Wednesday, April 25, 2012



CONTOS DE RATAZANA
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12. Episódio



      Eis como os amigos do Pipocas contribuíram para premiar o feito de Artur Bófia e, como, o Faísca achou por bem colaborar na despesa, acabando o seu cão por ter uma visão do outro mundo




Todos os dias, o Faísca guiava o carrito de pedais cheio de bugigangas, pelas ruas em frente, e enfiava-se no jardim. Encostava-o junto a uma árvore e abria-lhe a porta com um alfinete. Em seguida, deixava o material à venda, pois, como toda a gente sabe, as pessoas metidas no jardim tornam-se muito mais solidárias. Só no fim da tarde voltava para casa. De uma bolsa que trazia presa ao braço, tirava os vinte e cinco escudos que apurara nesse dia e depositava-as na lata da graxa, as novas moedas. Este vício durava há muito tempo. Depois, na companhia do cão, sentava-se numa cadeira e das sacas repartia duas refeições. O esconderijo do dinheiro do Faísca tornara-se o centro emblemático da concórdia, e o ponto de confiança do qual girava a amizade. Os amigos estavam esquecidos do dinheiro, esquecidos de nunca lhe terem deitado a mão. É uma bonita coisa um homem saber que respeitam ele. No espirito dos amigos esse dinheiro há muito deixara de ser uma obsessão. É verdade que, durante um certo período, os amigos tinham imaginado com a quantidade de moedas que ele devia ter arrecadado, mas com o tempo, deixaram de considera-las importante. O dinheiro era ganho pelo suor e sacrifício e esse potencial dom era propriedade do Faísca. É muito pior roubar um pobreta do que se permitir desfraldar a lei.

Uma manhã, trazida por aquela rápida boca de um motorista de camião que ninguém duvida, chegou a notícia de que uma camioneta de coelhos tinha ido por uma ribanceira abaixo próximo de Baião. Artur Bófia estava ocupado em assuntos seus, mas o Pipocas, Pascácio, Catanada, Pascácio, Very nice, o Faísca e o cão puseram-se alegremente a caminho pelo monte acima, pois se havia coisa de que adorassem era de andar no monte à caça de coelhos aos saltos. Achavam esse desafio o mais excitante do mundo. Chegaram um pouco tardio ao local, mas recuperaram o tempo perdido. Percorreram o monte durante parte da manhã; no fim, apanharam uma boa quantidade de coelhos; um latão de comida, diversos caixotes partidos, meia dúzia de garrafões de água, uma corrente para prender à carroçaria e um atado de tronchudas. Quando a tarde rompeu, tinham à sua conta um achado muito razoável. Por um casal de coelhos aceitaram dez escudos dados por um dos presentes, pois a hipótese de fazerem algum dinheiro com alguns daqueles bichos era simplesmente pensável. Depois, exaustos, mas levando na alma o bom cumprimento da missão, iniciaram o caminho de volta para o Marco de Canaveses através do monte. Passava das seis da tarde quando entraram pela casa do Pipocas seguidos pelo cão. Primeiramente, o Pipocas abriu o saco e sacudiu os bichos para dentro de um anexo. O grupo entrou no quintal. Pipocas meteu a mão dentro da camisa e tirou um cigarro para fumar. Arremessou o fumo para trás e depois voltou-se calmamente para os amigos; os olhos tinham-se-lhe tornado risonhos como os de um bebé. Olhou cara após cara e todos viram um sorriso e uma satisfação difíceis de enganar.

— Bem, malta... — disse o Pipocas num tom amigável. — Não foi nada mau. Há dias de estimar.

Lentamente, os amigos saíram do quintal e entraram para a sala. Pipocas, dirigiu-se aos anexos. Aí, pegou em dois pesados coelhos por debaixo das orelhas... e tac... deu-lhes uma troçada com a mão. Tirou a pele para trás, esticou-os ao comprido e retirou os enchidos e depois meteu-os numa bacia. Pascácio entrou na dispensa e trouxe um tacho com batatas. Very nice afiou as facas e pôs mãos à obra. O Faísca olhava-os perplexo. Na sala todos conversavam animadamente. O Faísca alongou o olhar para a rua.

— Ele? — perguntou.

Pipocas acenou rapidamente com a cabeça. O seu olhar era luminoso e acolhedor; o queixo inclinava-se-lhe para cima. Quando se sentou na cadeira, todo o seu corpo foi projetado por um impulso como o de uma rocha a poisar no solo. O Faísca dirigiu-se ao quintal e armou a mesa. Continuaram a conversar durante algum tempo. Ninguém despregava das cadeiras, mas uma onda de emoção sentida dominava a sala. Havia na sala uma sensação semelhante à de que uma rapariga experimentaria quando o rapaz está a pedi-la em casamento. A tarde acabava; o sol escondeu-se por detrás do monte. A população estava mergulhada numa autêntica acalmia. Dir-se-ia que os dez escudos que os coelhos tinham rendido pouco tempo aqueceram os bolsos do Pipocas; agora, porém, já tinham destino encomendado. Pipocas e Catanada foram ao mercado comprar dois quilos de batatas e cebolas, uma saca de pimentos e uma garrafa de azeite e outra de óleo. Pascácio e Very nice foram ao café buscar dois garrafões de vinho. Na rua ouviram-se os passos de Artur Bófia; os pratos foram postos com mais vigor. Artur Bófia aproximou-se caminhando pelo passeio e entrou pelo portão. Trazia na mão um jornal desportivo. O seu olhar passou de cara para cara com satisfação; os amigos, de imediato, deixaram de estar sentados e, logo o encararam diretamente.

— Olá — disse Artur Bófia.
— Olá — respondeu o Pipocas ao mesmo tempo que se espreguiçava e só depois se levantava fixando o olhar em Artur Bófia. Foi direito a ele e, quando se encontrou defronte dele, abriu os braços com a rapidez dum voador. O abraço foi em cheio que, Artur Bófia ficou redondamente sem fôlego.

Repentino, o Pipocas libertou as mãos dos ombros dele e, agarrando a mão de Artur Bófia, elevou-a ao ar.

— Palmas — disse.

Pascácio bateu com a colher na panela com tanta força que partiu a colher. Voltou a pegar noutra colher e desta vez bateu com menos força na panela e encarou sorridente os amigos. Os amigos levaram as mãos ao ar e fizerem um chinfrim danado. Very nice estava encarregado da cozinha. Catanada sentou-se à direita e o Pipocas à esquerda. Artur Bófia, desconfiado, olhava de lado e, então, gritou de surpresa:

— Estais-me a venerar? — berrou. — Pelo amor da nossa amizade, o que é que se passa?
— Quantas é que lhe destes? — indagou o Pipocas num desvio de voz.
— Duas no chão, e duas na cama. Eu escanei como um leão e volto lá outra vez.

Pipocas levantou-se e voltou a pedir uma salva de palmas. Os amigos bateram as mãos com o mesmo entusiasmo. As palmas tornaram-se mais fortes, e só pararam quando Artur Bófia pediu-lhes para cessar.

— Acho que agora passarás e ser cobiçado — disse o Pipocas.
— Devíamos levá-lo à Xanana Maluca — observou Catanada. — Há muito tempo que não a visitámos.

Abriram o garrafão que Pascácio trouxera e encheram as tijelas, pois estavam cansados do paleio e a emoção esgotava-se-lhes. Nessa noite, com o fogo a arder na lareira, os amigos encheram-se até não poderem mais. A comezaina era em honra de Artur Bófia. Este comportava-se como nunca. Embora ao primeiro fosse apanhado em contrapé, depois sorriu sem intervalo. Pascácio cobriu-lhe o prato de coelho estufado e batatas. Cada batata era do tamanho de um molete. Depois de terem ingerido uma grande dose de coelho acompanhado de uma salada de pimentos e cebolas, encostaram-se e puseram-se a fumar e a beberricar o vinho das tigelas. Chamavam a Artur Bófia «o nosso fodilhão.»

Depois foi a vez de ouvirem a história dos quatro coitos e os olhos deles vidraram-se.

— ...e depois, rapaziada — disse Artur Bófia —, a tiazinha tinha o nariz empinado, e os seus olhos faziam lembrar o brilho das gatas quando se apanham com o cio e ela gemia porque tinha calores lá por dentro. E depois, rapaziada, prometi à tiazinha que lhe dava uma por cada estação do ano. Ela é mesmo tarada, podem crer, rapaziada. E depois chegou-se ao Sul! A tiazinha fechou o rabo e começou logo a dormir. Foi S. Pedro que foi o causador, não foi, rapaziada?    

Os amigos manearam a cabeça com força.

— Foi — respondeu Catanada. — Foi a chuva do nosso bom amigo S. Pedro. Eu só queria lá ter estado no teu lugar.

Artur Bófia ficou muito contente, pois não era caso para menos ver-se naquela situação por um acontecimento fenomenal. Se o caso começasse a constar-se, Artur Bófia passaria a ser uma atração para as mulheres do Marco de Canaveses. Depois, cantaram uma cantiga em estilo coral e, galvanizados, voltaram a cantá-la.

— Faísca — exclamou o Pipocas —, já todos entramos para as despesas! Já não temos mais dinheiro! Chegou a altura de comprares dois garrafões de vinho para a malta!

O dia fora demasiado cansativo para o Faísca. Retirou-se com o cão e foi a casa. Pegou num monte de moedas antes de fechar a lata e pensou nos seus novos amigos com uma generosidade que parecia desmentir o caso de que há cerca de dois anos não gastava uma moeda mal gasta. Regressou como um cavaleiro andante a casa do Pipocas, trazendo os bolsos atestados de moedas. Pipocas pôs o dinheiro debaixo de um armário. Os seus amigos olharam para as moedas com surpresa.

— Mas pró que é que te deu trazeres tantas moedas? — perguntou o Pipocas, abismado. — Bastavam duas para comprares os garrafões de vinho. Temos que guardar as restantes para a próxima vez.

Voltaram a cantar uma canção obscena acompanha pelos urros do cão. O Faísca sentiu que praticara uma boa ação. Os seus amigos estavam satisfeitos por lhe verem trazer as moedas, pois, assim, até eles partilhavam um pouco da generosidade do gesto. Catanada sentia-se aliviado por não lhe ter deitado a mão ao dinheiro logo ao início. Que terrível coisa não poderia ter acontecido se tivesse rapado umas moedas que pertencia a um pobre diabo! Todos os amigos se mostravam dominados como se estivessem em família. Durante muito tempo a festa esteve animada. Artur Bófia redobrou as forças e soltou um berro, pois o álcool estava a fazer-lhe efeito na cabeça. Os amigos olharam-no com estupefação. Por fim, Very nice, esse amigo do amigo, desatou aos risos e deu-lhe um cigarro dos seus.

— Até os amantes do lugar invejam por um consolo — disse, animando-se.

Esta frase fez crescer o ânimo. Os amigos voltaram a cantar. Estavam entusiasmados. Se á coisas de que gostassem era de beber e de cantar. O histerismo do Faísca acabara. Bebia o vinho e o rosto iluminara-lhe de prazer ao ouvir as palavras que o Pipocas dizia.

— Se levarmos todos estes coelhos ao mercado, pensarão que os roubamos dalgum galinheiro numa quinta. Devemos é vendê-los nos particulares. Depois, cada um de nós trás o dinheiro para aqui, e guarda-se para as nossas patuscadas. Talvez, no domingo seja boa altura, o Faísca deve lá estar na igreja para tentar vender.  

Catanada olhou com desagrado para as roupas sujas e remendadas que o Faísca vestia.

— Domingo — disse com tom severo —, agarras nos coelhos que sobram e vais á igreja vendê-los. Mas deves levar roupa mais decente, senão pareces um rato do bueiro. Deixavas ficar mal os teus amigos.

O Faísca sorriu.

— Faço tudo o que vós dizeis — prometeu.
— Temos que lhe emprestar roupa — disse Very nice. — Eu tenho um casaco e um colete. Catanada empresta o chapéu que ficou do pai. Tu, Pipocas, tens muitas camisas e cedes-lhe uma e o Pascácio empresta as suas bonitas calças de bombazine vermelhas.  
— Mas não me borras as calças — protestou Pascácio.
— Também não me amasses o chapéu — replicou Catanada. — Os fiéis provavelmente não nos vão dar qualquer elogio.

 O Faísca estava embriagado de tanta felicidade devido às benesses que lhe prestavam.

— O meu Vigília viu uma cadela no largo do jardim — disse o Faísca. — Estava doudo, quase a babar-se, e eu próprio tive de gritar-lhe:

«Estou a ver que hoje te vou mandar capar. Meu rafeiro, cheio de tesão.»

— Há alturas em que os bichos andam com o cio — comentou o Pipocas. — Tive um jeco não muito entesuado, mas algumas vezes viu-o coçar o instrumento nas pernas das mesas. Dependia de como estava. Se estava com a tusa atirava-se às galinhas, coelhos, era um perigo, se não estava não se atirava a nada. Já alguma vez o levaste às cadelas, Faísca?
— Não — respondeu o Faísca. — Ficava com medo se visse os olhos dele.

Durante algum tempo a conversa gerou-se sobre o tema. Era desconcertante como nessa noite bebiam abertamente. Passaram três horas depois mesmo de esvaziarem a segunda série dos garrafões. Só bastante tarde os seus sentidos descambaram para o sono e alguns pareciam bebés de olhos fechados. Essa noite constituiu uma noite fantástica das suas vidas. No domingo de manhã os preparativos foram executados. Deixaram primeiro o Faísca, vestido como manda a sapatilha, calças de bombazine vermelhas, casaco e colete, na cabeça posto ao jeito amalandrado, o chapéu do pai de Catanada. Convenceram o Faísca a não levar a gravata estampada de um clube, de modo a que não criasse divergências com os fiéis doutras cores clubistas. Os sapatos é que continuaram a ser um obstáculo. Nenhuns sapatos dos seus amigos lhe eram suficiente compridos e largos para os pés do Faísca, sendo assim, não houve outro remédio se não, que o Faísca utilizasse os seus sapatos com dois buracos abertos por onde os calos podiam respirar melhor. Finalmente deixaram-no junto ao muro da igreja. Deu uns passos em roda com o corpo para os amigos o toparem. Estes comtemplaram-no, intimamente.

— Vende os coelhos, Faísca.
— Não os tragas de volta.
— Deixa de pedir muito.
— Quem te vir pensará que não estás habituado a vender coisa boa.

Por fim, o Faísca virou-se para os amigos.

— Se ao menos um de vocês pudesse ficar comigo — queixou-se. — Eu talvez tivesse mais arrojo.

Os amigos não cederam.

— Não — disse o Pipocas. — Eles têm que ir vender. A gente depois encontra-se lá em casa.

O Faísca saiu sorrateiramente através do caminho até chegar ao adro da igreja, na mão levava o saco com os coelhos e o cão seguia atrás. As portas do vaivém não se cansavam do abre e fecha, mas a missa ainda não tinha começado. O Faísca colocou-se debaixo da árvore, puxou o colarinho da camisa para baixo, pôs a saca com os coelhos junto da roseira e sentou-se. A igreja era bastante comprida e algumas vezes a população enchia a igreja para cumprirem as suas obrigações. Durante uns momentos, o Faísca ficou sentado a olhar para os fiéis, mas estes quase o ignoraram, tão habituados a vê-lo aos domingos com a roupa velha e o carrito a vender santinhos. O Faísca aguentou, enervado. E, embora os fiéis entrassem, os coelhos estivessem ensacados, a missa começava e o Faísca não queria tirar os coelhos do saco com medo que eles fugissem. Como era difícil depois apanhá-los! Falou a uns fiéis para ver se os coelhos lhe interessavam. Tinha esperança de que, um entre os fiéis, havia de se mostrar interessado em comprá-los. Nem que fosse apenas um. Em seguida, o padre começou o sermão. O Faísca ouvia-o contar a história do cão amigo do homem, que nunca abandona o dono, a história das formigas voadoras e das araras surdas. Maravilhado, o Faísca escutava-o fazendo carícias ao Vigília e vertendo lágrimas de emoção.

De repente, ouviu-se gritar e latir furiosamente. As portas abriram-se com estrondo e pela igreja dentro surgiram os coelhos, Vigília e o Faísca. Correram uns atrás dos outros, lançaram-se à porfia na direção dos bancos de madeira, e esgueiraram-se por baixo dos bancos, gemendo e soltando pequenos latidos. O Faísca ficou apavorado com os olhos à procura deles. E não esperou muito. Deitou-se sobre o chão, esticou-se totalmente para a frente, deixando descair a cabeça em busca dos coelhos. Foi nesse preciso momento que topou um coelho. Tinha ultrapassado os primeiros bancos e parara junto do canto do banco. Ergueu a cabeça para o escuro e ficou-se. O Faísca ficou em pulgas. Sentia os nervos subirem-lhe aos cabelos. Todo o seu fracasso, todos os seus ressentimentos se voltaram para o coelho. Com uma boa dose de calma, concentrou-se em ser mortífero.

— Ah, seu filho da... — pronunciou baixinho — pensas que estou trôpego? Já vais ver.

Devagarinho, muito devagarinho, arrastou-se como pôde, levou a mão até ao sapato, trazendo-o de volta. O seu olhar águia não descolava do coelho. Este encontrava-se na mesma posição. O Faísca pegou no sapato, pô-lo em posição de lance. Fez mira com um olho fechado a distância. Não podia falhar. Deixou deslizar o braço o máximo que pôde.

— Vou despachar este filho da... — declarou —, preparando o corpo para o lançamento final. O coelho continuava lá, com as orelhas viradas para baixo.

O Faísca esticou o braço e aspirou todo o ar dos pulmões. Apertou com mais força o sapato e esticou mais o braço. Desferiu o golpe com toda a força que tinha. O sapato voou como uma bala. Bateu no santo e gerou um barulho. Os cacos espalharam-se e o Faísca ficou estátua. A igreja estava ruidosa e num burburinho. Os coelhos passaram velozes pela porta do vaivém, descrevendo alguns oitos, correndo para o outro extremo da rua. O padre interrompeu o sermão e olhou com severidade para a confusão. O Faísca levantou-se, débil e atormentado. Os seus esforços tinham sido frustrados; o prejuízo fora cometido. Então, o padre exaltou-se, e os fiéis, também.

— Leva o cão lá para fora — disse. — Procedeste mal. Estou muito zangado contigo; estou envergonhado pelo que fizeste. E tu espera até eu acabar a missa.

O Faísca não conseguiu articular uma palavra, cheio de gestos de desculpa, trouxe o cão para a rua.

— Vamos — disse-lhe —, o que tu foste arranjar. Mordestes os coelhos, desataste atrás deles para a igreja, e eu fui no vosso encalço. Agora vê quem vai pagar as culpas de ter quebrado o santo, meu patife? Tu ajudaste-me a cometer um estrago.

Deixou-o, por uns momentos, deitado no chão a ganir tristemente. Em seguida desatou numa corrida amiúde pelas ruas na direção do monte, seguido pelo cão, que corria e saltava à sua frente. No alto da colina havia uns bancos entre os pinheiros e o ar estava cheirando a resina. A brisa fazia os pinheiros murmurar suavemente. Impondo-se, o Faísca disse:

— Aqui estamos melhor. Vigília, meu grande doido, senta-te aí e não faças ondas. O senhor padre não nos vai perdoar.

O cão, sentado no chão, observava-o com atenção. Depois, deu um ar grave, mas o Faísca, dirigindo-se-lhe, disse:

— Aqui não é preciso pôr-te assim. Os coelhos não se importariam, mas eu não gosto que me olhes gravemente quando estou a falar para ti. Agora, descontrai.

Nesse dia a palavra do Faísca estava inspirada. O Sol, entre intervalos, lançava fogachos de luz nas folhas dos pinheiros. O cão, pacientemente sentado, não tirava os olhos da boca do dono. O Faísca dobrou e esticou as pernas um pouco, apertou os cordões dos sapatos, depois disto, fitou solenemente o cão.
       
— Os coelhos fizeram muito mal em separar-se de nós.

As folhas dos pinheiros deixaram de abanar. O monte ficou iluminado e em silêncio. Subitamente, ouviu-se um seco ruído por trás do Faísca. Logo o cão levantou as orelhas. O Faísca não teve coragem para voltar a cabeça. Decorreu uns longos minutos. Depois o tempo passou. O cão baixou os olhos. O vento voltou a abanar as folhas dos pinheiros que se agitaram de novo. O Faísca ficou tão comovido que o coração lhe parou. 

— Tu viste-os? — exclamou. — Eram os coelhos? Oh!, que cão bondoso tu deves ser para veres uma miragem destas!

Ao ouvir estas palavras, o cão levantou-se dum salto, abriu a boca e deu uma de olhar grave.       

Friday, April 6, 2012


CONTOS DE RATAZANA
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11. Episódio
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Eis como, nas mais diversas situações, Artur Bófia foi ao encontro do amor


Para Artur Bófia, o amor era como o atuar. Esta é a história de um dos seus casos amorosos. Tinha regressado da esquadra do Porto, depois de mais uns dias de licença. O dia estava chuvoso. Pouca gente andava a pé pelas ruas, mas de todos os estabelecimentos topava-se gente a ver a chuva a cair, e outras enroladas numa conversa. O ar cheirava a lavado e fresco. Quando, às quatro da tarde, a chuva pareceu querer escassear por uns instantes, Artur Bófia que tinha passado um bocado no café, saiu e pôs-se a caminho da casa do Pipocas. Estava com frio e com saudades. Na altura em que chegava precisamente perto da loja de frutas, levou com uma tromba de água em cima. Artur Bófia ficou como um gato-pingado. Correu da chuva, e procurou a casa mais próxima, que era aquela onde habitava a tia Justa, uma viúva de cerca de trinta e oito anos, cuja recente viuvez a deixara razoavelmente calçada. A tia Justa era em geral aberta e descomplexada, o que de certo modo, dispunha-se sempre alegre. Quando Artur Bófia bateu à porta, tinha ela acabado de tomar um banho e estava a secar o cabelo. Quando abriu a porta, Artur Bófia estava á entrada pingando água para cima do soalho.

— Entra e aconchega-te, antes que te constipes — disse a tia Justa.

Artur Bófia, olhando para os seios como um mirolha observa um elefante, tirou o casaco. A chuva batia no telhado. A tia Justa pegou numa garrafa de uísque e colocou-a no centro da mesa.

— Queres tomar um copo de uísque?

Ainda o primeiro copo de uísque não estava emborcado e já os olhos de Artur Bófia estavam novamente pregados nos seios. Bebeu o copo de uísque antes de proferir palavra. A tia Justa bebeu também, pois só assim conseguiria descontrair e começou a saborear o uísque quando bebeu uma boa dose.

— Este uísque não é do mercado?
— Ah, pois não; uma amiga minha, uma senhora espanhola é que mo orienta.

Embutiu outro copo. Começara a escurecer. A tia Justa atirou umas achas para o lume. «Já que a chuva tem de cair, que caia», disse de si para si. Fixadores, os seus olhos prenderam-se no enorme físico de Artur. O peito encheu-lhe um pouco.

— Andas a vir muito para estes lados, meu malandro. Chega-te, dá-me a roupa, que é para a pôr a secar, e cobre-te aí com o cobertor.

Artur Bófia não usava muito a mentira. O seu pensamento não atinava lá com esse processo.

— Tive no café a fazer horas com uns amigos.
— Mas estás feito numa rodilha.

Captou-o em busca de alguma reação em relação à sua generosidade, mas o rosto de Artur Bófia não alterou uma unha sequer, a não ser o contentamento que sentia por estar coberto da chuva e a beber uísque. Estendeu o copo para repetir a dose. A tia Justa emborcou outro copo para si. O fogo aquecia, deu uma sensação de bem-estar que contrastava com o bater da chuva no telhado. Artur Bófia não fez o mínimo esforço para se mostrar grato para com a anfitriã. Bebeu o uísque em pequenas doses, sorria estupidamente para o fogo e fumava na cadeira. A ira e o desespero crescerem na tia Justa. «Olhem para este animal», disse de si para si. «Olhem que besta esta que me havia de aparecer. Antes tivesse eu abrigado um cão da chuva. Outro homem qualquer teria para mim, pelo mínimo, uma palavra amiga.» Artur Bófia pediu para encher mais um copo. Foi a vez de tia Justa dizer o que ia dentro da sua alma.

— Quando a chuva cai e o fogão arde, não há como um grupo de amigos aconchegados no calor, não achas?
— Acho.
— Talvez as persianas te incomodem — arriscou ela. — Queres que as feche?
— Não me incomoda — respondeu Artur Bófia —, mas se vê inconveniente, não faça cerimónia.

A tia Justa fechou as persianas e a sala mergulhou no semiescuro. Depois, voltou a sentar-se esperou que Artur despertasse a sedução. Aos seus ouvidos chegou o ruído do brusco atirar do fumo do cigarro de Artur.

— Pensar — disse ela —, que ainda há minutos estavas lá fora, a correr da chuva, e agora, estás aqui, sentado na cadeira, a beber bom uísque, a fumar a teu bel-prazer e na companhia de uma viúva que te estima que quer o teu bem.

De Artur Bófia nem uma palavra se ouviu. A tia Justa não o via nem ouvia. Bebeu o último trago do uísque e atirou às malvas a vergonha por ares e ventos.

— A minha amiga Xanana Maluca contou-me que alguns dos teus amigos a visitaram numa ocasião em que chovia a rodos e ela tratou-os tão bem que eles foram muito gentis com ela.

Da direção de Artur veio o som de um pequeno ronco. A tia Justa quando se aproximou, nem queria acreditar no que os seus olhos estavam a ver. Artur Bófia estava mergulhado num profundo sono. A cabeça voltada para trás, os pés atirados para a frente, a boca toda escancarada. Enquanto a tia Justa, atordoada e chocada, comtemplava a cena, um tremendo ronco saiu da boca de Artur Bófia. Passou-se dos carretos. Nas suas veias correu uma boa dose de revolta e frustração. Não gritou. Não, embora a sua vontade fosse tanta, dirigiu-se à banca da cozinha, encheu um balde de água, deixou-o atestado, e pegou nele. Depois, voltou-se lentamente para Artur. O primeiro lanço apanhou-o na metade da cabeça e atirou-o da cadeira ao chão.

— Reles! — gritou a tia Justa —, reles imundo! Vai roncar para a rua!

Artur rolou pelo soalho. O lanço seguinte fez-lhe um penteado novo no cabelo todo puxado para trás. Artur Bófia despertava agora rapidamente.

— Ei! — disse. — Que mal eu te fiz?
— Já te digo! — gritou ela.

Abriu a porta para trás e com o dedo esticado fez sinal de marcha. Artur Bófia levantou-se meio cambaleante sob as enxurradas de água. Saiu pela porta fora, enxugando o cabelo com as mãos.

— Não atires mais água — implorou. — Mas que mal eu te fiz?

Com uma fúria animal, agarrou-se a ela e caíram no carreiro do jardim. A fúria dele era terrível. Sem deixar de a largar, segurou-a forte contra si, enquanto ela agitava violentamente os braços, para se libertar dele. Continuando a agarrá-la e estado abraçado a ela, o amor surgiu nele. Acariciou-lhe o cabelo, percorreu-lhe o corpo com as mãos grossas, sacudiu-a como se sacode uma trouxa. Apertou-a por uns momentos até a calma dela abrandar.

— Reles imundo. — gritou —, cão!

À noite, no Marco de Canaveses, um guarda-noturno patrulha as ruas a pé para impedir que as coisas boas se transformem em más. Desta vez José Gabardines equipava uma gabardina impermeável com um brilho semelhante ao alcatrão. José estava triste e chateado. Não era nada difícil fazer patrulhamento nas ruas pavimentadas; mas parte do seu itinerário estava localizado nas ruas de paralelepípedo e nos caminhos lamacentos do Marco de Canavezes e aí, os seus calos sofriam mais. A pequena lanterna iluminava aqui e ali. A noite resplandecia com intensidade. De repente, José Gabardina gritou, espantado, e olhou para o chão.

— Ei, lá! Isto já vai aí?

Artur Bófia voltou a cabeça.

— Oh, és tu, José? Ouve, já que de qualquer modo viste o que não devias ver, não podes mudar de rua uns minutos?

O guarda-nocturno fez as pernas mudar de rota.

— Acabem mas é lá com isso. Ainda alguém vos topa e vocês ficam nas bocas.

O guarda-nocturno desapareceu por detrás do edifício dos correios. A chuva batia de mansinho por entre as árvores do Marco de Canaveses.