FERNANDO ABRAÃO
E RATAZANA
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O
MUNDO
DA
NOITE
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Por volta dos anos 83 aguardava-se que um serralheiro
da construção civil mostrasse a sua virilidade de machão. António Glória vinha fodendo
as raparigas dos bares, desde meados dos anos 80, com os seus gestos
excêntricos de atirar as notas para cima da mesa. Quando iniciou a tarefa de trabalhar
por conta própria, em 1983, trouxe com ele, para Sines, um grupo recrutado de
homens, começando logo a trabalhar com eles. Embora fosse um homem casado,
passava a maior parte do tempo fora de casa, altura em que o seu nome estava
ligado a várias prostitutas. Era frequente a forma como tratavas as prostitutas
com tal rigor que mesmo um proxeneta teve-o de o aconselhar a ter mais calma e
serenidade (isto é, ser menos bruto). Depois de ter subido na carreira
profissional, por empreendimentos de maior dimensão, em 1987, uma empregada da
noite de um cabaré contou como Glória a tinha feito sua amante, quatro anos
atrás. Antes de formar uma firma individual, Glória contou ao barman do bar que frequentava
assiduamente que tinha levado para a cama quase mil raparigas. Um livro
publicado após a sua aposentação, Escritos
Traidores, conta que em noites de sangue quente, ia até um bar da sua
preferência, fosse em Lisboa ou no Porto, e sacava uma rapariga e levava-a para
o seu apartamento privado. Mesmo durante a sua passagem, ninguém levava a mal
com engates deste género; eram de esperar de um homem cheio de notas e cheio de
speed.
Toninho Alves, o terrível «Gungunhana do sexo», dos
anos 85, tentou decidir exceder Glória ao engatar duas ou mais raparigas no bar,
havendo alturas em que parecia que estava louco por relações sexuais. Muitas
vezes, acabava a sua relação batendo com a cabeça do pénis na cabeça da
acompanhante, e uma ocasião pô-la coberta de chocolate-baunilha. Rodeado
permanentemente por «grupos», Alves era capaz de «servir-se das raparigas como
algumas pessoas comem tremoços». A sua virilidade era manifestamente
extraordinária. Duas cabriteiras fizeram
uma aposta interessante a ver quem dos clientes mantinha a gaita de pé depois
de uma relação; um deles provocava a ereção pelo sexo oral. Alves foi um dos raros
clientes que conseguiu ser capaz de manter a sua gaita de pé até elas se
cansarem, mas também, aquele a quem as cabriteiras
não conseguiram acompanhá-lo, porque a sua gaita se recusava a murchar. Em
1985, com trinta e cinco anos, Alves contratou numa noite um grupo de raparigas
de ballet para animar os amigos na sua vivenda e bebeu demasiados uísques para
gozar que a seguir desmaiou ao aspirar o próprio vomitado. Foi reanimado tão rápido
e tão espontâneo que não deixou de fazer amor como todas elas, como nos bons
velhos tempos do ano 83. Ficou célebre a sua fórmula. ´Se me foderes primeiro,
apresento-te o melhor de mim`.
O acontecimento mais relevante do cabeçalho de O Jornal Dos Traidores do ano 83 foi o
título que anunciava a morte de João Cesário, também conhecido pelo Galileu, e mais a sua acompanhante, em 7
de Junho de 1984. Galileu, o
professor biológico e a acompanhante empregada de um bingo da cidade de nome
Elsa, divertiam-se num fim-de-semana, num apartamento em Mérida, em Espanha,
quando o amante de Elsa com a sua cumplicidade, entrou de sorrateiro na sala,
munido de uma lanterna e de uma faca. Cesário não deu por nada e foi roubado e
depois deixado ao abandono — Galileu, que
continuava a dormir, assim ficou. Abraão, dono de O Bar do Traidor, encontrava-se no café quando recebeu a triste
notícia. Imediatamente a seguir vieram os boatos. Um mau-olhado de O Jornal Dos Traidores escreveu:
«Durante meia semana os boateiros sobre a desgraça de O Mundo da Noite falavam
de comprimidos, droga e exibicionismos sexuais. O primeiro boato referia-se que
as mortes foram cometidas por excesso de velocidade e especulava-se que tinha
havido falha mecânica. Falava-se também de comprimidos relaxantes e perversão
sexual. Na noite seguinte às mortes de Galileu
e Elsa, o próprio Abraão foi com uns amigos, ao restaurante onde o Galileu tinha jantado e conhecido a
jovem Elsa — conquistada ao acaso —, onde combinaram seguir para o apartamento
em Espanha, depois de tudo acertado entre ambos. Dois dias mais tarde, no bar,
uma prostituta chamada Teresa, sentada à mesa de um grupo de clientes, admitiu
perante uma companheira de mesa que estivera quase para se envolver nessa
viagem e a companheira contou que também fora convidada. Desabafou. «Olhai, onde
é que eu tinha ido parar? Debaixo dos torrões». Depois de um dos casos mais
chocantes e arrebatadoras das histórias dos bares do Porto, Abraão reuniu-se
com os seus traidores (como chamava ao grupo), para receber nessa tarde, no
bar, o famigerado morto-vivo. Tornou-se evidente, durante a receção ao Galileu, que a sua morte fora
praticamente um lapso — o seu corpo tinha sido confundido, porque no seu carro
e no seu lugar seguiam o amante e Elsa. O carro embateu contra um camião na
autovia de Vigo, tendo-se incendiado de seguida, e os corpos ficaram
carbonizados. Depois de Galileu ter sido
recebido com estupefação por parte de toda a gente que enchia o bar, estes ofereceram-lhe
de beber e deixaram-no contar a sua façanha. Após ter narrado a sua história, o
Galileu retirou-se e juntou-se às
raparigas da rapidinha. Depois embrulhou-se e, após alguns mimos, mandou vir
umas bebidas para elas, para o sofá. «Não restam dúvidas sobre como escapei»,
diz o Galileu no seu comentário final.
«Abri o coração à aventura e quase me ia lixando com ela. Não estava para
morrer. Quando regressei a casa e perguntei à minha patroa se ainda gostava de
mim, recorreu à sua expressão atual. «Sim, morto-vivo». Cinco anos depois, a
história do morto-vivo tinha fascinado todo o cliente do bar. Em 1990, é
recebido com saudade — um gesto, sem dúvida, mais salutar. Um ano depois, o
Galileu veria publicada a sua história no livro de Ratazana ´Escritos Traidores`, com uma narrativa
fabulosa, falando com alguma verdade das diversas mulheres que foram com ele
para a cama e contando toda a história que o obrigou a afastar-se dos bares e
da «nait» (noite). O livro conta tudo. (Não só dele como dos outros
clientes-traidores) Descreve, por exemplo, a
tuléria da sua tentativa de bater o recorde dos traidores ao levar cinco
mulheres para a cama e fazer amor com todas elas, e o que aconteceu depois da
sua vinda de Espanha. Uma artista de sexo feminino, levou-o para um cubículo,
onde dois sofás ao comprido estavam transformados numa casa improvisada.
Deve ter havido qualquer segredo no motivo por que o empregado
de mesas António Ferreira, aceitou juntar os trapos com a camareira chamada
Mimi, que era desajeitada, feia e estrábica. É uma verdade que o fez, em grande
parte, para ter alguém que lhe tratasse das suas boas roupas e lhe fizesse de
comer. Mas podia ter casado com a filha do pronto-a-vestir, a bela e insinuante
Júlia de S. Vítor - Campanhã. A sua ligação a Mimi acabou por ser um bem
repartido. António Ferreira, empregado de mesas, nasceu no Porto, em 1942.
Determinado a viver no meio de uma certa burguesia e do espírito boémio,
Ferreira mandou-se para a restauração e andou empregado em estabelecimentos
bastantes medianos. Teve o efeito contrário: o inexperiente empregado tornou-se
refilão, gastador e boémio. Aos vinte e oito anos envolveu-se numa aventura com
outra camareira, Raquel, e os filmes que lhe contou tiveram de ser recambiados
por outros. Ferreira fez-se amigo de um grupo que se empregava na noite e
apostou forte nessas amizades, do qual faziam parte o chefe de mesas Pinto, futuro
proprietário de um clube noturno que breve ia abrir — numa das artérias com
mais estabelecimentos de diversão — e acabou por ser contratado. Começou a
criar amizades. Comprou um carro — e quando viu o dinheiro a crescer-lhe —
encheu o guarda-vestidos de fatos e camisas. Aos 30 anos, Mimi, conseguiu
finalmente convencê-lo a terem um filho. Concordou, sob a condição de ser ela,
a sustentá-lo. Mimi, era desajeitada, feia e estrábica, e sofria de problemas
de figadeira — possivelmente em resultado das muitas bebidas alcoólicas que
bebia nos alternes. Raquel, então amiga de Ferreira, insistiu com ele para que
se amantizasse com Mimi, em vez de escolher a insinuante Júlia de S. Victor –
Campanhã, porque seria uma rival de menor relevo. Numa noite fria de Fevereiro,
na Marisqueira Teia, Ferreira conheceu Mimi; ficou atordoado. Retirou-se
cambaleando para o balcão e pediu um uísque. Prosseguiu a beber uísques,
durante dois dias, até juntar os trapos. Na primeira noite, parece ter cumprido
o seu papel de amante, porque Mimi descobriu logo que estava apaixonada. Contudo,
Ferreira achava-a fora de moda e mantinha-se quase sempre afastado dela, só a levando
à noite no carro para o trabalho. Apoiada pela sua vontade, Mimi, foi alugar
uma parte de casa numa paralela à Rua da Constituição, comportando-se de modo a
que as vizinhas lhe chamavam a «senhora completa». Tinha no quarto uma figura
grega provida de um mecanismo que, quando ligava a pilha, mostrava o
instrumento sexual em movimentos obscenos. Em 1978, os boatos de que o filho de
seis anos, que vivia com eles, era seu filho ilegítimo, levaram Ferreira a uma
depressão interior que o atormentava, sempre que olhava para o filho. Porém,
algum tempo depois, Mimi, jurou por todas as almas da terra, que a criança era
seu filho legítimo, que fora fruto do seu amor. E o assunto ficou por ali. Mimi
e Ferreira iriam se separar, mais tarde, depois de um esgotamento conjugal,
protagonizado por quezílias, perseguições e abandono. Finalmente em 1980, num pub entretido a tomar uma bebida, pasmou
o seu amigo ao lançar um piropo atrevido à jovem empregada de bar, uma rapariga
graciosa chamada Caty. Este idílio inesperado, de frases quentes e extremamente
atrativas, parecia ter vindo na hora certa. Namoriscou com ela pela Foz,
Ribeira, Campo Alegre e Antas, e quando se conheceram melhor, fixaram-se num
quarto, na zona alta da cidade, comportando-se como marido e mulher. Fernando Almeida,
seu amigo, — que o tinha auxiliado na separação com Mimi — percebeu logo que
Caty, poderia bem ser a rapariga ideal para Ferreira. E Ferreira queria-a mesmo
a valer. Por isso, o entendimento foi recíproco.
O enforcamento do empresário Rufino M do Porto, depois
de ter extraído um rim há doze anos, tem sido falado como a maior desgraça
vivida dos tempos modernos. Se Rufino M tivesse vivido, teria comercializado um
negócio decadente. O comércio dos eletrodomésticos havia dominado o Mundo
durante muitos e bons anos. Contudo, em meados do milénio, tinha-se expandido
de mais, e grandes mudanças económicas sufocaram a velha estrutura, e já não
era o mesmo que dizer que era a galinha dos ovos de oiro. Rufino M tinha
obstinação. Nascido na cidade Invicta do Norte, casou com uma rapariga educada,
inteligente e ambiciosa, que lhe deu um filho. Quando Rufino M passou a patrão,
orgulhava-se da quantidade de conquistas amorosas que fazia, anotando os seus
nomes numa agenda de bolso — a branco as sérias, a vermelho as prostitutas. Gozou-se
dos engates e das amantes, e sentiu-se atraído por negócios noturnos. Mais
tarde, confirmou aos amigos, que a noite era a sua fonte iluminante. Era
realmente bastante notívago. É possível que em certa ocasião tivesse contraído
uma doença venérea. O certo é que contraiu a doença dos novos-ricos — o
divertimento e o gozo. «Parecia gostar de tudo aquilo em que se metia», diz um amigo.
A mulher, pacientemente, passava a maior parte do tempo à frente dos
eletrodomésticos, sempre em sobressalto. Rufino M foi ficando cada vez mais noturno
e boémio e começou a deitar-se a partir das quatro horas da manhã. A sua
relação com a mulher começou a tornar-se cada vez mais amarga. Começou a abandalhar-se,
de modo pouco empenhado, a separação da sua mulher. O grupo dos seus amigos
noturnos eram uns pacholas e não tinham cabidela em meter-se nos seus problemas
pessoais. Nessa altura já ele estava divorciado. Romy era uma jovem elegante de
origem fidalga, cuja área comercial tinha cruzado com os negócios de Rufino M.
Ao vê-lo em grupo, ficara loucamente apaixonada por ele. Através de uma amiga,
conseguiu ser-lhe apresentado na loja dos eletrodomésticos. Rufino M não era
homem para perder a oportunidade de se bater a uma rapariga quando esta se lhe
oferecia aos seus olhos; tornaram-se logo amantes. Em Março, nos inícios do ano
90, Rufino M recebeu as análises clínicas. Quando as pôs no armário, ouviram-no
comentar: «Estou perdido. Não me safo desta». Passou o resto do dia na sua
residencial a olhar para a porta da rua, partindo depois ao escurecer para O
Bar do Traidor. Sabia que lá encontrava sempre alguém para conversar, e partira
no seu carro, dando uma volta pelo quarteirão. Tudo parecia demasiado escuro e
os seus olhos eram apáticos. Encontrava-se numa encruzilhada. Rufino M tinha
sido convidado para uma festa de aniversário de O Bar do Traidor, e aceitou.
Nessa noite conversou com vários amigos, enquanto era cumprimentado por várias
prostitutas. Quando o bolo foi cortado, o amigo de Rufino M, Abraão, pegou na
viola e cantou uma rapsódia para eles: «Estava sentado num banco do jardim e
nisto vi uma linda e bela moça que morava num modesto e lindo quinto andar...»
Conversaram então de muitas coisas, uma delas, se a vida devia ser curta ou
comprida e acabaram por não chegar a uma conclusão. Quando Rufino M foi para a
residencial e fechou a porta do seu quarto para dormir, decidiu-se esganar
entre dois lençóis entrelaçados ao pescoço. O corpo foi descoberto pela
empregada de quartos, por volta das dez horas da manhã. O Mundo da Noite ficou
profundamente abalado com a notícia. A princípio, a informação que saiu cá para
fora era a de que Rufino M tinha morrido com um ataque cardíaco, mas não se
pôde esconder a verdade por muito tempo. Houve um burburinho à volta do caso
sobre o motivo da morte de Rufino M, uma vez que cometera um suicídio. O seu
corpo foi sepultado no cemitério local. Ainda não é claro o motivo pelo qual
Rufino M se matou e porque é que, sendo cristão, escolheu morrer de morte
antecipada. A resposta à última pergunta pode ser que, como era fisicamente debilitado,
precisasse de algum antídoto para morrer mais cedo. Provavelmente não estava à
espera de umas análises tão cruéis, porque tinha passado a última noite, na
residencial, a divertir-se com umas amigas do antigamente. Parece provável que
Rufino M estivesse tão ansioso por morrer como se a morte fosse para ele um bem
desejado. Ele pode até ter pensado estar a fazer um favor a si próprio ao
envolver-se no pacto do suicídio — ao fim e ao cabo, era um homem destroçado e
sem saúde.
O estrondoso caso do vendedor de trapos de Penafiel
parece quase uma peça de hábitos — o viajante que passou a vida a meter-se com mulheres
de hábitos fáceis e acabou por ser mau com uma anã. Até o seu apelido do Grupo
de Traidores, Cigano, tem um ar de dupla
esperteza. Mas para a sua pessoa, e para os seus, foi um triste fiasco. Fernando
Lano nasceu em 1946 e era filho de gente da terra. Desde muito novo o pai
decidiu e pô-lo a trabalhar, e aos catorze anos, foi para caixeiro-viajante.
Ali, em Penafiel, tornou-se amigo de um rapaz chamado Peixoto, que queria ser
empresário de vestuário. Lano foi também apanhado pelo bicho da roupa. Num
arraial da terra, Lano aceitou vender na feira e concluiu que preferia a rua ao
parado. Aos vinte e três anos, depois de concluir o serviço militar no
Ultramar, estreou-se como vendedor ambulante por conta própria pelas aldeias, e
teve grandes vendas, o suficiente para decidir que vender trapos seria o seu
destino. Tornou-se «um vendedor de trapos de ocasiões», uma espécie de ambulante
de letra, do tipo que vende de porta em porta — embora o seu artigo fosse
exclusivamente de baixo preço. Foi de arromba, quando adquiriu uma carrinha de
caixa alta que correu o país, e utilizava-a como a sua — vitrina —, no expositor principal. Porém, a boémia estava-lhe nas veias,
e quando andava em viagem ganhou o hábito de visitar os bares para tentar saber
se alguma das raparigas mais novas gostaria de comprar umas roupitas novas. Numa
altura chegou mesmo a meter uma jovem de dezassete anos na vitrina, ajudando-a a vestir um curto vestido numa noite calorenta;
deu-lhe uns roços de marmelada; empurrou-a para cima das roupas e, como
resultado da excitação, «emporcalhou» as calças. Segundo a jovem,
«emporcalhou-se por duas ou três vezes». Por volta dos trinta e dois anos
decidiu tomar conta de um café e, com a ajuda da mulher e dos filhos, conseguiu
ganhar um sustento para os seus. Embora estivesse a maior parte do tempo fora
de Penafiel, regressava só aos fins-de-semana, para pôr a sua escrita em dia. Em
1983, foi visitar a zona de Trás-os-Montes. Sob a apresentação do empresário
Peixoto, a quem uniu em batizado ao filho mais velho, foi-lhe concedido um
grande lote de roupas, à conta consignação, o que era uma excelente
oportunidade para ver o seu lucro subir mais de cento e cinquenta contos por mês
—, subindo mais tarde, para trezentos contos, o que era uma excelente quantia. Em
1985, (Ao seu primeiro fornecedor só tinha pago uma terça parte do seu
crédito.) Pôde envolver-se com uma bonita transmontana que conhecera no bar e
com quem esteve comprometido durante dois anos. No decurso de três anos
seguintes, presenteou-a com umas boas fajardices. Mas ela não o deixou em
sossego, e deu-lhe água pela barba. Teve mesmo de cavar. Em breve, passou a fazer
viagens mais longas, vendia para raparigas da má fama, e alargou o seu leque de
amizades. Era extremamente vivaço e atraía as donas das casas de massagens.
Tornou-se depois conhecido por o «cigano-dos-trapos», começando a visitar os cotés das prostitutas. Ratazana, barman, de O Bar do Traidor, que o
conheceu, consta que só não comia aquelas que evitavam cruzar o seu caminho,
que não queriam ir à vitrina para uma
prova de trapos, embora também fosse corrido por muitas delas. Durante a fase
áurea das suas vendas, fez-se passar por empresário e até estilista,
tornando-se conhecido pela sua grande lata ao engatar raparigas de bares e
organizar grandes farras, em horas pouco oportunas. É verdade que sentia enorme
gozo em usar a sua experiência, e quando as donas de casas das massagens
levantavam a voz, mandava-lhes bater a bola baixa, recorrendo às companhias que
o rodeavam. Durante a festa de S. Martinho, em Penafiel, fugiu à polícia numa
rusga a um bordel, montado num jerico. Quando voltou a casa depois da festa de
S. Martinho, ficou contrariado ao encontrar o proprietário do café para novo
contrato de arrendamento — disse mais tarde a alguém que era um negócio de
tostões e de livro aberto. Foi o fim da exploração do café. Uma tarde, já
tardinha, em Outubro de 1988, encontrava-se Lano na Rua de António Cândido,
quando viu um táxi parar à porta do bar e uma rapariga de belas curvas,
modestamente vestida, que parecia vir ao seu encontro. Perguntou-lhe se não se
tinha enganado na pessoa e ela disse que vinha de mando do barman do bar, substituindo uma amiga sua. Lano nem esperou por
mais. Enfiou-a na carrinha e foram para longe, para uma pensão próximo da praia
de Lavadores. O nome da rapariga era uma
tal Paula, de dezoito anos; tinha acabado de tornar-se prostituta, mas não
era ainda muito badalada. Passou a ser uma das preferidas de Lano; este
arranjou-lhe umas roupitas leves e vistosas e tentou arranjar-lhe uns amigos da
onça. Paula foi uma das muitas de uma longa lista de raparigas jovens que Lano
ajudou a «entrar pra vitrina».
Durante os próximos anos seguintes (admitiu mesmo, mais tarde, que anualmente
levou para a cama mais de cento e vinte a duzentas raparigas. O método ideal do
vendedor de trapos consistia em aproximar-se de uma rapariga num bar — eram
conhecidas por «mamonas» e dizer-lhe
que parecia tão mal vestida e se fosse com ele à sua vitrina e fosse grata, lhe daria uma roupa nova. Tornou-se figura
ingrata de algumas casas e foi ameaçado por algumas raparigas que queriam
cobrar o serviço. O seu maior triunfo era, sem favor, parecer ter uma grande argumentação.
Era uma homem de estatura média, de tez morena e cabelos brancos, com uma voz
grossa e modos saloios e um grande repertório. Parecia uma figura de vigário.
As raparigas sentiam normalmente que não havia nenhum problema em ir para a mesa
tomar uma bebida com ele; além disso, podia, conforme queria fazê-las subir ao
quarto. Um caso bizarro destas relações foi a que manteve com uma atraente
rapariga branca chamava Brigite, de trinta e quatro anos. Em 1989, em Valongo,
quando Brigite ia a sair do táxi, foi contra Lano, que ainda teve tempo de lhe
dirigir estas palavras: «Desculpe, menina, mas já alguém lhe disse que é boa a
dar encontrões na rua às pessoas, quase me estatelava?» Brigite trabalhava num
apartamento de uma amiga e passava os dias a atender chamadas de clientes para
uma massagem erótica. Sem hesitações, aceitou ir com o homenzinho de olho vivo
até ao café mais próximo da esquina; onde o ouviu, atraída, enquanto ele a elogiava
e lhe dizia que com os seus vestidos devia ficar muito mais jovem. Brigite não
tinha homem e estava a viver com a mãe numa velha casa, em Rio Tinto. Estivera
casada quinze anos com um serralheiro que lhe pôs a vida num molho — o
serralheiro foi parar a Custóias. Esteve a trabalhar em cabarés, e mais tarde,
em bares até cair na prostituição, quando Lano a conheceu. Este deu-lhe alguns conjuntos
do mostruário, levou-lhe lá uns amigos dos copos — embora ela preferisse fazê-los
através das chamadas. Segundo Brigite, Lano montava-a sempre que ela estava
sozinha, e punha-lhe as mãos «por tudo que abanava». Numa ocasião em que estava
sem cheta e sem trabalho, Lano disse-lhe que podia ir para casa de uma amiga
aviar, perto do bairro, enquanto não arranjasse melhor. Mas uma semana depois
arranjou-lhe um velho rico, dizendo que podia ser o seu Messias. Nessa noite
foi com o velho rico aos fados e dormiu com ele. Depois mudou-se para casa dele,
sujeitando-se a ficar por sua conta, até que por fim entrou em rutura por se
cansar dos abusos dele, e pôs fim à ligação. Por meados dos anos 90, os hábitos
de Lano começaram a criar-lhe dificuldades. Em primeiro lugar, conheceu um
membro destacado de O Grupo de Traidores, um tipo apelidado de Champalimão, a quem as mulheres da noite
afirmavam ser o-rei-das-notas. Lano entrou no circuito das amizades de Champalimão e, falou-lhe nos seus
esquemas fatelas. Apresentou-o a outras bonitonas de categoria, e fez os
possíveis, para elas o convencerem a sair com ele. Algumas sacaram uma porrada
de dinheiro. Lano aproveitou-se da confiança dos amigos de Champalimão e começou a pedir empréstimos de dinheiro, com prazos
definidos e, antes que fosse tarde, pirou-se para lestes, ficando tudo a berrar. Um terço da vida foi destinado a
fugir dos seus credores. A sua família estava sempre longe das suas manobras e,
ninguém conseguiu saber da sua morada. Lano era um cravador nato, que lixava os
amigos frequentemente com os seus pedidos de empréstimos sem retorno. Mas
embora os amigos soubessem do tipo de Lano por mulheres da vida — nunca tiveram
a mais pequena dúvida de que era unicamente um interesse de mulherio. Passava a
maior parte das tardes, ora na companhia dos amigos dos copos, ora na companhia
das senhoras donas das casas de passe — embora estas incluíssem as próprias
estrelas da companhia. É evidente que parecia não fazer segredo das suas
atividades mundanas. Em Outubro, desse mesmo ano, Lano foi interveniente de um
caso polémico. O ex. industrial de madeiras de nome Faria negociou com Lano a
venda de um lote de variadas roupas e tecidos por setecentos e cinquenta contos
a olho nu. A seguir recebeu um cheque pré-datado, e como era de esperar, o
cheque foi parar ao Infante. Faria
considerou este ato como uma «vigarice» e apresentou queixa contra Lano, ao chefe
da esquadra local. Este processo arrastou-se por meses sem fio, entoando as
promessas «dê-me só mais um mês» e, por aí adiante. Tinha tanta tendência para
contar fita americana e os seus filmes e argumentos eram prejudiciais para o
seu caso. Ora acontece que Faria estava revoltado em relação à vigarice de
Lano, e por tralhas e malhas, conseguiu saber a morada de Lano e, deu ordem ao
Tribunal para avançar com o arresto aos bens de Lano. Por isso, quando a guarda
bateu à porta, a primeira reação de Lano foi dizer que tudo o que estava na sua
casa já não lhe pertencia, por que fora vendido a terceiros, conforme
documentação vista. Depois, falou mais calmamente no caso, e disse que não
havia nenhuma necessidade de lhe criar escândalo diante da vizinhança, e decidiu
que passava novo cheque e, que desta vez, é que era para valer. Faria encarou
esta hipótese como uma possibilidade de reaver o seu dinheiro, dizendo-lhe que,
se o cheque voltasse a vir para trás, jamais lhe perdoaria, e cancelou o
arresto. Como resultado, no mês seguinte, quando Faria chegou ao banco com a
intenção de levantar o cheque, ficou em pólvora ao ver o empregado bancário
anunciar-lhe: «cliente com conta em zero». A partir desse momento, Lano foi
notícia na primeira página do pasquim O
Jornal Dos Traidores, e davam alvíssaras para localizarem o seu paradeiro. O
caso de um vendedor de trapos mulherengo, levando para a cama, sem cerimónia,
empregadas de sala e bar animou as hostes lordescas.
Pela primeira vez desde que se tinha ausentado por um invariável tempo, Lano
foi abordado por uma senhora ligada à moda, que em tempos Ratazana lhe tinha
proporcionado um esquema «cinematográfico». Chamava-se Paula e era uma
quarentona de levantar o cabelo. Contou a um pequeno grupo de amigas como Lano
a conhecera, à entrada da sua loja, dizendo-lhe que parecia uma «Vénus da
Moda». Continuou a revelar como é que Lano teve talento para a levar para a
cama e como tinha «aliviado os dois» na forma de fazer amor. Acontece que Paula
havia tido tantos flirtes que não seria correto classificá-la como uma pega. Contudo,
pelo seu conto notava-se que era sexualmente quente. Depois de Paula, houve uma
quantidade de empregadas de bar que confirmaram que Lano as tinha «assediado».
Parece que convidou a maior parte delas para fazer uma rapidinha na pensão, e
muitas foram. Todavia, o exemplo mais incrível da imaginação de Lano para se beneficiar
a si mesmo aconteceu no fim de Outono. Parece que uma anã, artista das
artes-rápidas, chamada Tânia tinha uma inclinação especial por Lano e, numa ida
à cama com ele, contou que recebera um cheque de cinco contos ao seu cuidado
pelo serviço prestado. Lano tinha também pedido a Tânia que levantasse o cheque
da parte de tarde. No dia seguinte de tarde, Tânia e outras duas raparigas foram
ao banco onde um empregado lhe chamou a atenção e, fê-la olhar bem para o papel,
pedindo-lhe para o ler bem. Tânia olhou, apalermada, sem acreditar, e disse que
tinha sido vigarizada e gozada. Depois afirmou francamente não conhecer o
significado da palavra «requisição». O cabeçalho do pasquim do bar anunciava:
«Bomba de requisição passada como cheque». Quem pensasse por momentos no caso deveria
ter reparado que Lano tinha uma imaginação inacreditável para falsidades. Depois
de uma certa polémica envolvida, Lano desapareceu do mercado por um mês, para dar
tempo ao abafamento do caso. Lano continuou a fazer das suas, dizendo com
sorrisos que o Governo era amigo dos infratores. Quinze dias depois de andar
por lá apareceu num espetáculo de striptease numa terriola do interior, e
interrompeu o espetáculo com a afirmação de que era o Público que estava a ser
enganado e não a artista. Privado do seu habitat corrente, Lano decidiu aceitar
o convite do seu amigo Anão, o «Rei da Mobília-Feita», para levar os seus trapos
à feira na Madeira. Ele e Anão entrarem em sintonia, porque eram os parceiros
ideais para as suas atividades. Durante a noite, numa visita aos botequins do
Funchal, Lano aproximou-se de duas prostitutas e disse-lhes que estava à
procura de duas jovens para modelos das suas roupas numa passarela de moda no
Continente, e ofereceu-lhes saias e t-shirts para se submeterem a provas de
estilo. Marcaram encontro com elas para o quarto do hotel, mas quando quiseram
aproveitar-se delas, os gritos eram tantos, que tiveram que fugir, antes que a
polícia aparecesse. A sua presença como dançarino de rumba à moda «Cantinflas»
aumentava a sua popularidade sempre que frequentava locais de dança. Quando o
dono de uma danceteria o convidou para um concurso de dança, foi anunciado como
«Senhor Rumba no seu rodopio». Foi uma oportunidade boa, visto que tinha gosto
pela dança. Depois de entrar na pista, com uma rapariga aparentemente folclore,
Lano ladeou a parceira e fê-la girar à sua volta. De repente, a parceira,
desequilibrou-se e bateu no varandim da frente, estatelando-se no chão. O
público soltou gargalhadas estrondosas. Então Lano pegou na parceira pelo
cabelo como um domador e começou a arrastá-la à volta da pista. Enquanto um
espectador tentava agarrar Lano pelo pescoço, o apresentador do concurso entrou
na pista e agarrou o espectador por um braço, tentando fazer com que este o
soltasse. O espectador largou o vendedor de trapos e o apresentador logo
imediatamente anunciou ao público, que aquele número de dança era uma réplica
do tango-apache. O apresentador parou o concurso e Lano foi levado para o
camarim. Conta-se que estava branco quando estava a ser puxado para fora da
pista e preferiu, com voz rouca: «Telefone para um táxi — ainda tenho tempo de
passar o resto da noite em grande». Contudo, estava mais ou menos fresco,
quando saiu da danceteria. Apurou-se mais tarde, que tinha fugido com a
parceira para parte incerta da ilha. Em O
Jornal Dos Traidores (1989), Abraão
cita o incorrigível de sempre de Lano, e estava convencido de que ele era um
caso típico «Múltipla aldrabice». Uma velha amiga de Lano comentava com toda a
certeza deste de que tinha sempre ideias: «Não vale a pena dizer a um burlista
que diz ser um pirilampo aceso, que não o é, porque ele há-de gastar o seu
latim e ultrapassar a sua capacidade de raciocínio». O sinal, no caso de Lano,
é a sua recusa em admitir, seja em que altura for, que em alguma vez não tem
ideias. A realidade é que provavelmente como a maior parte dos «aldrabões»,
Lano era também um auto-impostor e um mulherengo obsessivo — algumas das cerca
mil mulheres devem ter sido mais tolerância do que Tânia e companhia. «Fraterno amigo», uma das suas frases
mais significativas da amizade. Gozou uma vida do qual se empenhou firmemente a
levar. É a sua história que merece o nosso escrito.
O mais felizardo empresário portuense que surgiu desde
a Revolução de 1974 é, sem dúvida, José do Pataco, criado e vivido na cidade do
Porto, nos tempos da carqueja e dos candeeiros a petróleo nos lares. Como o
mais comum dos cidadãos, Pataco levou uma vida agitada — estudante, militar,
músico, vendedor e, depois, comerciante de artigos de escritório, lojista, autor,
representante de várias marcas mundiais e, por fim, garagista de carros
colecionáveis — depois de conseguir pensão da velhice aos 65 anos de idade, com
uma vida refeita de novo e totalmente organizada. O seu primeiro negócio a
sério, O Pataco, surgiu quando estava
na idade rapazote-homem, no Shopping Center Brasília. É interessante observar
que, nesta altura da abertura do centro comercial e do período que se segue, os
líderes das marcas consagradas são privilegiados mantendo-se nos lugares de
topo; ainda jovem, quando aprendeu a linha de orientação, Pataco mostra-se
integrado no sistema. A sua loja situava-se na galeria de cima em frente para a
portaria principal. Quando Pataco começou a trabalhar em O Pataco, dois anos depois, — e se tornou de repente um vencedor, —
os comerciantes ficaram espantados como é que alguém tão novo era capaz de
vencer tão convincentemente; recuperou finalmente muitas centenas de milhares
de contos investidos antes de o quarto ano findar. Diz-se geralmente que os
últimos anos do negócio são mais dolorosos que o primeiro. Catorze anos depois,
O Pataco (1995), foi vendido surpreendentemente
e, imediatamente surgiram novos rostos na loja e, depois de aparecer o primeiro
zunzum sobre o negócio, começaram a espalhar-se boatos nos meios citadinos do
Porto, que afirmavam que Pataco já não era o verdadeiro dono e que tinha fechado
um ciclo ou uma mudança no qual baseou a venda. Em 1995, O Jornal Dos Traidores, publicou um artigo escrito por alguns
amigos que anunciavam a «venda airosa». Confessavam alguns pagar-lhe uma
garrafa de champanhe. Entretanto, Pataco, cheio de papel, era procurado por
todos com propostas de futuros negócios. Em meados desse ano recebeu uma
herança. Por essa altura, Pataco tinha-se tornado proprietário de uma casa
chamada Laguna Bar, em Rio Tinto, um bar
destinado a um público jovem que era aliciante para a época, talvez pela
novidade perante o seu estilo, onde tem aos fins-de-semana o seu ponto mais
alto de assistência. Pataco foi forçado a trazer de casa, o órgão, e uma
quantidade de instrumentos para engrandecer o programa. O Karaoke foi-se aproximando numa rapariga de voz sufocante, que se
identifica simplesmente por «M», à qual também veio a fazer parte do serviço de
camareira às mesas. A maior parte das vezes, antes da abertura do bar, Pataco
chegava mais cedo para ensaiar «M». Pataco era um sedutor infalível que não
largava mão de «M» frequentemente com os seus piropos, embora no fundo do seu
coração, soubesse do seu interesse por raparigas solitárias — nunca tivera a
mais pequena dúvida de que aquela «M» preenchia o seu vago espírito. Segundo um
artigo do pasquim do bar revelava que Pataco era um sortudo em negócios e
amores. A sua vida conjugal teve várias nuances,
mas sempre conseguiu sair-se delas a bem. Nos fins dos anos 90 tinha conseguido
grande popularidade ao apresentar a sua banda musical chamada “Soprafestas”, e
foi convidado para atuar em festas, casamentos e clubes variados. Nos inícios
do ano milénio por afeto e ato a «M», com quem compartilhava a sua vida
conjugal, passava a maior parte do tempo na companhia dela — e depois de se ter
desligado do negócio do Laguna Bar, dedicou-se
totalmente à banda musical. Uns anos depois, Pataco encontrou inspiração
comercial ao envolver-se no negócio de uma garagem-oficina de carros antigos
destinados aos colecionadores. Quando se reformou, encontrou de qualquer forma
a sua tranquilidade, e na sua vivenda, usou como passatempo as redes sociais,
omitindo artigos politizados de sua autoria, para os amigos. Dedicou-se em
regime part-time a dirigir a sua
garagem-oficina de carros antigos, numa zona estreita e escondida do Porto.
Doze vezes, num ano, na Primavera de 1989, o «chivo»,
Eduardo Eduardinho, um fafense de 52 anos de origem capitalista, que vinha
gozar os prazeres mundanos à cidade, conseguiu evitar o rececionista da noite e
pessoal dos quartos e entrar na Residencial Xangô. Na segunda vez entrou no seu
quarto alugado com a moca e fechou-a com o trinco, deitando-se vestido.
Enquanto ressonava, uma prostituta entrou no quarto, sentou-se a um lado da
cama, tagarelando, durante cinco minutos, até ele acordar sobressaltado e
corrê-la pelo quarto fora. O seu primeiro escândalo às seis horas e quinze
minutos da noite de 3 de Novembro, foi bastante ruidosa. Calcou a terra
lamacenta que limita o terreno do parque automóvel para entrar na Xangô, «releu»
25 páginas da revista «Play Boy» antes de subir e espreitou para o portão,
quando viu chegar um Citroên2CV cavalos e abeirarem-se dele dois casais, que de
seguida, se envolveram no jogo da galheta. A mulher que estava à frente foi a
primeira a levar. Eduardinho, que estava encostado ao balcão a ler, nem pensou
duas vezes quando viu a mulher correr em sua direção. Puxou do seu pequeno
revólver de 9/m e disparou três tiros para o ar, intimidando os sujeitos, que
rastejavam através das sombras para entrar no carro. Uma vez lá dentro, puseram
o Citroên2CV cavalos a mexer, mas nessa altura, Eduardinho agarrou-se com força
titânica ao para-choques e o carro recuou... Entre arranques e recuos,
finalmente o carro arrancou e meteu-se no escuro, enquanto Eduardinho conseguiu
voltar para trás e ir para o seu quarto, sem ser incomodado. Na noite de 5 de
Novembro, bebeu (foi ele mesmo a admitir) sete ou oito aguardentes CRF, nas
visitas que fez aos bares mais conceituados da cidade. Da última vez entrou num
bar conhecido que, quando o barman o
viu, serviu-lhe logo uma CRF em copo de balão aquecido e, pagou com uma nota de
cinco contos — mas, por falta de trocos, o barman
devolveu-lhe a nota e Eduardinho pô-la em cima do balcão e saiu, com um até já. O que veio a seguir deve ter
sido um fiasco de todo o tamanho. Quase tão surpreendentemente, Eduardinho voltou
a entrar no bar e bebeu outra CRF. Uma vez lá dentro, andou por ali, parou ocasionalmente
para cumprimentar quem passava por ele e matutou nas contas que tinha efetuado
antes. Contou o dinheiro, e viu que lhe faltava uma nota de cinco contos. Nessa
altura, sentiu-se lesado e, por isso, foi ter com o barman tentando alertá-lo de que alguém ali dentro da sala, e
apontou um deles, por sinal, seu conhecido, que lhe teria sacado uma nota de
cinco: que também ele não tinha bem a certeza. Por isso, com invejável
à-vontade, começou a dizer que ia chamar a polícia para tentar detetar o gatuno.
O barman saiu do balcão apressado. Eduardinho
voltou a pedir-lhe o telefone para chamar a polícia, «a polícia, a polícia», como
gritou. «Muito bem», disse o assustado e inconformado barman. «Mas deixe que os clientes saiam primeiro, senão levo uma
multa por excesso de horário» —, e com uma grande habilidade foi esvaziando a
sala, até chegar a polícia. Depois de o barman
ter contado ao polícia o que aconteceu no bar, tinha descrito Eduardinho como
«muito perigoso para qualquer uma pessoa e para com quem não gostasse...», o
que foi interpretado como um sinal de aviso. O polícia aceitou a referência e
deixou o caso nas mãos do barman. Era
óbvio, que não se podia incriminar ninguém sem provas. Por sua vez, depois de
Eduardinho ter admitido não ter a certeza de quem lhe tinha roubado, entrou no
caminho das suposições e saiu pela porta fora. Meia hora depois, o barman fechou as contas do dia.
Sobravam-lhe cinco contos. Então, veio-lhe à cabeça, que não tinha dado o troco
da despesa da tarde a Eduardinho, nem este se tinha lembrado de o reclamar. O
escândalo do roubo da nota de cinco contos, que obviamente não existia, foi
comentado mais tarde por O Jornal Dos
Traidores, a 13 de Novembro, numa das maiores «broncas» do bar, afirmava
com grande destaque: «O barman esqueceu-se
do troco», e mais adiante: «Cliente quer prender um conhecido». Tempestade
estala sobre um copo de água. Como recebeu a nota de cinco contos que o barman se desculpou com o esquecimento e
foi-lha devolver ao quarto, Eduardinho disse: «Tinha andado por aí com tanto
dinheiro no bolso e não me lembrei de ter deixado uma nota àquele beleguim (barman). Quase prendia um inocente...
Eu podia ter dado um tiro em alguém ou até um murro... Passei por maus momentos».
As palavras de Eduardinho serviram para encerrar o caso, para dizer que não
voltava a acontecer.
Jorginho Amorim, talvez o mais extraordinário vendedor
de brindes do Norte, foi praticamente destruído pelo azar ao ser-lhe amputado
uma perna que aconteceu nos anos 2000. Amorim, era um homem aberto, mexido e de
palavra fácil que proferia conversas quentes e cheias de fanfarronices. Era considerado
no Arquipélago da Madeira com quem se associara a um partido local para vender
os seus artigos como um senhor tripeiro, e as pessoas madeirenses achavam-lhe
piada por ele ter uns calões próprios e dispor bem quem o quisesse ouvir. Amorim
nasceu no Porto e andava entre os cinquenta e três anos. Os ascendentes de
Amorim eram tripeiros. Frequentou a escola no Porto, entrando depois em
cantorias e vendas de material de escritório. Jovem ultra-brigão, convenceu-se
que as cantorias o iam levar longe. Aos dezoito anos seduziu uma boa série de
fãs com o seu romantismo à Nelson Ned, abandonando-as
de seguida. Depois disso, cumpriu a tropa e foi ao Ultramar, e, quando voltou,
afirmou, ficar sujeito a crises de depressão nervosa. Com vinte e três anos
deitou ao chão dois malandros que tentaram empurrá-lo para fora do bar e foi
expulso de lá voltar. Treze anos depois, tornou-se proprietário de uma firma de
brindes e outros artigos de papelaria. A ideia de entrar para o negócio dos
brindes parece ter sido tomada de repente e sem ninguém contar. Numa noite de
Outono, Amorim foi tomar um copo a um bar, no Porto; estava muito calado, contrariando
o que era habitual (normalmente era exuberante e palrador). A discussão ao
balcão voltou-se para os brindes e para as próximas novidades para a Páscoa e
Jorginho observou, de repente: «Carago, seria uma grande oportunidade para mim
apresentar o meu Cu de Judas para entrar para o Guiness!». Os clientes ficaram boquiabertos
com a sua saída, não porque não contassem com a sua malandrice, mas com o
Cu-de-Judas. A expressão «Cu-de-Judas» fora inventada ali mesmo. Quando um
cliente lhe pediu uma opinião sobre o Cu-de-Judas, Amorim respondeu com
arrogância que não tinha nada a «acrescentar». Um repórter dos maus-olhados do
pasquim do bar descreveu-o como «um tipo duríssimo e de luas, mas tão irremediavelmente
sabichão...», e acrescentou que parecia não ter nenhuma capacidade para a
conversa disciplinada. Aceitou uma proposta de um cliente-do-bar, de alcunha o
«Cigano», para um orçamento de uma encomenda para um milhar de t-shirts
ilustradas com publicidade. Amorim começou então a usar uma calculadora e pediu
cinquenta por cento do valor orçamental à vista, para raiva do cliente-do-bar,
que tentou alargar o prazo, mas Amorim não se deixou ir no filme. A sua frieza
e desdém impressionaram o cliente-do-bar; um dia depois interrompeu a
hipotética proposta, comentando de cabeça quente que nem ele nem iguais a ele
faziam negócios com ele. Esse facto fez de Amorim o herói do dia, pois
constava-se que se fizesse o negócio, iria receber ao Tota! Na década dos anos 90, Amorim sofreu o seu revés mais sério.
Quando uma mulher de cor estacionava no Pub Vip, Porto, uma sedutora
voluntariosa e alternadeira de passagem, e foram ambos atraídos por um bichinho
que se chama «atração sexual». Em breve, Amorim visitava regularmente o VIP e
os dois tornaram-se inseparáveis. Uma grande nassa monumental selou este acontecimento.
O escândalo foi enorme. Mas a atitude de Amorim para com a alternadeira
manteve-se desconfiada e ciumenta; houve uma vez em que se disfarçou de detetive
e escondeu-se num carro de um amigo. Este tipo de façanhas divertia-o, mas foi
ficando pouco a pouco cansado do seu ciúme e também de um certo tato. Depois de
uma ligação fortuita com a amante de um amigo dos copos — a quem decidiu
colocar a sua chancela — ele e Sónia foram para um lugar escondido e ela foi
recompensada. Gastou imenso dinheiro com as prostitutas. Foi destruindo a sua
saúde aos poucos nas viagens que fazia entre Porto e a Ilha da Madeira. Um dia,
o seu apetite foi aguçado por uma negrinha que havia poisado por curiosidade em
O Bar do Traidor, por indicação do chulo. Diz-se que Amorim afirmou ser uma das
mulheres com quem havia dormido. Por essa altura foi apresentado o romance
escrito por Abraão: «O Pasquim do Lord» e também uma curta-metragem dedicada a
ele, interpretada por Conde do Pincel e Ratazana, sob o título: «Um Gosto a
Cheirar ao Torrado», que obtivera uma crítica favorável. A curta-metragem foi
apresentada no YouTube. De volta à Madeira, Amorim foi profundamente abalado
com as crises do partido e a política na região. Fez mais tarde o seu
comentário no ambiente noturno, dizendo que qualquer dia, iria viver para o
Brasil, país onde tinha laços sentimentais com as mulheres que conhecera na
noite. Por volta da entrada do milénio a sua reputação era mais baixa que a
venda dos seus brindes decaiu, tendo um aspeto bonacheirão e avermelhado de
rosto que parecia um Pai Natal alcoólico, apreciador de uísque e amante da
noite. Por volta do Verão desse ano, Amorim analisava agora que era um homem só
e ansiava pela reforma. Travou conhecimento com um grupo de rapaziada jovem
para travar um pouco a solidão. Um ano depois, viu as análises no consultório
que detetavam uma grande subida dos diabetes e Amorim respondeu de forma
irritada: «Estou no fim de uma decadência». Ao sair do consultório, nesse dia,
Amorim ripostou: «Não tenho preferência a chegar a velho». Dois dias depois de
ir ao bar do desconhecido autor de contos deslumbrantes da noite conhecido por
Ratazana, confessou ter que abrandar o ritmo do álcool. Quando prometeu deixar
de beber não conseguiu: mas tinha tentado. Era um grande martírio para ele ser
excluído da bebida e do fumo. Esta é a história de Jorginho Amorim, tratada
provavelmente de maneira sentimental. Um amigo de Amorim, Ribeiro afirma que
estava presente no seu último encontro, que foi um almoço de convívio do Grupo
de Traidores — o que é provavelmente mais próximo da verdade. O que parece correto
é que Amorim não estava à espera de um prognóstico tão ruim. Parece ter ficado abalado
desde o dia que fora ao médico. Agora sentia um desalento total. É provável que
Amorim se tenha lembrado da mãe, aquém adorava mais do que tudo na vida. Meses
depois, de saber que tinha de ir à faca, Amorim escrevia no seu diário: «Não
consigo estar muito tempo a trabalhar sem pensar em mim, por isso vou-me
submeter à operação esta semana no Porto». Três dias depois, Amorim foi
internado no hospital e foi-lhe amputada uma perna.