CONTOS
DE RATAZANA
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O Vendedor das feiras e os clientes que
o adoravam
Mário
foi um dos grandes vendedores de feiras dos anos 90. A sua imagem esteve ligada
a uma cigana que o incentivou para as vendas de tecidos e roupas para vendedor
de porta a porta. Em 1964, a cigana, convenceu-o a mudar-se para ir viver com
ela numa parte de casa onde vivia, nas Devesas. Fez questão que ele se
dedicasse ao ofício e deixasse de vagabundear. Mário prometeu a si mesmo seguir
essa via.
Mário
começou a carreira nas Devesas, Vila Nova de Gaia, em Abril de 1965, e era um
dos raros vendedores brancos que foi apelidado de «Cigano». Era um homem
atrevido, que falava alto, e teve uma preparação escolar mínima (mas ninguém o
batia em contas) até ir para a rua aos vinte e sete anos. Aos trinta e dois
anos, tornou-se vendedor de uma pequena banca na feira de Santana, Ponte da
Pedra, e começou a desenvolver o seu talento como vendedor de feiras. Era acima
de tudo um vendedor: preferia estar de pé ao lado de um furgão ou numa banca do
que num estabelecimento comercial; falava com uma tal variedade de gestos e expressões
faciais que as pessoas que o ouviam pensavam estar no circo. Numa ocasião vendeu
tão bem um corte de fioco que um
comprador ao ir buscar o fato na lavandaria pasmou e gritou: «Céus! Mingou!» No
que respeita ao seu aspeto físico, Mário não era nada um homem atraente: tinha
um rosto estreito, lábios finos e cabelos escassos. Mas os clientes da feira
achavam-no elétrico e as mulheres adoravam-no. Os seus métodos de trabalho
continuavam a ser os mais simples que mais rendiam; que «mais facilmente venderia
uma peça de roupa do que pregaria um botão numas calças.» Passados três anos,
as suas vendas atraíam uma clientela superior a quinhentas pessoas, e tinha o
maior espaço de feira do Norte de Portugal.
Em
1969, a simpática e popular cigana separou-se de Mário; após uns anos de vida
conjugal; tinha dado à luz um filho. Na altura da separação fez valer a Mário que
se desobrigasse da educação e sustento do filho um desejo que o surpreendeu.
Tinha tomado nos ombros esse encargo. Mário sentiu-se numa situação fácil. Depois
disso, deixou de aparecer na estação das Devesas e, não muito tempo depois,
alugou uma casa em S. Mamede de Infesta e trocou de carro, a vender as suas
novidades a novos fregueses. Isso foi muitos meses antes de ter criado amizade
com a empregada fabril, chamada Benilde. Quando Mário se fixou em S. Mamede de
Infesta, as suas vendas tinham atingido proporções fabulosas. Se alguém lhe
tivesse dito que a sua vida chegaria a esse ponto, ele não se acreditaria de
forma alguma. Em 1970, Mário envolveu-se a sério com a jovem empregada fabril,
de olhos risonhos, Benilde — mais nova um par de anos — a paixão entre eles foi
tão intensa que consumiram o amor antes do padre os ter unido pelo matrimónio.
Dois anos depois do casamento, Benilde presenteou-o com dois filhos.
Á
medida que os anos passavam, Mário foi mudando constantemente de local, e o
vendedor limitado, incansável, conquistador da sorte, tornou-se revolucionário
que defendia os vendedores e se manifestava contra os aumentos dos alugueis no
espaço das feiras. Por esta altura comprara o seu primeiro furgão, mas este
tornava-se um pouco espaçoso, que pensou comprar um camião. Insistia que o seu
segredo do negócio deveria ser respeitado — chamava-lhe «lábia de papagaio»
indo buscar a expressão à observação de aves. Durante mais de trinta anos,
Mário mantinha que, apesar de tudo, preferia a venda ao ar livre ao
estabelecimento e, com a ajuda da mulher, conseguiram obter uma conta bancária,
de fazer inveja a muita gente. Poucos anos depois, Mário mudou-se com a família
para uma moradia majestosa, estreada em primeira mão, e decorou-a com tudo o
que há de melhor. Depois disso, apareceram várias divergências entre o casal em
diversas ocasiões, na respetiva moradia ou nos «locais da feira.»
Mas
a delicada e formosa Benilde não era talhada para as casas grandes. Isso
começou a criar-lhe um estorvo. Mário tinha muito mais gozo em viver na casa independente
do que viver num andar com condomínio. Era evidente que tinha tanto gozo, que
Benilde começou a pegar-se com ele por tudo e por nada. A dificuldade de
Benilde tinha chegado ao limite. Logo a seguir, Mário viu uma oportunidade de
vender a moradia, e não esteve com meias medidas. Na altura própria tratou de
ver imóveis e decidiu-se pela compra de um amplo andar, situado no centro de S.
Mamede Infesta. Foram então morar para o amplo andar e a harmonia voltou entre
eles. Mas Mário tinha problemas com os filhos que apoiavam a mãe em todas as
situações. Daí que, as escaramuças entre eles não acabassem de vez. No Verão desse
ano, Benilde foi passar os dias quentes — como era seu hábito — a casa de sua
filha, na Vila da Feira. Mas na semana seguinte, atormentada pela consciência, voltou
a S. Mamede de Infesta e discutiu azedamente com Mário. Mário
ficou profundamente abatido, A sua reação inicial, compreensivelmente, foi
tentar «deitar água na fervura», mas a mulher antecedera a rejeição, exigindo a
separação e a divisão de partilhas. Na manhã seguinte ainda tinha a cabeça
confusa quando foi para o escritório do advogado. Admitiu mais tarde que o seu
maior desejo era encontrar um volte face para a mulher. Decidiu que «... ela
excedeu-se como acontece num momento de alarido. Acho que não é uma pessoa que
atue independentemente. Penso que quarenta e três anos de casamento pesam na
sua consciência. O melhor será dar tempo ao tempo...» Mário decidiu ainda que
não iria fazer a vida negra à mulher, não queria de maneira algum alvoroço, mas
que esperava que fosse a própria Benilde a reclamá-lo que tinha saudades dele.
De
regresso ao seu quarto de solteiro, em S. Mamede de Infesta, Mário sentiu uma
espécie de êxtase; nas três semanas seguintes «vagueei pelas ruas, mal
reconhecendo o meu rosto nos espelhos das montras.» Então o silêncio venceu-o.
Tinha de contar a alguém. Numa tarde, um amigo de longa data — um homem chamado
Abraão — encontrou-o numa tabacaria e Mário levou-o a um café próximo e teve um
desabafo sobre a «vida cruel» que lhe afetou o seu lar. Quando voltou a estar
com Abraão, no Centro Cultural da Centralidade, na sala a sós, confessou-lhe em
pormenor a situação real. Em seguida Mário teve uma recaída física e mental,
quando andou por aí a monte. Mais tarde referiu-se-lhe como «um problema de
solidão», e parece não haver dúvidas de que não se adaptava à vida de solteiro.
Ficou em estado de grande angústia. Os filhos não lhe falavam — passava a maior
parte do tempo no Centro Cultural da Centralidade, que se tornou o seu ponto de
encontro — e num dia Mário foi ao Jardim de Arca d´Água e conversou com Abraão
no banco do jardim, até chegar o autocarro, que o levou a casa. Mário foi então
reunir-se com o advogado, que preparava os documentos para as partilhas,
ficando ele com uma parte substancial de dinheiro (45.ooo€) e ela com o amplo
andar. Seguiram-se idas e voltas de um lado para o outro, entre Mário e Abraão
que, apesar de tudo, não o deixava de o influenciar para tentar a todo o custo
a reconciliação.
A
15 de Abril de 2011, Benilde mandou-lhe uma mensagem, pedindo-lhe que a viesse
ver. Mário tinha nessa altura sido contatado pelo advogado sobre as datas para
o reembolso da partilha, mas pediu para deixar o assunto para outro dia. Tinha
ansiedade de rever o «amor da sua vida», e apressou-se a ir ter com ela.
Achou-a mais formosa, no início da conversa, que parecia mais corpulenta do que
estava à espera — mesmo quando lhe mostrou os sorrisos todos. Em breve se
mostraram bem-humorados — de facto, Benilde havia-lhe proposto que quando Mário
quisesse, podia voltar lá para casa. Sem dúvida que Mário disse a si próprio
que tentava unicamente evitar a separação e preservar o amor de Benilde. Mas
quando Benilde se recusou deixar Mário ir dormir para à sua cama e enviá-lo
para o sofá, Mário entrou no buraco.
Uma
semana depois, Benilde foi passar uns dias de férias para casa da filha, e
pediu repouso absoluto. Ficou furiosa quando Mário recusou aceitar a sua oferta
e, em vez disso pediu ao advogado que andasse com o processo para a frente. Benilde
ficava cada vez mais aborrecida e chateada. E, finalmente, fez o que Mário
sempre temeu acontecer; descarregou todo o tipo de conversa, com o respetivo
«calão». O resultado foi tão dramático como tinha esperado. Agora tudo voltava
à estaca zero. Mário passava parte do tempo nas conversas com o advogado e o
mesmo fazia a sua rabugenta, Benilde. Mário defendeu a sua posição de que
nunca, em tempo algum, tinha sido mau ou violento para a mulher, mas
reconhecia-se culpado em permitir que o filho o não gramasse até por parte da
filha. Seis
meses mais tarde, a reunião conjugal Benilde-Mário começou às duas da tarde, e
demorou menos de uma hora. (com base em nova reconciliação) Todos os amigos
mais próximos queriam saber se Benilde era fiel e Mário um conflituoso. Mário
que desde sempre tinha estado mais ou menos ao lado de Benilde (pelo menos ao
tentar evitar o descasamento), ficou agora a roer de indignação. O próprio clã
do Mário aumentou-lhe os problemas ao insistir na desunião do cônjuge. Mário
ficou a ferro e fogo com os filhos. Os
advogados deliberaram durante oito dias, mas foram incapazes de conseguir um
consenso total. No entanto, as reuniões ainda não tinham acabado. Mário acusou
Benilde dela não querer ir ao registo pôr a assinatura no papel. Depois,
Mário exigiu que a partilha fosse liquidada, ou por troca, a reconciliação
assinada. Benilde acabou por aceitar o ultimato como um bem menor, e Mário saiu
da reunião conjugal como um homem feliz. Mário correu à morada antiga buscar as
suas roupas e coisas do uso pessoal para a sua nova residência. Quando se fixou
de vez, dois meses mais tarde (em Junho de 2012), o seu andar retardado de
monge era agora o andar dum maratonista.
Lançando
um olhar retrospetivo, é fácil concordar com Abraão que escreveu no seu blogue:
«As desavenças deixaram feridas nas pessoas e, desde então, tem vindo a deixar,
mas poucos chegaram ao ponto a que chegaram Benilde e Mário.»