artur Bófia estava mergulhado num profundo sono. A cabeça voltada para trás, os pés atirados para a frente, a boca toda escancarada. Enquanto a tia Justa, atordoada e chocada, comtemplava a cena, um tremendo ronco saiu da boca de Artur Bófia. Passou-se dos carretos. Nas suas veias correu uma boa dose de revolta e frustração. Não gritou. Não, embora a sua vontade fosse tanta, dirigiu-se à banca da cozinha, encheu um balde de água, deixou-o atestado, e pegou nele. Depois, voltou-se lentamente para Artur. O primeiro lanço apanhou-o na metade da cabeça e atirou-o da cadeira ao chão. «Reles! — gritou a tia Justa —, reles imundo! Vai roncar para a tua rua!» Artur rolou pelo soalho. O lanço seguinte fez-lhe um penteado novo no cabelo todo puxado para trás. Artur Bófia despertava agora rapidamente. «Ei! — disse. — Que mal eu te fiz?» — «Já te digo! — gritou ela». Abriu a porta para trás e com o dedo esticado fez sinal de marcha. Artur Bófia levantou-se meio cambaleante sob as enxurradas de água. Saiu pela porta fora, enxugando o cabelo com as mãos. «Não atires mais água — implorou. — Mas que mal eu te fiz?» Com uma fúria animal, agarrou-se a ela e caíram no carreiro do jardim. A fúria dele era terrível. Sem deixar de a largar, segurou-a forte contra si, enquanto ela agitava violentamente os braços, para se libertar dele. Continuando a agarrá-la e estado abraçado a ela, o amor surgiu nele. Acariciou-lhe o cabelo, percorreu-lhe o corpo com as mãos grossas, sacudiu-a como se sacode uma trouxa. Apertou-a por uns momentos até a calma dela abrandar. «Reles imundo — gritou —, cão!» À noite, no Marco de Canaveses, um guarda-noturno patrulha as ruas a pé para impedir que as coisas boas se transformem em más. Desta vez José Gabardines equipava uma gabardina impermeável com um brilho semelhante ao alcatrão. José estava triste e chateado. Não era nada difícil fazer patrulhamento nas ruas pavimentadas; mas parte do seu itinerário estava localizado nas ruas de paralelepípedos e nos caminhos lamacentos do Marco de Canavezes e aí, os seus calos sofriam mais. A pequena lanterna iluminava aqui e ali. A noite resplandecia com intensidade. De repente, José Gabardinas gritou, espantado, e olhou para o chão. «Ei, lá! Isto já vai aí?» Artur Bófia voltou a cabeça». — «Oh, és tu, José? Ouve, já que de qualquer modo viste o que não devias ver, não podes mudar de rua uns minutos?» O guarda-noturno fez as pernas mudar de rota. «Acabem mas é lá com isso. Ainda alguém vos topa e vocês ficam nas bocas». O guarda-noturno desapareceu por detrás do edifício dos correios. A chuva batia de mansinho por entre as árvores do Marco de Canaveses.    

Todos os dias, o Faísca guiava o carrito de pedais cheio de bugigangas, pelas ruas em frente, e enfiava-se no jardim. Encostava-o junto a uma árvore e abria-lhe a porta com um alfinete. Em seguida, deixava o material à venda, pois, como toda a gente sabe, as pessoas metidas no jardim tornam-se muito mais solidárias. Só no fim da tarde voltava para casa. De uma bolsa que trazia presa ao braço, tirava os dez escudos que apurara nesse dia e depositava-as na lata da graxa, as novas moedas. Este vício durava há muito tempo. Depois, na companhia do cão, sentava-se numa cadeira e das sacas repartia duas refeições. O esconderijo do dinheiro do Faísca tornara-se o centro emblemático da concórdia, e o ponto de confiança do qual girava a amizade. Os amigos estavam esquecidos do dinheiro, esquecidos de nunca lhe terem deitado a mão. É uma bonita coisa um homem saber que respeitam ele. No espirito dos amigos esse dinheiro há muito deixara de ser uma obsessão. É verdade que, durante um certo período, os amigos tinham imaginado com a quantidade de moedas que ele devia ter arrecadado, mas com o tempo, deixaram de considera-las importante. O dinheiro era ganho pelo suor e sacrifício e esse potencial dom era propriedade do Faísca. É muito pior roubar um pobreta do que se permitir desfraldar a lei. Uma manhã, trazida por aquela rápida boca de um motorista de camião que ninguém duvida, chegou a notícia de que uma camioneta de coelhos tinha ido por uma ribanceira abaixo próximo de Baião. Artur Bófia estava ocupado em assuntos seus, mas o Pipocas, Pascácio, Catanada, Pascácio, Very nice, o Faísca e o cão puseram-se alegremente a caminho pelo monte acima, pois se havia coisa de que adorassem era de andar no monte à caça de coelhos aos saltos. Achavam esse desafio o mais excitante do mundo. Chegaram um pouco tardio ao local, mas recuperaram o tempo perdido. Percorreram o monte durante parte da manhã; no fim, apanharam uma boa quantidade de coelhos; um latão de comida, diversos caixotes partidos, meia dúzia de garrafões de água, uma corrente para prender à carroçaria e um atado de tronchudas. Quando a tarde rompeu, tinham à sua conta um achado muito razoável. Por um casal de coelhos aceitaram dez escudos dados por um dos presentes, pois a hipótese de fazerem algum dinheiro com alguns daqueles bichos era simplesmente pensável. Depois, exaustos, mas levando na alma o bom cumprimento da missão, iniciaram o caminho de volta para o Marco de Canaveses através do monte. Passava das seis da tarde quando entraram pela casa do Pipocas seguidos pelo cão. Primeiramente, o Pipocas abriu o saco e sacudiu os bichos para dentro de um anexo. O grupo entrou no quintal. Pipocas meteu a mão dentro da camisa e tirou um cigarro para fumar. Arremessou o fumo para trás e depois voltou-se calmamente para os amigos; os olhos tinham-se-lhe tornado risonhos como os de um bebé. Olhou cara após cara e todos viram um sorriso e uma satisfação difíceis de enganar. «Bem, malta...» — disse o Pipocas num tom amigável. «Não foi nada mau. Há dias de estimar». Lentamente, os amigos saíram do quintal e entraram para a sala. Pipocas, dirigiu-se aos anexos. Aí, pegou em dois pesados coelhos por debaixo das orelhas... e zás... deu-lhes uma troçada com a mão. Tirou a pele para trás, esticou-os ao comprido e retirou os enchidos e depois meteu-os numa bacia. Pascácio entrou na dispensa e trouxe um tacho com batatas. Very nice afiou as facas e pôs mãos à obra. O Faísca olhava-os perplexo. Na sala todos conversavam animadamente. O Faísca alongou o olhar para a rua. «Ele? — perguntou». Pipocas acenou rapidamente com a cabeça. O seu olhar era luminoso e acolhedor; o queixo inclinava-se-lhe para cima. Quando se sentou na cadeira, todo o seu corpo foi projetado por um impulso como o de uma rocha a poisar no solo. O Faísca dirigiu-se ao centro e armou a mesa. Continuaram a conversar durante algum tempo. Ninguém despregava das cadeiras, mas uma onda de emoção sentida dominava a sala. Havia na sala uma sensação semelhante à de que uma rapariga experimentaria quando o rapaz está a pedi-la em casamento. A tarde acabava; o sol escondeu-se por detrás do monte. A população estava mergulhada numa autêntica acalmia. Dir-se-ia que os dez escudos que os coelhos tinham rendido pouco tempo aqueceram os bolsos do Pipocas; agora, porém, já tinham destino encomendado. Pipocas e Catanada foram ao mercado comprar dois quilos de batatas e cebolas, uma saca de pimentos e uma garrafa de azeite e outra de óleo. Pascácio e Very nice foram ao café buscar dois garrafões de vinho. Na rua ouviram-se os passos de Artur Bófia; os pratos foram postos com mais vigor. Artur Bófia aproximou-se caminhando pelo passeio e entrou pelo portão. Trazia na mão um jornal desportivo. O seu olhar passou de cara para cara com satisfação; os amigos, de imediato, deixaram de estar sentados e, logo o encararam diretamente. «Olá — disse Artur Bófia». — «Olá» — respondeu o Pipocas ao mesmo tempo que se espreguiçava e só depois se levantava fixando o olhar em Artur Bófia. Foi direito a ele e, quando se encontrou defronte dele, abriu os braços com a rapidez dum voador. O abraço foi em cheio que, Artur Bófia ficou redondamente sem fôlego. Repentino, o Pipocas libertou as mãos dos ombros dele e, agarrando a mão de Artur Bófia, elevou-a ao ar. «Palmas — disse». Pascácio bateu com a colher na panela com tanta força que partiu a colher. Voltou a pegar noutra colher e desta vez bateu com menos força na panela e encarou sorridente os amigos. Os amigos levaram as mãos ao ar e fizerem um chinfrim danado. Very nice estava encarregado da cozinha. Catanada sentou-se à direita e o Pipocas à esquerda. Artur Bófia, desconfiado, olhava de lado e, então, gritou de surpresa: «Estais-me a venerar?» — berrou. — «Pelo amor da nossa amizade, o que é que se passa?» — «Quantas é que lhe destes? — indagou o Pipocas num desvio de voz». «Duas no chão, e duas na cama. Eu escanei como um leão e volto lá outra vez». Pipocas levantou-se e voltou a pedir uma salva de palmas. Os amigos bateram as mãos com o mesmo entusiasmo. As palmas tornaram-se mais fortes, e só pararam quando Artur Bófia pediu-lhes para cessar. «Acho que agora passarás e ser cobiçado — disse o Pipocas». — «Devíamos levá-lo à Xanana Maluca — observou Catanada. — Há muito tempo que não a visitámos». Abriram o garrafão que Pascácio trouxera e encheram as tijelas, pois estavam cansados do paleio e a emoção esgotava-se-lhes. Nessa noite, com o fogo a arder na lareira, os amigos encheram-se até não poderem mais. A comezaina era em honra de Artur Bófia. Este comportava-se como nunca. Embora ao primeiro fosse apanhado em contrapé, depois sorriu sem intervalo. Pascácio cobriu-lhe o prato de coelho estufado e batatas. Cada batata era do tamanho de um molete. Depois de terem ingerido uma grande dose de coelho acompanhado de uma salada de pimentos e cebolas, encostaram-se e puseram-se a fumar e a beberricar o vinho das tigelas. Chamavam a Artur Bófia «o nosso fodilhão». Depois foi a vez de ouvirem a história dos quatro coitos e os olhos deles vidraram-se. «...e depois, rapaziada — disse Artur Bófia —, a tiazinha tinha o nariz empinado, e os seus olhos faziam lembrar o brilho das gatas quando se apanham com o cio e ela gemia porque tinha calores lá por dentro. E depois, rapaziada, prometi à tiazinha que lhe dava uma por cada estação do ano. Ela é mesmo tarada, podem crer, rapaziada. E depois chegou-se ao Sul! A tiazinha fechou o rabo e começou logo a dormir. Foi S. Pedro que foi o causador, não foi, rapaziada?» Os amigos manearam a cabeça com força. «Foi — respondeu Catanada. Foi a chuva do nosso bom amigo S. Pedro. Eu só queria lá ter estado no teu lugar». Artur Bófia ficou muito contente, pois não era caso para menos ver-se naquela situação por um acontecimento fenomenal. Se o caso começasse a constar-se, Artur Bófia passaria a ser uma atração para as mulheres do Marco de Canaveses. Depois, cantaram uma cantiga em estilo coral e, galvanizados, voltaram a cantá-la. «Faísca — exclamou o Pipocas —, já todos entramos para as despesas! Já não temos mais dinheiro! Chegou a altura de comprares dois garrafões de vinho para a malta!» O dia fora demasiado cansativo para o Faísca. Retirou-se com o cão e foi a casa. Pegou num monte de moedas antes de fechar a lata e pensou nos seus novos amigos com uma generosidade que parecia desmentir o caso de que há cerca de dois anos não gastava uma moeda mal gasta. Regressou como um cavaleiro andante a casa do Pipocas, trazendo os bolsos atestados de moedas. Pipocas pôs o dinheiro debaixo de um armário. Os seus amigos olharam para as moedas com surpresa. «Mas pró que é que te deu trazeres tantas moedas? — perguntou o Pipocas, abismado. — Bastavam duas para comprares os garrafões de vinho. Temos que guardar as restantes para a próxima vez. Voltaram a cantar uma canção obscena acompanhada pelos urros do cão. O Faísca sentiu que praticara uma boa ação. Os seus amigos estavam satisfeitos por lhe verem trazer as moedas, pois, assim, até eles partilhavam um pouco da generosidade do gesto. Catanada sentia-se aliviado por não lhe ter deitado a mão ao dinheiro logo ao início. Que terrível coisa não poderia ter acontecido se tivesse rapado umas moedas que pertencia a um pobre diabo! Todos os amigos se mostravam dominados como se estivessem em família. Durante muito tempo a festa esteve animada. Artur Bófia redobrou as forças e soltou um berro, pois o álcool estava a fazer-lhe efeito na cabeça. Os amigos olharam-no com estupefação. Por fim, Very nice, esse amigo do amigo, desatou aos risos e deu-lhe um cigarro dos seus. «Até os amantes do lugar invejam por um consolo — disse, animando-se». Esta frase fez crescer o ânimo. Os amigos voltaram a cantar. Estavam entusiasmados. Se á coisas de que gostassem era de beber e de cantar. O histerismo do Faísca acabara. Bebia o vinho e o rosto iluminara-lhe de prazer ao ouvir as palavras que o Pipocas dizia. «Se levarmos todos estes coelhos ao mercado, pensarão que os roubamos dalgum galinheiro numa quinta. Devemos é vendê-los nos particulares. Depois, cada um de nós trás o dinheiro para aqui, e guarda-se para as nossas patuscadas. Talvez, no domingo seja boa altura, o Faísca deve lá estar na igreja para tentar vender». Catanada olhou com desagrado para as roupas sujas e remendadas que o Faísca vestia. «Domingo — disse com tom severo —, agarras nos coelhos que sobram e vais á igreja vendê-los. Mas deves levar roupa mais decente, senão pareces um rato do bueiro. Deixavas ficar mal os teus amigos». O Faísca sorriu. «Faço tudo o que vós dizeis — prometeu». — «Temos que lhe emprestar roupa — disse Very nice. — Eu tenho um casaco e um colete. Catanada empresta o chapéu que ficou do pai. Tu, Pipocas, tens muitas camisas e cedes-lhe uma e o Pascácio empresta as suas bonitas calças de bombazine vermelhas». — «Mas não me borras as calças — protestou Pascácio». — «Também não me amasses o chapéu — replicou Catanada. — Os fiéis provavelmente não nos vão dar qualquer elogio». O Faísca estava embriagado de tanta felicidade devido às benesses que lhe prestavam. «O meu Vigília viu uma cadela no largo do jardim — disse o Faísca. — Estava doudo, quase a babar-se, e eu próprio tive de gritar-lhe: Estou a ver que hoje te vou mandar capar. Meu rafeiro, cheio de tesão». — «Há alturas em que os bichos andam com o cio — comentou o Pipocas. — Tive um jeco não muito entesuado, mas algumas vezes viu-o coçar o instrumento nas pernas das mesas. Dependia de como estava. Se estava com a tusa atirava-se às galinhas, coelhos, era um perigo, se não estava não se atirava a nada. Já alguma vez o levaste às cadelas, Faísca?» — «Não — respondeu o Faísca. — Ficava com medo se visse os olhos dele». Durante algum tempo a conversa gerou-se sobre o tema. Era desconcertante como nessa noite bebiam abertamente. Passaram três horas depois mesmo de esvaziarem a segunda série dos garrafões. Só bastante tarde os seus sentidos descambaram para o sono e alguns pareciam bebés de olhos fechados. Essa noite constituiu uma noite fantástica das suas vidas. No domingo de manhã os preparativos foram executados. Deixaram primeiro o Faísca, vestido como manda a sapatilha, calças de bombazine vermelhas, casaco e colete, na cabeça posto ao jeito amalandrado, o chapéu do pai de Catanada. Convenceram o Faísca a não levar a gravata estampada de um clube, de modo a que não criasse divergências com os fiéis doutras cores clubistas. Os sapatos é que continuaram a ser um obstáculo. Nenhuns sapatos dos seus amigos lhe eram suficiente compridos e largos para os pés do Faísca, sendo assim, não houve outro remédio se não, que o Faísca utilizasse os seus sapatos com dois buracos abertos por onde os calos podiam respirar melhor. Finalmente deixaram-no junto ao muro da igreja. Deu uns passos em roda com o corpo para os amigos o toparem. Estes contemplaram-no, intimamente. «Vende os coelhos, Faísca». — «Não os tragas de volta». — «Deixa de pedir muito». — «Quem te vir pensará que não estás habituado a vender coisa boa». Por fim, o Faísca virou-se para os amigos. — «Se ao menos um de vocês pudesse ficar comigo — queixou-se. — Eu talvez tivesse mais arrojo». Os amigos não cederam. «Não — disse o Pipocas. — Eles têm que ir vender. A gente depois encontra-se lá em casa». O Faísca saiu sorrateiramente através do caminho até chegar ao adro da igreja, na mão levava o saco com os coelhos e o cão seguia atrás. As portas do vaivém não se cansavam do abre e fecha, mas a missa ainda não tinha começado. O Faísca colocou-se debaixo da árvore, puxou o colarinho da camisa para baixo, pôs a saca com os coelhos junto da roseira e encostou-se. A igreja era bastante comprida e algumas vezes a população enchia a igreja para cumprirem as suas obrigações. Durante uns momentos, o Faísca ficou encostado a olhar para os fiéis, mas estes quase o ignoraram, tão habituados a vê-lo aos domingos com a roupa velha e o carrito a vender santinhos. O Faísca aguentou, enervado. E, embora os fiéis entrassem, os coelhos estivessem ensacados, a missa começava e o Faísca não queria tirar os coelhos do saco com medo que eles fugissem. Como era difícil depois apanhá-los! Falou a uns fiéis para ver se os coelhos lhe interessavam. Tinha esperança de que, um entre os fiéis, havia de se mostrar interessado em comprá-los. Nem que fosse apenas um. Em seguida, o padre começou o sermão. O Faísca ouvia-o contar a história do cão amigo do homem, que nunca abandona o dono, a história das formigas voadoras e das araras surdas. Maravilhado, o Faísca escutava-o fazendo carícias ao Vigília e vertendo lágrimas de emoção. De repente, ouviu-se gritar e latir furiosamente. As portas abriram-se com estrondo e pela igreja dentro surgiram os coelhos, Vigília e o Faísca. Correram uns atrás dos outros, lançaram-se à porfia na direção dos bancos de madeira, e esgueiraram-se por baixo dos bancos, gemendo e soltando pequenos latidos. O Faísca ficou apavorado com os olhos à procura deles. E não esperou muito. Deitou-se sobre o chão, esticou-se totalmente para a frente, deixando descair a cabeça em busca dos coelhos. Foi nesse preciso momento que micou um coelho. Tinha ultrapassado os primeiros bancos e parara junto do canto do banco. Ergueu a cabeça para o escuro e ficou-se. O Faísca ficou em pulgas. Sentia os nervos subirem-lhe aos cabelos. Todo o seu fracasso, todos os seus ressentimentos se voltaram para o coelho. Com uma boa dose de calma, concentrou-se em ser mortífero. «Ah, seu filho da... — pronunciou baixinho — pensas que estou trôpego? Já vais ver». Devagarinho, muito devagarinho, arrastou-se como pôde, levou a mão até ao sapato, trazendo-o de volta. O seu olhar águia não descolava do coelho. Este encontrava-se na mesma posição. O Faísca pegou no sapato, pô-lo em posição de lance. Fez mira com um olho fechado a distância. Não podia falhar. Deixou deslizar o braço o máximo que pôde. «Vou despachar este filho da... — declarou —, preparando o corpo para o lançamento final». O coelho continuava lá, com as orelhas viradas para baixo. O Faísca esticou o braço e aspirou todo o ar dos pulmões. Apertou com mais força o sapato e esticou mais o braço. Desferiu o golpe com toda a força que tinha. O sapato voou como uma bala. Bateu no santo e gerou um barulho. Os cacos espalharam-se e o Faísca ficou estátua. A igreja estava ruidosa e num burburinho. Os coelhos passaram velozes pela porta do vaivém, descrevendo alguns oitos, correndo para o outro extremo da rua. O padre interrompeu o sermão e olhou com severidade para a confusão. O Faísca levantou-se, débil e atormentado. Os seus esforços tinham sido frustrados; o prejuízo fora cometido. Então, o padre exaltou-se, e os fiéis, também. «Leva o cão lá para fora — disse. — Procedeste mal. Estou muito zangado contigo; estou envergonhado pelo que fizeste. E tu espera até eu acabar a missa». O Faísca não conseguiu articular uma palavra, cheio de gestos de desculpa, trouxe o cão para a rua. «Vamos — disse-lhe —, o que tu foste arranjar. Mordestes os coelhos, desataste atrás deles para a igreja, e eu fui no vosso encalço. Agora vê quem vai pagar as culpas de ter quebrado o santo, meu patife? Tu ajudaste-me a cometer um estrago». Deixou-o, por uns momentos, deitado no chão a ganir tristemente. Em seguida desatou numa corrida amiúde pelas ruas na direção do monte, seguido pelo cão, que corria e saltava à sua frente. No alto da colina havia uns bancos entre os pinheiros e o ar estava cheirando a resina. A brisa fazia os pinheiros murmurar suavemente. Impondo-se, o Faísca disse: «Aqui estamos melhor. Vigília, meu grande doido, senta-te aí e não faças ondas. O senhor padre não nos vai perdoar». O cão, sentado no chão, observava-o com atenção. Depois, deu um ar grave, mas o Faísca, dirigindo-se-lhe, disse: «Aqui não é preciso pôr-te assim. Os coelhos não se importariam, mas eu não gosto que me olhes gravemente quando estou a falar para ti. Agora, descontrai». Nesse dia a palavra do Faísca estava inspirada. O Sol, entre intervalos, lançava fogachos de luz nas folhas dos pinheiros. O cão, pacientemente sentado, não tirava os olhos da boca do dono. O Faísca dobrou e esticou as pernas um pouco, apertou os cordões dos sapatos, depois disto, fitou solenemente o cão. «Os coelhos fizeram muito mal em separar-se de nós». As folhas dos pinheiros deixaram de abanar. O monte ficou iluminado e em silêncio. Subitamente, ouviu-se um seco ruído por trás do Faísca. Logo o cão levantou as orelhas. O Faísca não teve coragem para voltar a cabeça. Decorreu uns longos minutos. Depois o tempo passou. O cão baixou os olhos. O vento voltou a abanar as folhas dos pinheiros que se agitaram de novo. O Faísca ficou tão comovido que o coração lhe parou. «Tu viste-os? — exclamou. — Eram os coelhos? Oh!, que cão bondoso tu deves ser para veres uma miragem destas!» Ao ouvir estas palavras, o cão levantou-se dum salto, abriu a boca e deu uma de olhar grave.     

Poucos eram os habitantes do Marco de Canaveses que usavam relógios de boa marca de parede ou de bolso. De vez em quando, um dos amigos arranjava um relógio de alguma maneira muito afamado, mas só o tinha durante o tempo suficiente para o trocar por qualquer outro que realmente se sentisse agradado. Na loja do Pipocas, os relógios tinham boa procura e havia dois escalões, mas apenas como objetos de venda. Para uso normal havia o relógio vulgar. Era mais barato e de funcionamento prático, do que um relógio de marca afamada. No Verão, aos domingos de manhã, quando as pessoas iam à feira dos selos, nas imediações da Caixa do Povo, é certo e sabido, que era uma bela altura para uma pessoa trocar ou comprar um relógio de outra marca, mais em voga, nos vendedores ambulantes que por lá se cruzavam. Quão melhor não é uma marca mundial? É uma bela ocasião em que nem as posses de uma pessoa derretem nos bolsos nem a bondade tem interrogações por não levar nada. O Faísca e o cão seguiam, firmes e seguros, no seu trajeto habitual para o trabalho. A loja do Pipocas só abria passado três horas depois de o Faísca passar por lá. Quando o Pipocas fechou a loja, o dia ainda estava claro. O Sol já se tinha refugiado para lá do monte. O tempo tinha um cheiro seco e agradável, como o perfume das flores. E quando chegava o momento do grupo se juntar, havia sempre qualquer coisa para se contar, e as boas notícias guardavam-nas para essa ocasião. «Vi o Arnaldo Curto — disse o Pipocas, — saia da casa da Xanana Maluca. Não há um dia que aquela mulher não se meta em barafundas». — «Só sabe viver assim — comentou Pascácio. — Quem sou eu para atirar a primeira pedra, mas em dado momento penso que a Xanana é um bocado atiradiça de mais. Só lhe acontecem duas coisas na vida: amor e sarilhos». — «Mas que é que vocês esperam? — disse Catanada». — «Nunca tem paz nenhuma — lamentou Very nice». — «Também a escorraça pela porta fora — retorquiu Catanada. — Dar-lhe a paz é acabar com ela. Amor e sarilhos... Está visto. Ah, mas não esqueçamos a pinga, porque aí está uma mulher sempre fresca, sempre feliz. Mas que é que aconteceu à Xanana?» — «Vocês conhecem bem a Xanana — começou. — Há homens que algumas vezes lhe levam presentes, um frasco de água-de-colónia, um par de cuequinhas de fio dental ou um sutiã. Não passam de pequeninas coisas, mas Xanana aprecia-as. Ora bem, ontem, salvo erro, Manuel Chapadas levou-lhe um pó-de-arroz, uma caixita assim brilhante e bonita, que ele comprara num salão de beleza. A Xanana ainda deitou um pouco de pó-de-arroz na cara quando ele se envolveu com ela, mas ele foi-se abaixo antes de Xanana ter despertado». — «Como sabem, dinheiro é coisa que não falta ao Chapadas. Disse ele à Xanana: Não há nada melhor do que uma mulher ter um cheiro agradável. Sabe bem. Este pó aqui é muito bem-cheiroso. Vais gostar muito dele». Os amigos sorriram francamente e Catanada disse: «Chapadas tem artes de Don Juan. Vejam lá o que ele não fez com o pó-de-arroz... gozo e amor. Um dia destes tenho de ir ter com ele». Mas os amigos viam bem que Catanada estava era com inveja dele. «Anda lá com essa história do pó-de-arroz — disse Pascácio». — «Bom — disse Catanada, — a Xanana ficou com o pó-de-arroz e mostrou-se amável para com o Chapadas. Disse-lhe que quando ficasse cheia de pó-de-arroz, ele podia dar outro presente qualquer. Depois, o Chapadas foi-se embora e a Xanana guardou o pó-de-arroz na cómoda para quando fosse visitada pelos amigos especiais». — «Depois, veio um amigo daqueles especiais visitá-la e a Xanana deixou que ele abrisse a caixa do pó-de-arroz e a borrifasse toda com ele. A certa altura o Barbas, como era apelidado, beijou a rata de Xanana. Nem imaginam. A língua entrou por ali dentro à procura do prazer. Os lençóis e os cobertores voaram e as almofadas abafaram os gritos. E, depois, quando o gozo se foi embora, o Barbas ficou com a cara como um palhaço. Agora a Xanana anda endiabrada e diz que há-de comprar mais caixas de pó-de-arroz iguais à do Chapadas». — «Ai a viciada! — disse Pascácio — O prazer é mesmo assim, quando corre conforme os nossos desejos. Já quando o jovem André se estreou, foi do mesmo jeito». O rosto dos amigos do Pipocas alterou, interessadamente, na direção de Pascácio. «Vocês devem saber aquém eu me refiro, ao jovem André — começou Pascácio. — Parece mesmo um cobói, tronco largo e pernas compridas; mas não é lá grande coisa a pinar. Nas rapidinhas é muitas vezes atirado ao tapete. Pois bem, o homem não quer outra coisa senão que o convidem. Quando há noitadas, gosta de levar a pequena; nos quartos é sempre o primeiro a dizer: — Vamos a ver se aguentas com esta! Não há duvida, está ali um homem que quer ser um grande cobridor, que as mulheres olhem para ele, que o desejem e, até que gostem de fazer amor com ele». — «Porventura vocês se lembram daquela vez na receção da residencial em que ele armou uma cena monumental. Ia acompanhado, muito sério, com uma grande cavalona loira. Mesmo em frente do balcão da receção, a doida da cavalona puxou a saia para cima e o André topou-a sem cuequinhas e deu-lhe uma chupadela no grelo, que ela deu um grito e foi deitar-se no sofá, aos tremeliques. Catanada riu-se, apanhou um pauzito e atirou-o contra a perna da cadeira. «Lembro-me das cenas dele — disse o Pipocas. — Esse André não tem os parafusos todos. O Ratazana é que o conhece bem, quando vocês falarem com ele. Às vezes põe as gajas na mesa do André e os clientes pensam que foi ele que as chamou e dizem: — Ora aí está um sujeito que sabe do seu ofício». Não é assim tão fácil apanhar gajas quando se faz por obrigação. Very nice, que tinha estado a pensar de cabeça encostado ao braço, comentou: — «É pior falarem mal de uma pessoa do que lhe darem com uma paulada. Toda a gente gozou daquele estouvado amalucado do jovem André até ele se mostrar. Mas depois ficaram com inveja de se terem divertido dele. Essa história do André é reinante. É também uma história que dá vontade de rir». — «Ouvi contar coisas a respeito dele — disse Catanada —, mas são tantas que nem sei por onde começar». — «Bem — disse Very  nice, — eu vou conta-la e vocês logo veem se são engraçadas ou não. Quando eu era puto, costumava brincar com o Trindade. Era um bom miúdo e esperto, mas andava sempre à procura de se meter em sarilhos. O clã era composto por cinco pessoas. O pai, a mãe, e três irmãos. A maioria dessa gente já cavou daqui. Um dos irmãos perdi-lhe o rasto, o outro está na Madalena e o outro foi apanhado por uma peixeira da Afurada por lhe andar sempre a comprar linguados».— «De modo que me dei sempre bem com o Trindade e o irmão mais novo Ricardo. Trindade cresceu comigo e os sarilhos nunca o abandonaram. Passou uma temporada no serviço noturno e depois voltou para casa. Aos sábados apanhava uma liberdade e ia dormir para a praia até segunda-feira. O irmão mais novo era um daqueles rapazes de boas intenções e todas as semanas se enrolava com uma cachopa. De modo que estavam quase sempre os dois à distância. O mais novo Ricardo sentia-se só quando não tinha o Trindade ao pé de si. Adorava o irmão. Tudo o que o irmão mais velho fazia, o mais novo fazia também, mesmo quando já tinha passado dos limites». — «Talvez vocês se lembrem da Graça Gracinha — continuou Very nice. — Não era uma rapariga lá muito séria. Não tinha mais de dezassete anos quando uma rusga policial veio ao Porto e ela ficou logo retida por não ter documentação. Era gaiata e esperta e não deixava ninguém ficar sem levar resposta. Parecia andar constantemente a fugir dos polícias e os polícias bem seguiam no encalço dela. E algumas vezes levavam-na. Mas uma pessoa não lhe podia dirigir palavra quando ela estava com os azeites. A moça parecia ter o demónio dentro dela».       — «Eu sei disto — prosseguiu Very nice — porque também me atirei a ela; eu e o Trindade. Só que o Trindade tinha outro feitio». — Very nice olhou os amigos bem nos olhos fincando esta tese. — «Trindade desejava tanto o que Gracinha tinha que uma noite saiu em sua defesa e deu um pontapé nos tomates dum polícia e fugiu pela rua abaixo como os corredores de cem metros livres. Não conseguia deixá-la ser injuriada e agiu. O irmão foi falar com a Gracinha e disse-lhe: “Se não fores simpática para com o Trindade ele desaparece.” Ela, porém, limitou-se a sorrir. Não era lá muita coisa». — «Que é que vocês pensam que eles depois fizeram?» — continuou Very nice. — «Trindade foi apanhar sol para a praia e deu apalpões a Gracinha, chochos grandes de artista, carícias, festas. Depois, pegou-lhe pelas ancas e sentou-a no colo e em seguida, deu-lhe uma varada ao som das ondas. — «Gracinha passava-se com tanta marmelada, mas vinha-se e chorava como uma criança. Vocês deviam ter ouvido como ela berrava. Uma pessoa ficava com ganas de lhe dar outra varada e, ao mesmo tempo, de a calar. Eu imagino como era. Andei na cuca dela e o Trindade disse-me, também. Só que, ao Trindade dava-lhe cabo dos nervos. Já só conseguia dormir com comprimidos. Um dia confessou-me: “Se a Gracinha quiser ser minha amante, deixará de ter coragem de se meter nos copos, pois nessa altura é comprometida e é um crime desrespeitar o amante.” De maneira que pediu-a para ser sua amante. Ela desatou a beber daquela maneira maluca que dava vontade de a mandar àquela parte». — «Oh! O Trindade ficou desnorteado. Foi para o quarto, prendeu uma corda a uma perna da cama e pôs-se à espera dela. Quando a Gracinha entrou, deixou-a despir-se; em seguida colocou a corda à volta dela e atou-a à cama. Depois fechou a porta e foi-se embora. Mas ainda se passaram duas horas antes de Gracinha conseguir se libertar das cordas e três dias antes de poder insultá-lo». Very nice intervalou-se. Via, com alegria, que os seus amigos acompanhavam a história com interesse. «A coisa era deste estilo». — «Mas a Graça Gracinha foi amante do Trindade! — exclamou Catanada, excitado. — Eu conheço-a. É uma boa dona de casa; nunca nos deixa sair sem nos oferecer de beber e vai à missa todos os domingos». — «As coisas também se compuseram da maneira que o Trindade tinha desejado. O confessor disse a Gracinha que fosse uma boa mulher e ela foi uma boa mulher. Deixou de andar nos copos e de insultar os homens. Como não bebia, deixaram de se intrometer com ela. Trindade continuou a ir dormir para a praia e, passado algum tempo, arranjou lá um emprego para segurança de condóminos. Não tardou muito a entrar nos eixos. Como veem, esta história é magnífica. Era digna de ser apresentada nos palcos do cinema por um realizador se terminasse aqui». — «Pois era — disse Catanada com olhar sério. — Esta história também nos ensina algumas coisas». Os amigos acenaram com a cabeça em sinal confirmativo, pois adoravam de uma história emotiva. — «No Douro conheci uma rapariga como essa — disse o Pipocas. — A única diferença é que não se modificou. Chamavam-lhe a rapariga da segunda escolha. —A Senhorita Segunda Escolha», era o nome que eles lhe davam». Pascácio fez um gesto com a mão: — «A história ainda não terminou — disse. — Deixa lá o Very nice contar o resto». — «Sim, ainda não terminou. E, no fim, a história não é lá boa como vocês imaginam. Ricardo passava já dos vinte e cinco anos. Trindade e Gracinha foram morar para uma casa isolada. Ricardo ficou sozinho, pois acabara com a peixeira. Não tinha sossego nenhum. Passava a vida na estroina, embriagado; até que um dia conheceu uma chavalita chamada Celina. Tinha dezasseis anos e era mais bonita do que a Gracinha. Todos os clientes da cervejaria andavam atrás dela como se fossem lobos. Então, o que se tinha passado com o Trindade, deu-se com o Ricardo. O desejo corrompia-lhe o corpo todo. Bebia mais do que comia. O olhar ficou estrábico e ganhou aquele aspeto alarmado que os fumadores de droga têm. Enviara-lhe chochos atirados de mão, mas ela ria-se dele. “Vem cá, meu passarinho, vem cá ao teu príncipe.” Ela não parava de fazer chacota». — «Como vendia livros sempre que arranjava uma promoção guardava-a em presentes para a Celina, magazines e agendas. Pagou-lhe um concerto dos GNR, música ao ar livre». — «Então o Ricardo contou ao Trindade o que se passava. Trindade riu-se também. “Meu tolo”, disse, já tiveste na tua frente tanta rapariga. Não andes atrás de miuditas que sabem mais do que tu.” Mas aquilo de pouco lhe serviu. Ricardo ficou louco de desejo. Esses Trindades é gente de sangue na guelra. Escondia-se nas esquinas para a ver passar. O coração saltava-lhe do peito». — «Ela não fazia outra coisa senão esquivar-se, e Ricardo estava quase paranoico. De maneira que agiu em conformidade. E, assim, pediu-a para sair com ele. Ela riu-se como nunca e, sacudindo as saias, fez-lhe sinal de never para o afinar. Era um diabinho, aquela miúda». — «E ele um idiota — disse Catanada com descaramento. — O dever dele é meter-se com raparigas da sua idade, e não chavalitas». Very nice, arreliado, prosseguiu: — «Os Trindades são irresistíveis; aquece-lhes a veia». — «De qualquer das formas, foi incorreto. Foi uma vergonha para o Trindade — disse Catanada». Pascácio voltou-se para ele. — «Deixa lá o Very nice contar. É a história dele e não a tua. Um dia destes contas a tua». Very nice mostrou-se grato pela intervenção de Pascácio. — «Como ia dizendo, Ricardo não podia com aquilo mais, mas não era capaz de mudar fosse o que fosse. Não era como o Catanada. Como não tinha jeito para inventar nada de novo, deixou aguardar uma oportunidade». — «Vocês devem saber — prosseguiu Very nice — que lá no quarteirão há uma hospedaria. Uma tarde, Ricardo convidou Celina a dar uma volta no carro com ele e levou-a até lá. Depois, esperou até a convencer a uma rapidinha numa desportiva. Viu o tempo passar. Passou o braço à volta da cintura dela e puxou-a bruscamente para si. Ele a fazer isto e ela a retribuir-lhe com uma sonora galheta». Largos sorrisos surgiram no rosto dos amigos. Algumas vezes, pensaram, a vida tinha coisas do arco-da-velha. — «Ricardo mal se conteve — continuou Very nice. — Disse de si para si: — A miúda é capaz de andar por aí atrás de algum, mas isso não dou — Só passado um minuto é que abriu a porta da hospedaria». Very nice olhou à volta. Os largos sorrisos mantinham-se em foco. — «Vocês estão a topar — disse Very nice — a coisa é engraçada, mas também tem o seu quê». — «O que é que a Celina disse? — perguntou Catanada. — Acedeu ao impulso e mudou de procedimento?» — «Não. Não mudou nada. Ricardo aguentou-se e ela mandou-se. Mandou-se também, mas ficou fulo. E disse para si mesmo: — Que miúda parva ela me saiu. Uma noite destas vai ser ela a puxar-me para a levar para o pinhal. Depois Ricardo entrou no carro sem ela». Catanada queixou-se: — «Essa história não vale. Tem rodriguinhos a mais e podem tirar-se dela demasiadas lições, e alguns delas são contraditórias. É uma história que não vale a pena guardar na memória. Não se chega a conclusão nenhuma». — Eu atino com ela — disse Pascácio. — Atino com ela porque não tem nenhum sentido à-priori; contudo, parece que realmente quer dizer alguma coisa, embora eu não saiba bem o quê». A manhã já ia a meio e o ar estava quente.— «Que é que vamos comer? — disse o Pipocas. — «Na adega há lá um sável de escabeche — observou Pascácio». Os olhos de Catanada reluziram. — «Estive a pensar numa coisa — disse. — Quando eu era pequeno vivia nas férias com o meu tio ao pé do elétrico. Todos os dias, quando o elétrico passava, os meus amigos e eu pulávamos por trás e íamos à boleia e o guarda-freio enxotava-nos com correia. Havia alturas em que o elétrico enchia de passageiros que aí ninguém nos enxotava. Pensei agora que talvez a gente pudesse comer à borla na adega. Quando o empregado se aproximar, chamamos nomes uns aos outros e distribuímos galhetas por todos. Como é que o empregado pode responder-nos? Atirando-nos com os pratos ou com as cadeiras? Não. Só pode é deixar-nos sair em grande». Pascácio levantou-se cheio de contentamento. — «Ora aqui está uma bela ideia! — exclamou. — Isto é que o Catanada é um génio! O que é que a gente fazia sem ele? Vamos lá; eu sei onde há um grande empregado medroso». — «E o sável é o meu peixe predileto — disse o Pipocas».