FERNANDO ABRAÃO
E RATAZANA
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O
MUNDO
DA
NOITE
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A história do Grupo dos Traidores começa em 1983 quando
Fernando Abraão, hoteleiro, da cidade do Porto, deu este nome a um numeroso
grupo de clientes que frequentavam o seu bar não muito longe da Rua de Antero
de Quental, no Porto, para onde tinha decidido ir estabelecer-se depois de se
tornar empresário em nome individual. Mas se por Traidores entendermos o
negócio de meninas da rapidinha, é então discutível que a história dos
Traidores — e da pinadela — três anos
antes, no dia 3 Outubro de 1980, quando o padeiro Carlos engatou uma prostituta
menor de um bairro. Na tarde daquele dia, Carlos estava a trabalhar na sua
distribuição de pães, na baixa portuense, quando foi intercetado por um
«mãos-leves» que desejava discutir a dívida de três contos que Carlos tinha
para com uma prostituta chamada Malha Susana. Como forma de obrigar Carlos a
pagar a dívida, o «mãos-leves» insinuou que a prostituta Suzana sabia da morada
da padaria do Carlos e que o denunciaria à mulher, a menos que recebesse o seu
dinheiro. Carlos apressou-se a ir falar com a prostituta Suzana. Tinha motivos
para estar receoso, porque a sua mulher estava a quilómetros da vida boémia que
levava. O que a prostituta Suzana lhe falou enfureceu-o. O tal «mãos-leves»
tinha deixado a prostituta Suzana no quarto de uma pensão, para umas
brincadeiras de sexo, (não podia ultrapassar os quinze minutos) e a partir da
primeira cena de apalpões efetuosos entre ambos, podia deduzir-se que se
retardaram até não poderem mais. O padeiro Carlos estava no Dallas, longe da
padaria, mas o magricela e tísico «mãos-leves», um sacador de fraco estripe,
não estava muito longe dali, estava na casa do esfola de 5 de Outubro. Carlos
meteu-se na carrinha e foi até lá, onde o avistou e chamou por ele. «Mãos-leves» veio ao
seu encontro. «Aqui está o dinheiro que te devo, e o troco também», disse o
padeiro Carlos, e deu-lhe com a saca dos cacetes nas fuças. Naqueles tempos, no
Porto era vulgar haver extorsões e um homem que tivesse sido chantageado devido
a um caso de proxenetismo suscitava a simpatia geral. O «mãos-leves» apregoou
incapacidade física, indicando que Carlos lhe dera um bolo-rei como troco.
Ambos deram o caso por encerrado.
Um amigo de Abraão, Rufino M, teve um pequeno papel
importante, quando lhe apresentou duas quarentonas da vida fácil na sua
residencial. A partir daqui, Abraão desenvolveu um sistema para chamar clientes
ao bar, numa roda constante atrás de uns rabos de saias. O primeiro casal a
sair para uma rápida, levou Abraão a entrar no balcão, a abrir os braços e a
dizer «Até já, meus pombos. Espero que fiquem radiantes com o
amor-instantâneo». O amor-instantâneo era simplesmente um engate banal, ao qual
homem e mulher conversavam o que tinham a conversar, e depois, seguiam para o
cardenho de uma pensão. Mas quando o sistema foi lançado ao público em O Bar do Traidor, numa tarde de
Fevereiro de 1983, o seu criador, Abraão sabia que tinha dado um passo
importante no seu negócio. Comentou: «Sabia que os tinha apanhado quando vi os
desejos nos olhos dos clientes do bar». Abraão foi o primeiro a aproveitar na
totalidade este sistema revolucionário num bar de estilo inglês e uma decoração rústica, com a monta envidraçada para a rua
que deixava transparecer uma visibilidade pura, tal como os cafés parisienses.
Hoje em dia achamo-lo normal, porque desde há uns anos, estamos familiarizados
com a inovação e o modernismo. Abraão veio a Lisboa em 1982, a fim de fazer uma
visita aos bares da capital e estudar os seus funcionamentos. Sabia que os seus
métodos eram populares, porque rendiam dinheiro. Mas quando voltou para o
Porto, trazia na bagagem um monte de ideias. Cada vez que lançava uma ideia era
aplaudido e apreciado pelos clientes e amigos, e por um rancho de raparigas da
rapidinha, que adoravam trabalhar no seu método. Foi devido a esse facto que a
mulher da rapidinha se tornou como uma espécie de fruta apetecida, que o mais
pequeno sopro do chega aqui podia-se
transformar numa ida para o Muro dos Prazeres (residencial).
A primeira grande desgraça de O Bar do Traidor ocorreu
em 1981, quando chegou a notícia de que a encantadora e atraente Profe — como
ficou a ser tratada —, fugira da boémia e fora atrás de um homem casado dono de
uma churrascaria, no Porto. (contava ela dezoito anos e ele trinta e oito
anos). A sua história era a história clássica da aventura. Enquanto
adolescente, tinha-se pirado de casa dos seus pais, e de uma infância infeliz,
para ser estudante em horas vagas nos cafés. Depois recebeu um convite de um
bar para fazer permanência como «chamariz perfeito» alternando e aceitou. A
seguir, tornou-se uma das raparigas de Abraão, e mais tarde uma empregada de
boite. Amantizou-se com outro patrão da hotelaria, Toni «Qualquer-Coisa», um
homem pacato do tipo homem bom. Mas as relações entre ambos revelaram que Profe
já não era a encantadora atraente que frequentava a boite. Profe chegara à
noite antes do amante e os seus passeios incluíam bares de diversão mal
frequentados, muita bebida juntamente com elementos do submundo portuense. As
más bocas começaram a dizer coisas referindo que ela frequentava estes lugares
na tentativa de apanhar bebedeiras para se manifestar e acabou por se viciar.
Mais tarde ainda, as outras más bocas revelaram que ela própria tinha aderido à
bebida e ao fumo antes de se amantizar com Toni. As más bocas da última hora
anunciavam: «Profe, alcoólica». Os amigos da noite acreditavam que aquela
relação não era duradoira — Profe e Toni «Qualquer-Coisa» tinham acabado de se
separar para seguirem outros caminhos —, mas isto era esperado. Profe acabou
por sobreviver à desgraça, mas mudou radicalmente a sua vida.
A desgraça que se seguiu ainda foi maior. Em finais do
ano de 1980, a menor Rute, jovem camareira, morreu de um aborto mal feito
depois de ter sido tratada por uma parteira particular. O seu corpo estava
depositado no velório da igreja da Sé, no Porto, e só meia dúzia de pessoas
assistiram ao funeral. Tinha apenas dezassete anos.
O próprio Abraão teve a sorte de escapar a algumas
ratoeiras que se depararam pela frente. Quando veio para a chefia da Boite O Inferninho, em 1974 (com vinte e sete anos), a
sua vida sentimental tinha sido atribulada e sofria com a solidão. Tinha uma preferência
especial por mulheres mais jovens. Quando conheceu Fátima — preferia
dizer Fatia —, num dia de folga, contava esta dezasseis anos. Na noite seguinte
anunciou que tinha perdido a virgindade, o que forçou Abraão a querer levá-la à
farmácia para um teste, seguido do rompimento duas noites depois. (Abraão
desabafou a um amigo que a mulher não tinha «as aduelas no sítio».) Acusou-a de
inventora e ela acusou-o de crueldade — conceito que os seus amigos acharam
difícil ligar ao novato espertalhão da noite.
Em 1980, o imobiliário P. da Costa foi levar uma
mulher chamada Mónica, que conheceu pela primeira vez, a ver um apartamento que
esta pretendia alugar, na zona do Carvalhido, no Porto. Quando estava a
observar o apartamento, Mónica suspeitou nitidamente das intenções de Costa e
não tirava os olhos de cima dele. Três anos mais tarde, Mónica, no seu
comentário pessoal, revela: «Queria que eu fosse a sua amantezinha — e queria
que eu metesse a língua na sua boca. Sabia que ele estava pronto por me saltar
para cima...» A atitude de Costa a este acanhamento simulado foi preparar-se
para o assalto a ela, de calças em baixo. Mónica ficou completamente arrasada,
com as suas «maneiras bruscas» e gritou para ele acabar com aquilo. Ele
obedeceu prontamente. Na próxima vez, foi mais cavalheiro. Levou-a a ver outro
apartamento para alugar, mas mobilado e recheado com todos os eletrodomésticos,
na zona do bairro de Monsanto, no Porto. E a relação há muito esperada
aconteceu na cama. «O calor que parecia ardente aumentava, tornava-se cada vez
mais quente, e rapidamente puxou a persiana acima, e o ar ficou mais
respirável... A seguir, Costa deitou-se ao meu lado, excitando-me com beijos
ardentes e meigos nos ouvidos... e, de repente, tentou convencer-me a praticar — sexo anal — e, quando eu me recusei, ele
disse-me: «Relaxa-te amorzinho — todos os casais o experimentam». Depois senti
uma dor aguda a penetrar dentro de mim e no último segundo gritei, mas não
parei o ritmo. A dor cegou-me mais do que o calor do ambiente, e pedi-lhe num
murmúrio que dissesse: «Chama-me tua panelinha, chama-me! e entrei em loucura,
como se estivesse em êxtase, — e depois aceitei-o por completo». Costa detestava preservativos e, como resultado disso, a sua
amantezinha-panelinha engravidou. Tinha de assumir a paternidade ou então
concordar ambos num aborto. Costa e Mónica tentaram levar a coisa nas calmas, e
Mónica foi fazer um teste que confirmou a sua gravidez e que ia ter uma menina.
A ideia de ter uma menina quase o ia levando ao delírio, pois Costa era casado
e pai de três meninos. Consta que Costa disse aos amigos na festa de anos: «Bem
rapazes, isto é melhor do que a lotaria, mas ainda vamos ter que esperar». Costa começou a passar a maior parte do tempo a conviver com clientes da
boémia, enquanto Mónica e as suas meninas tomavam conta do bar. Dois meses
depois, Mónica abortou e Costa desfez-se em lágrimas de pranto. Os rumores
começaram a circular de boca em boca; continha pormenores das manobras de
Mónica, incluindo o simulado da gravidez, e por fim, um bocado de uma tripa de
porco comprada no talho, como amostra de um possível feto de criança. As bocas
tiraram o maior partido destas revelações. Houve alguém que comentou: «Mesmo os
palermas, que gramavam o Costa há meia dúzia de meses, preparam-se para fazer
abrir as goelas para se rirem dele». Um ano depois, enquanto Costa se debatia
com problemas intestinais, Mónica terminou a relação e proibiu-lhe a entrada na
sua casa.
Outra grande desgraça que se seguiu aconteceu antes de
P. da Costa ter sido lobrigado na
história do aborto com Mónica. Pê
Pinto, sócio de um club noturno e funcionário bancário, era o responsável por
um dos gabinetes com maior destaque no banco, o gabinete de câmbios. Em 1973,
tinha Pinto quarenta e um anos. Possuía o tipo de pessoa ideal para esse lugar,
magro e perspicaz. Parecia e falava como um típico fidalgo português. Uma tarde
de Março, Pinto saiu do banco e foi a casa por voltas das 3 e 30 da tarde e
encontrou a mulher deitada na cama, com outro homem. Nem um murmúrio saiu dos
seus lábios. Pinto bateu com a porta e mandou-se. Evitando o divórcio, Pinto e
a mulher representavam os mesmos papéis de casados, para defenderem a
integridade física de um filho menor às suas guardas, e fizeram um pacto de
cada um fazer a vida à sua maneira. Falava-se que para colmatar esse desgosto,
Pinto tivesse investido no negócio do club noturno, para
desanuviar a alma. Constava também que passava parte da noite em comezainas e
copos onde o pessoal da noite — ia cear depois do trabalho a restaurantes longe
da cidade. A noite fatídica na vida de Pinto aconteceu nove meses mais tarde,
quando o seu carro em andamento acelerado teve uma derrapagem e foi contra o
muro do mercado da feira, em Vila do Conde, e ali ficou. Era evidente que
acusava álcool. No funeral, a pequena capela do cemitério de Coimbrões estava
apinhada de gente, desde familiares, amigos e pessoal da noite, juntaram-se
para prestar a sua última homenagem. A mãe de Pinto, em estado de choque, não
autorizou que o pessoal da noite (principalmente mulheres) fosse despedir do
falecido. E mostrou a sua ira ao gritar para elas: «Não entreis aqui! Foi por
vossa culpa que o meu filho morreu!» Houve um silêncio tenebroso em volta da
capela. A cerimónia acabou pouco tempo depois; as pessoas afastaram-se
lentamente do cemitério.
As bocas dos clientes habituais aproveitaram todas as
oportunidades para incendiar os tarados e viciados de O Mundo da Noite;
continuaram a tirar partido dos casos de P. da Costa, mesmo depois de este ter
desaparecido do ambiente. Os patrões de O Mundo da Noite achavam que teriam de
fazer qualquer coisa urgentemente para mudar a imagem da capital do prazer.
Abraão foi na deixa e fundou um pasquim semanal intitulado O Jornal Dos Traidores, cuja primeira edição era aguardada com
enorme frenesim e, Abraão, que era um
ótimo contador de histórias com mais de uma dezena de livros publicados sobre
histórias de frequentadores da noite, aproveitou o seu bom humor para fazer
valer os seus dotes literários. O seu objetivo principal, consistia muito
simplesmente, em detetar desgraças dos clientes e das mulheres da noite — as
que eram tara-maníacas, as que eram dependentes de comprimidos, as que
partilhavam o homem com a amiga, e as que eram histéricas ou lésbicas. O
sucesso do pasquim foi tão grande que Abraão se podia dar ao luxo de ter
informadores por todo o lado a dar-lhe dicas para um artigo para as colunas das
fofoquices. As notícias chegavam às manadas. Abraão depressa compreendeu que a
maioria dos frequentadores preferiam saber das bisbilhotices dos outros,
ignorando as suas. E logo, uma das vítimas decidiu contestar o
jornal; depois de um artigo que se referia a umas brincadeiras de vibrador numa
banheira. Ana Cinzenta roubou O Jornal
Dos Traidores. Só havia uma
tiragem. Outras mulheres da noite seguiram-lhe o exemplo. Fifi fez um escabeche
e escondeu debaixo do sofá O Jornal Dos
Traidores por a ter acusado de pagar as despesas a um cliente da noite. Dois meses depois, na Residencial da
Xangô, Albertinho das Flores, ameaçou O
Jornal Dos Traidores por insinuar que tinha drogado uma acompanhante para
fazer amor com uma prostituta, jurando não mais voltar ao bar. Foram tantos os
clientes-traidores que apresentaram reclamações que Abraão decidiu mudar de
estratégia e deixar de publicar fotos das personagens. Depois de Abraão se ter
tornado o «rosto de O Mundo da Noite», foi escrevendo história sobre história,
a qual escrevia qualquer artigo capaz de provocar a fofoquice, mesmo em casa
alheia. Mas os casos escandalosos continuavam a aparecer. Abraão dizia às suas prostitutas
e colaboradoras que deviam limar a sua vida pessoal de modo a que qualquer
atitude «vergonhosa e suja» fosse evitada. Todavia, ele mesmo era conhecido por
se aproveitar de sua posição para ir para a cama com as colaboradoras, enquanto
as suas histórias malandras incluíam sempre um bacanal lordesco ou cenas que havia casais na mesma cama.
No mês em que O Bar do Traidor lançou o célebre
programa Shows em Vídeo — Julho de
1981 — O Mundo da Noite sofreu outro grande abalo, quando o seu novo empresário
Miro, se ressentiu da saúde e a mulher mandou-o para um hospital da cidade. O
empregado informou que este sofria de um esgotamento derivado a excesso de
trabalho, mas a mulher de Miro, preferiu dizer a verdade, admitindo que o
marido era viciado em comprimidos. Três anos antes de Miro se ter envolvido no
negócio, experimentara relações anais com camareiras; e usara comprimidos para
potenciar o pénis; tornou-se
dependente e acelerou o seu martírio ao tomar em excesso. Esteve numa cama
internado algum certo tempo, até à sua morte sofrida, ocorrida em anos 80.
Seguiram-se outras desgraças de comprimidos. Em 1982,
Cristina, a camareira chamada por Sarampo, era uma «tara-maníaca» por
comprimidos. Por doença, foi internada num sanatório por problemas pulmonares. Uma amiga fez
chegar a público que o internamento se deveu a uma dieta de magreza, mas em
breve, a verdade veio ao de cima.
Glória Caída, a rapariga do Cardinal Segundo sofreu um
«ataque epilético», quando o médico lhe tentou dar uma injeção, às três da
madrugada, e mandou uma cabeçada num funcionário da portaria do hospital.
Fugida da enfermaria, tomou a decisão de voltar à boite, mas foi impedida de
entrar pelo porteiro, e voltou a fazer distúrbios, desta vez com as autoridades.
Acabou por ser presa e mantida na prisão durante três dias, para verificarem se
ainda sofria de epilepsia. Na realidade, tinha passado, mas a detenção
abriu-lhe portas para outra carreira. Mais tarde, tirou um curso de serviços
auxiliares e empregou-se numa unidade hoteleira, em Novembro de 1981.
O Mundo da Noite dançava na corda bamba. O Porto
divertia-se com a entrada do fado e o apetite de bebidas alcoólicas, e os
frequentadores de casas de diversão, desejavam estar a par de tudo. O barzito
de Abraão queria «fofoquice», mas o frequentador exigia «prazer». Em 1976, um
jovem desconhecido, de nome Banda Miguel, chamou atenção como dançava o Pop-Music — fazia-o de forma a parecer
que estava a escalar muros, ou pronto a desaparecer no muro mais próximo. Na
sua dança seguinte, depois de ter ido ao quarto de banho, o brilho voluptuoso
dos seus olhos, quando entrou para a pista de dança, não deixou qualquer miúda
solta no sofá presa ao seu charme há muito cobiçado. Mas Miguel tinha uma vida
particular infeliz; as suas duas amorosas eram fufas — a primeira sacava-o para
dar à «mulher-macho», e a segunda só o deixava coisar, quando ele dava uma boa
palmada. Numa rusga policial, em que o apanharam a transportar droga numa mala
turística para Espanha, mergulhou-o na penumbra, apanhando doze anos de grelha,
mas não os conseguiu cumprir, morrendo de abatimento e também de um estômago
canceroso. Dezenas de miúdas choraram a sua morte a 13 de Setembro de 1981,
algumas até desmaiaram.
Clara do Foxtrot
de Miguel, que em 1982 se tornou numa esperança da entrada do fado, quando
apareceu como aprendiz no programa radiofónico O Fado Procura. A própria Clara nem acreditava nas suas
potencialidades. O seu nome foi badalado pela rádio quando gravou um original
de sua autoria. Corriam, na altura, uns versos seus que diziam:
Gostavas de
ir prá cama comigo
Ouvir os meus
versos ao teu ouvido?
Ou preferias
comigo pecar
Sobre outros
versos?
Não há dúvida de que era uma quadra demasiado
provocante. Depois de Gostavas de Pecar
Comigo, Clara tornou-se a miúda «Pecar», o protótipo da «atrevida», a jovem
rapariga tola que andava de casa típica em casa típica, emborcando uísque e
dando gargalhadas sonoras. Para a gerência, o problema de Clara era um pouco
como as atitudes que desempenhava na vida particular. Foi acusada num processo de
divórcio, quando a mulher do seu dentista alegou que este achava necessário
tirar o sutiã e apalpar os seios a Clara antes de a tratar. Clara foi forçada a
mudar de dentista por alienar os sentimentos do dentista. Foi também amante de
Toni Violas, o homem que a lançou no fado. Chegou a referir-se-lhe como «Clara,
um problema-em-cada-hora». Houve caso para isso, quando estacionou num casino
em Espinho, jogando a roleta convencida de que aquele era o seu dia de sorte,
quando na verdade era o seu dia da desgraça. Acabou por ter de assinar um
cheque de 500 contos, sabendo que o cheque era «pró Infante». Na manhã seguinte, aconselhada por Toni
Violas, mandou reter o pagamento do cheque por dois dias, a fim de ir penhorar
as suas joias e outros valores, e foram recambiar o cheque. Toni Violas e Clara
precisaram de economizar em todas as extravagâncias possíveis durante alguns
meses depois do incidente. Alguns amigos que tomaram conhecimento da história
retratavam Clara como uma fraca jogadora, pintavam a sua manta de «coisinha
estrambólica». Depois, surgiu o aparecimento de novas vozes ao fado e a
carreira da Clara ofuscou mais profundamente; os seus admiradores curtiram-na
como o tipo de miúda filha de um deus menor e o som de uma pronúncia castiça do
Norte a sair daquela boquita convidativa como um foguete de ilusões, foi um
descalabro. O melhor estava guardado para o fim sob a forma de uma amiga chamada América Manca, uma solteirona
de 30 anos que se tornou sua amiga e dama de companhia durante dois anos nas suas
idas ao casino. Um cinquentenário apresentável, secretário de embaixada em
Gibraltar, chamado Gomez del Noche, apaixonou-se rapidamente por Clara e
começou a querer saber alguns detalhes íntimos a respeito de Clara. Levada pelo
ciúme, a solteirona Manca tentou aproveitar-se da ocasião e pediu ao espanhol
duzentos e cinquenta contos em troca de confidências relacionadas com Clara.
Como o espanhol não estivesse interessado, Manca tentou enveredar pelo caminho
da sedução. Quando viu as suas intenções goradas, vingou-se, dizendo uma série
de casos sobre a vida sentimental de Clara e incluía revelações como de uma vez
Clara se entregou a toda uma equipa de empregados de mesa da noite. Como
resultado disso, a miúda «pecar» e Gomez Del Noche romperam a relação, e Clara
teve um esgotamento nervoso — o primeiro de muitos. Enrolou com o seu admirador
Neca Pedrinha, indo viver para um restaurante que ele explorava em Gondomar,
onde a abundância de molhos picantes nas comidas puxaram pela pinga que lhe
causaram gorduras a mais e outro esgotamento nervoso. Passou a maior parte do
tempo da sua vida em casas de saúde. A sua carreira de alternadeira terminou
aos vinte e oito anos.
A seguir ao seu apagamento, surgiu Luísa Rara, era dez
anos mais velha que Clara e a sua vida amorosa não era menos acanhada, embora
mais contida. Reaparecida em 1980, depois de uma ausência prolongada em França,
Rara foi apresentada aos noturnos como «a Madame Vamp» antes da reaparição. Em
1981, ao apresentar no palco do Lord com
a sua amiga Susana Bilontra, durante
a hora do jantar, um número de cabaré chamado Vuelven Las Camareiras, esteve
debaixo de olho de uma certa clientela, apaixonada pelo seu charme. Conseguiu
em seguida chamar a atenção com a sua pronúncia franciú, ao carregar nos erres.
No seu primeiro flirte, preferiu uma das suas frases clássicas — quando a
cozinheira diz: «Oh, mulher! Tiveste cinco dias na cama com um homem, a fazer o
quê?» responde (com a sua provocante voz sensual): «Oh, mulher! O que é que tu
achas que eu estava a fazer? A foder!» Tinha o prazer de elevar o sexo ao alto. Clientes e empregadas do bar exultavam
quando expressava: «... gosto de um homem que ao fim da primeira, esteja
preparado para a segunda». Depois de uma adaptação ao ambiente (1982) tornou-se
badalada pela forma como chamava o barman
Fernando «Ferrnand, Ferrnand!» Os seus clientes eram do melhor patamar que
havia no métier e levaram o Lord a um crescimento global. Mas as
insinuações incendiaram o bar e deram origem a uma maior quantidade de frases
como:
Rara: Gosto que homens bem cheirosos me
convidem a jantar.
Cliente: Na verdade, não sou bem-cheiroso.
Rara: Na verdade, também ainda não está
malcheiroso.
Quando o seu rompimento com Tito R. foi constado no
bar, um grupo de clientes à bica fez a sua manifestação com uma boca: «Sou o
próximo?» Tiveram de os calar. Para o flirt seguinte, o barman Fernando empurrou o separado Filipe (Também ele imigrante de
França), para pagar-lhe uma bebida na mesa. Mais tarde, no relacionamento com
Filipe perdeu, pelo menos, dois dos melhores clientes; o que a levou a
expressar: «Nem sempre se pode abranger o céu e a terra» e «Mais vale um homem
em casa do que dois na rua». Finalmente, obrigada a mudar de ares, devido ao
avanço da idade, e ao aparecimento de novos rostos, voltou às origens. Aos
quarenta e cinco anos, um flirt de esperança, que apareceu na hora H, esteve na
origem de arrumar as trouxas e fugiu pra terra. A desgraça provocada por Rara
passou-se toda no noturno. Era conhecida por amar homens músculos e engravatados,
mas era discreta em relação a eles.
A outra imagem de vamp de O Mundo da Noite, Suzana Bilontra, foi imposta a indiscrição
devido ao peso do cliente, Amadeu (apenas), comerciante de produção de
galináceos da «galinha maravilhosa», na aldeia, a Norte do Porto. Amadeu era um
parolo casado de falas mansas que tratava as mulheres como se fossem dulcineias
de um colégio de meninas desamparadas. Tinha-se perdido perdidamente de amores,
com todo o romantismo por Susana, constando que tentou divorciar-se quando a
conheceu. Em 1978, depois
da sua estreia em grande nas lides artísticas na boite-barco de Azurara, Amadeu
levou Susana ao seu apartamento privado e enquanto bebiam uísque junto à
janela, conversaram pormenorizadamente sobre investimentos. Mais tarde, Susana
contou ao seu patrão por que motivo gostava de Amadeu: «Paga uns champanhes e
dá a entender que sou uma mulher inteligente. É diferente dos outros e não fala
de sexo, sexo e só sexo». Dois meses depois, Amadeu e Susana tornaram-se símbolos
de O Mundo da Noite, a «morena irresistível». Chamou a atenção sobre si num
espetáculo Vuelven Las Camareiras,
com Luísa Rara, quando ambas dançavam o can-can; tornou-se famosa, em 1982,
quando foi cartaz no Lord. Os seus
vestidos exuberantes eram decotados e parecia-se como uma star e falava como uma amante de um sacador. Era, realmente,
inteligente e uma deliciosa companhia. Seis meses depois de aceitar uma
proposta de trabalho para Las Palmas, em meados de 1982, Amadeu arruinou-se com
o negócio dos galináceos, no seu enorme aviário, lá na aldeia. Desabafou um
comentário:
Infelizmente esta é a única forma de expressar o mal
que me vai na alma, a paixão da minha vida.
Amadeu.