Thursday, February 16, 2012




CONTOS DE RATAZANA
______________________

8. Episódio
_____


Eis como, na véspera de São João, os amigos de Pipocas, andaram à procura de conquistar raparigas. Como Catanada as encontrou e como, mais tarde, um striptease tornou a noite mais fascinante.


Se tivesse sido um estudioso, Artur teria tido na polícia um tempo desgraçado. O facto de Artur Bófia ser senhor de um forte físico ganho na academia policial, só o poupou à porrada nas suas missões ao combate e a defender a sua integridade física. Durante o tempo que incorporou as brigadas policiais, Artur Bófia esteve mais vezes à civil do que fardado. No mundo da noite é-se beneficiado por aquilo que se faz, mas a isto acrescenta o código policial uma nova alínea... pune um indivíduo por aquilo que ele não faz. Artur Bófia nunca compreendeu bem isto. Não usava o crachá, não se embebedava; e, uma vez por outra, estando de folga, não voltou a barbear-se. A estes defeitos aliava-se a sua pretensão em arranjar amigos fixes quando o escalavam no serviço extra. Em geral, passava metade do tempo na rua; dos vários anos que estava na polícia, poucos foram os anos que ele passou na esquadra. Muito pouco satisfeito ficou Artur Bófia com a vida que se levava nas esquadras. Na brigada havia camaradagem e à-vontade; na esquadra, só encontrou trabalho. No comando, havia contra ele sempre a mesma queixa; «Pacholice e Feitio Desordeiro.» Na esquadra, as queixas que lhe faziam desconcertavam-no tão completamente que o efeito exercido na sua cabeça foi certamente permanente.

Quando as brigadas mudaram e todos os guardas voltaram às esquadras, Artur Bófia ainda tinha a gozar quinze dias de férias. Aproveitou então, a tirar um descanso para visitar os amigos de fora. Quando Artur Bófia saltou do comboio no Marco de Canaveses envergava um blusão, uma calça de ganga e um par de sapatos de borracha de cor preta. A vila não estava muito diferente; apenas se proibira as casas de diversões nocturnas, mas isso não afectara o negócio do Marco de Canaveses. Artur trocou uma moeda por um copo de cerveja e foi à procura dos amigos. Amigos bons, não encontrou nenhum nessa tarde, mas no Marco de Canaveses não lhe faltaram aqueles fala-baratos e chupistas, sempre prontos a levar um homem ao tapete. Artur, cujo forte não era a moral, não tinha qualquer aversão ao tapete, gostava dele. Depois de algumas horas decorridas, já estava sem cerveja e sem moedas — então os chupistas procuraram retirar Artur do tapete, mas ele não se mexeu dali. Sentia-se lá maravilha. Quando tentaram fazê-lo à bruta, Artur Bófia, movido por um forte instinto terrível, deu cabo da louça, atirou com os copos todos e com os chupistas à cabeçada, meios pifados e aos berros, para a berma da rua. Depois de um momento sereno, decidiu lançar todos para fora da taberna. Não era nada fácil segurar Artur Bófia, quando estava em estado de choque. Por fim, um velhote interveio e acalmou-o. Artur suspirou de felicidade. Estava outra vez em forma.

Artur gostava das gentes do Marco de Canaveses. Era um bom teste para aquecer. Se lá estivesse a viver permanente, todos os seus amigos estariam protegidos e defendidos. O tempo lá passava lindamente. Entristeceu-o um pouco o facto de ter de ir-se embora; regressar, porém, sem encontrar os amigos dava-lhe um pouco de tristeza. Percorreu as ruas à procura dos seus velhos amigos, Pipocas, Catanada e Pascácio, mas não conseguiu encontrá-los. No mercado, o lojista disse-lhe que já há uns dias não lhes punha o olho em cima.

— Devem ter encalhado nalgum sítio — disse Artur.

Vagueou solitariamente até ao café do centro, mas o dono pouco troco lhe deu, embora no fim dissesse que Pipocas tinha herdado uma casa no Porto e outra no Marco de Canaveses e uma boa soma em dinheiro. A amizade e o desejo de ver os amigos apossou-se de Artur. Ao fim da tarde, quando descia a rua encontrou o Catanada, que ia a passar com um ar atarefado.

— Ei, Catanada. Ia mesmo agora a pensar em ti.
— Olá, Artur Bófia — disse Catanada, repentino. — Onde é que tens andado?
— Na esquadra — respondeu Artur.

O espírito de Catanada estava longe deste encontro.

— Tenho de ir rápido.
— Eu acompanho-te — disse Artur.

Catanada estacou e olhou-o de alto a baixo.

— Não sabes que hoje é véspera de S. João?

Então Artur Bófia lembrou-se; pois nesta noite toda a rapariga que não tivesse namorado errava sem parança pelas ruas fora. Era a noite em que todos os corações solitários emitiam um brilhante sorriso através do olhar. As ruas estavam povoadas de gente. Todos os anos Marco de Canaveses fora muitas vezes invadida e todos os forasteiros eram oriundos de terras próximas. A noite estava clara. Catanada energia do seu rijo esqueleto, como o fazia todos os dias. Nessa noite era o folião, o dançarino de martelo na mão. Nessa noite estava empenhado numa missão de conquista.

— Podes acompanhar-me, Artur Bófia. Mas, se engatarmos alguma moça, sou eu quem dirige as operações. Se não aceitas, podes ir andando à procura da tua.

Artur Bófia não era dotado em dirigir as suas próprias conquistas.

— Eu vou contigo, Catanada. Não quero saber de raparigas nenhumas.

Caia a noite quando chegaram ao início da feira. Os seus pés estavam ofegantes. Catanada sabia agora que a noite estava como devia estar. O céu estava coberto por uma camada de geada. Adiante, os carrosséis rolavam de tal forma que enchia o entusiasmo dos participantes numa alegria contagiante. Os gritos das crianças, em sintonia, entoavam numa atmosfera brilhante. Nessa noite os casais podiam andar à vontade sem terem de recear as batidas dos martelinhos nas suas cabeças, pois a festa era dos foliões e só um intruso ignorava. De vez em quando, Catanada e Artur Bófia cruzavam-se com outros que, com a mesma alegria, seguiam sem descanso, por entre as ruas. Caminhavam em euforia, de cabeça levantada, sem dar mostras de cansaço. Quem podia afirmar que todos eles não eram amigos? Catanada e Artur Bófia sabiam que alguns eram amigos dos seus amigos e, como tal, amigo do meu amigo; meu amigo é. À volta dos ombros, por cima da camisa, Catanada levava um pulôver, para não deixar entrar o frio. Artur Bófia caminhava dando martelada em tudo que se mexesse. Embora, naturalmente, tivessem alegria, sabiam que precisavam de meter conversa com umas raparigas para fazer jus, àquela noite especial.

No fundo, lá diante, frente a eles, a bateria do conjunto abriu o baile; juntara todos os pares acasalados para o bailarico e todos os outros que, ali, não tivessem par, encontrariam o seu par. Rezou um padre-nosso. Catanada estremeceu e bateu com as mãos, embora a noite estivesse agradável. Pararam ao pé de duas moçoilas de cabelos aos caracóis que estavam de olhos postos no chão e que não lhes passou bola. Uns minutos depois, ainda Catanada e Artur Bófia vagueavam sem rumo por entre os dançarinos que enchiam o local.

De súbito, Catanada parou e agarrou o braço de Artur Bófia.

— Topa? — perguntou num murmúrio.
— O quê?
— Ali em frente. Já galei uma.
— To... topo; parece que sim.

Catanada aproximou-se do sítio das raparigas, cerca de doze metros à sua frente, um tronco duma loura de olhos azuis.

— Artur Bófia — sussurrou —, vê se não deixas escapar a amiga da loira. Eu não quero desviar os olhos dela, não posso perder aquela de vista.

Catanada acercou-se da rapariga loura e fez-lhe convite para a dança.

— A menina dança? — Ela aceitou o convite. Sorte igual teve o amigo.

Catanada rodopiou com a sua dama para o meio da pista, olhando como um cão de caça, enquanto Artur Bófia sorria para a sua, procurando não largar Catanada de vista. Catanada procurava não tirar os olhos da sua dama tão firme era ela que algumas vezes estremecia nos seus braços. Algumas vezes, Catanada tentou entrelaçá-la mais. Não olhou para o lado quando Artur Bófia tomou a sua dianteira. Quando se aproximou o fim do baile, Catanada retirou o braço da cintura da rapariga loura e disse:

— Que melhor prenda o S. João me havia de dar? Eu não posso deixar-te fugir — disse, como se recitasse um verso.

Em seguida soltou um profundo suspiro e sentou-se ao lado de Artur Bófia.

— É esta, meu amigo — exclamou. — Procurei-a durante a noite, mas agora encontrei-a.
— Vamos levá-las a casa? — disse Artur Bófia.

Catanada, contudo, abanou a cabeça com impaciência.

— Com toda a vizinhança ali filada? És tolo ou quê, Artur Bófia. A gente despede-se mas é aqui, depois demos-lhes os nossos contactos e amanhã à noite é que avançamos. Agora ninguém lhes pode tocar porque eu topo a vizinha em cima. Amanhã à noite já não há vigia. Agora que estavam sentados nas escadas, a noite parecia mais melancólica, mas da despedida vinha um calor de inocência e esperança, como se no coração houvesse uma fogueira a arder. Catanada traçou no chão um grande coração atravessado por uma seta e ficou-se a meditar por uns momentos.

— Que nenhuma vizinha má interfira nesta seta; abençoado seja a festa do S. João — disse, como se falasse para si próprio.

Depois levantou-se de novo. Tanto ele como Artur Bófia sentiam-se melhor. O ruído abafado dos passos das pessoas que caminhavam cansadamente chegava até eles: viam ao longe as luzinhas das diversas barracas que começavam a apagar-se. A festa estava quase no seu termo.

— Que é que vais fazer à rapariga? — perguntou Artur Bófia.

Catanada encarou-o de soslaio.

— Vê-se que nunca andaste à conquista de raparigas, pois de contrário sabias como se deve agir. Eu não quero ficar com esta rapariga. Se a conquistar com essa intenção ela fecha-se ainda mais, como uma amêijoa no prato, e eu nunca a apanharei. Não, não é assim que se deve agir. Eu quero conhecer a rapariga para apresentá-la ao Pipocas.

Então, Catanada manifestou todo o seu amor aos amigos. Disse a Artur como Pipocas era amigo dos seus amigos.

E nós pouco lhe damos a ele. Não pagamos farras. Utilizamos o apartamento com ele. Às vezes esborrachámo-nos e deitámos-lhe fogo ao apartamento. Quando andamos com ele, comemos as suas pegas e chamámos-lhes nomes. Somos muito acelerados. De modo que todos nós, Pipocas, Very nice, o Faísca e eu, fizemos um acordo. Virmos todos esta noite á festa do S. João conquistar as raparigas para lha darmos. Ele é tão nosso amigo, Artur Bófia; tão bondoso; e nós somos tão acelerados. Mas se lhe levarmos uma mão cheia de raparigas ele ficará muito contente. E é pelo meu coração não estar manchado de avareza que eu sou capaz de conquistar a rapariga.
— Não aproveitas um bocado para ti? — perguntou Artur Bófia, pasmado. — Nem mesmo uns beliscões nas pernas?
— Não, nem que ela me oferecesse o virgo! É tudo para o Pipocas, tudo, mas tudo!

Artur ficou desiludido.

— Andei esta noite toda e nem sequer tenho direito a nada? — lamentou-se.
— Quando o Pipocas conhecer a rapariga — disse Catanada com doçura — é bem menino que faça uma farra. É claro que eu não lhe falarei nisso, pois a rapariga é dele, mas creio que é bem capaz de o fazer. De modo que, se fores bom para ele, talvez te convide para uma farra.

Artur Bófia ficou sereno, pois conhecia o Pipocas há bastante tempo. Achava que era possível que Pipocas o convidasse para uma boa farra. A noite avançava. A lua desapareceu e deixou a vila envolta em nevoeiro. O barulho apagara-se de vez. Catanada tirou um cigarro do bolso e pôs-se a fumar nervosamente. Olharam algumas vezes para o local à volta, procurando arquivá-la na memória. Por fim, afastaram-se dali, e meteram pés ao caminho. Catanada sentia os pés pesados, mas estava satisfeito. Quando a casa de Pipocas surgiu diante deles, sacudiu Artur Bófia com uma cotovelada.

— São horas de irmos pregar olho. Esta é a casa do Pipocas.

Em casa do Pipocas, encontraram um estafado grupo de amigos.

— Conquistaram muitas raparigas? — perguntaram.
— Nenhuma — disse rapidamente Catanada para impedir que Artur Bófia falasse.
— Pascácio pensou ter conquistado uma sopeira, mas ela cavou com outro antes dele a ter conquistado. E o Faísca meteu-se com uma velha que tinha andado com ele.

A boca do Faísca abriu-se numa cortina.

— A velha disse-me que ainda fazia feliz um homem.
— Está aqui o Artur Bófia, que vem de férias — anunciou Catanada.
— Olá, Artur.
— Vocês tem aqui uma boa casa — disse Artur, sentando-se, estafado de andar a pé, numa cadeira.
— Na minha cama só durmo eu — avisou Pipocas, pois antevia que Artur Bófia vinha para ficar uns dias.

O Faísca saiu com o carrito e dirigiu-se às ruas para vender bugigangas; os outros cinco homens, entretanto, deixaram-se ficar ao sol que abria através do nevoeiro. Passado uns momentos estavam a beber. A manhã já ia no meio sem que nenhum se levantasse para erguer uma palha. Por fim, abriram as bocas, e olharam uns para os outros. A padeira deixara o pão e o leite numa saca em cima do muro, e os amigos abriram-na e começaram a comer e a beber. Artur Bófia desceu a rampa em direcção ao velho portão.

— Eu venho já — disse para Catanada.

Catanada ficou a olhar curioso para Artur Bófia até ver que caminho é que ele tomava. Os quatro amigos sentaram-se e contemplaram com pacholice o sol a chegar. Pouco depois, Artur Bófia regressou. Catanada foi falar com ele á rampa, de modo que os outros não os ouvissem.

— Pedimos a elas para virem connosco tomar uma cerveja — disse Catanada. — Ao pé da casa delas há um cinema.

Quando já estava a começar a escurecer saíram.

— Vamos ter com uns amigos do Pipocas — explicou Catanada.

Saíram de passos largos para o local onde ficaram de se encontrar com as raparigas. Depois, Artur Bófia tirou um maço de notas de dentro de um envelope que estava no fundo do bolso do casaco.

— Fodeste algum gajo! — gritou Catanada, assustado. — És um sacana, meu bófia de uns sustos!

Artur Bófia acalmou-o de perto.

— Eu não disse como é que o fui buscar — afirmou com certa autoridade. — Não disse, mas vou dizer. «Não te quero multar, és amigo do Pipocas. Quando falar com ele, peço-lhe emprestado e pago isto».

Catanada ficou perplexo.

— E assustou-se e emprestou-te o dinheiro?
— Bem... — Artur Bófia hesitou. — Perdoei lá uma coisa que se fosse a notificar levaria mais dinheiro.
— Que é que lá perdoaste?
— Foi só uma infracção — respondeu Artur Bófia, num desabafo. — Foi só uma.

Catanada pôs-se bem perto dele, dando risadas com vontade.

— Safado, safado dum raio; chulão! Ou tratas de me dar uma comissão ou chibo-te!

Artur Bófia tentou acalmá-lo.

— Pensei retribuir uma farra que devo ao Pipocas...
— Engana-me que eu gosto! — exclamou Catanada — Por causa da tua habilidade, és tu que logo vais pagar a despesa. Vamos embora.

Artur Bófia ganiu como um lobo e seguiu adiante. Durante bastante tempo tentaram dar com o local do encontro. Já era tarde quando Catanada apontou para as três casas em fila.

— É ali — disse.

Depois de terem andado à procura, encontraram a porta do quintal. Como não iam bater à porta, deixaram-se a aguardar.

— Algumas vezes as raparigas estão metidas a espreitar nas janelas — disse — e as janelas não deixam ver. — Olhou para o relógio para marcar o tempo. — Bem, vamos esperar cinco minutos e depois é que vamos bater à porta.
— Tu não bates agora? — perguntou Artur Bófia.

Catanada, desatinou furioso.

— Ouve lá, eu ando a querer levar isto numa boa, sabes? — Falou alto.
— Eu não sei nada — disse Artur Bófia.

Catanada tirou um cigarro do maço e fumou, nervoso, oferecendo outro a Artur Bófia. Quando passou cinco minutos, o cigarro tinha-se queimado no canto da valeta. Os cães da zona ladraram. A noite apareceu por detrás das casas. Por fim, Catanada perdeu a paciência e foi bater à porta. Bateu e tornou a bater. O silêncio era palavra de ordem.

— Fomos comidos, pá! — exclamou Artur. — As raparigas não moram aqui, Catanada!

A frustração era grande e tremenda. Freneticamente, desataram a bater há cegos, sem ninguém os atender. Quando a paciência chegou aos limites, Catanada viu um vulto e inclinou-se para ver. A luz cinzenta da noite mostrou uma velhota seguida de um cão, que saía de uma porta lateral.

— Eh! — proferiu Catanada —, não fuja de nós!

De ombros curvados sob o peso da idade, a velhota parou no meio do caminho e fez-lhes sinais de dedos apontados à boca.

— É muda! — disse Artur Bófia, lastimoso.

Catanada não lhe respondeu.

Artur inspeccionou a traseira da casa. No fundo deparou-lhe uma quantidade de desarrumação. Voltou-se para o aborrecido Catanada.

— Talvez se a gente seguisse a velhota e visse a falar com alguém.

Catanada saiu do aborrecimento.

— Vamos, mas é embora.

No seu agastamento, Catanada o que queria era mesmo cavar dali o mais depressa possível. Começou a descer a colina. A noite já escurecera quando chegaram à placa informativa de Marco de Canaveses. Arrastaram-se ao longo dos caminhos desviados até à paragem do autocarro, e sentaram-se no banco de madeira. Catanada tirou outro cigarro; depois, como a bondade é a padroeira do amor ao próximo, passou o maço do tabaco para Artur se servir.

— O que é que a gente planeia — exclamou Catanada. — Como vamos em prol dos nossos sonhos. E tinha eu pensado levar raparigas ao Pipocas. Até parece que estava a ver a alegria dele. Que surpresa ele não teria. Durante muito tempo nem havia de esquecer — tirou o maço do tabaco das mãos de Artur e guardou-o no bolso. — Foi tudo por água abaixo hoje.

A noite estava cada vez mais fria e eles iam ficando cada vez com mais frio. Apesar do seu desalento, Catanada, na sua maneira imaginativa, estava já a tentar descobrir alguns pontos bons da situação.

— Visto bem — filosofou ele —, se tivéssemos conquistado raparigas, talvez isso não tivesse sido nada bom para o Pipocas. Ele sempre foi doido e a sexualidade podia dar-lhe volta ao miolo.

Artur Bófia acenou solenemente com a cabeça.

— A amizade é melhor do que a sexualidade — disse Catanada. — Se procurarmos fazer o Pipocas feliz, será melhor do que lhe dar sexo.

Artur Bófia, acenou de novo e atirou com um escarro para o meio da estrada.

— Fazê-lo feliz é bem melhor.

Catanada voltou-se para ele, sorridente.

— Quem te conheça que te compre — disse brandamente.

O itinerário para o centro variava constantemente, cortando e metendo por calhas e travessos numa maratona de encurtar caminho.

— Tu não és mau amigo — disse Catanada.

Artur Bófia, porém, já ia adiantado. Despira o casaco e pusera-o debaixo do braço. Momentos depois, seguiam lado a lado pelo desvio. Os poucos cafés abertos ao longo da vila contavam-se pelos dedos. Um grupo de clientes olhou-os. O taberneiro serviu-os. Artur puxou do dinheiro e mandou vir uma rodada.

— Vamos a isto — disse Artur Bófia.

Escorropicharam os copos. O taberneiro repetiu a dose, e pôs-lhes um prato de moelas à frente. Um canário palrou. Duas quarentonas que estavam na mesa da entrada, olharam para os seus copos vazios, e depois olharam para os deles cheios, e ficaram a contemplá-los. Pela cabeça de Artur Bófia, era uma deselegância que nenhum homem se tivesse oferecido para lhes dar de beber. Voltou-se para o taberneiro.

— Ponha-as a beber — disse.

Elas voltaram-se para Artur e agradeceram-lhe cheias de sorrisos. Artur, então, não esteve com cerimónias e deitou mão a uma cadeira, sentou-se de frente para elas.

— Catanada! — chamou.

Catanada, contudo, não estava longe. Pegou numa cadeira e debruçou-se sobre os cotovelos e olhou para as mulheres. «Uma esfrega fazia bem a estas carochas», pensou. Inclinou o copo, e fez um brinde, e conseguiu um consolo para os seus olhos. Depois, esticou para dentro as pernas na intenção de encostar a perna à mais próxima das quarentonas, enquanto estivera a brincar; algum calor, porém, acontecera. Catanada olhou para Artur Bófia numa atitude interesseira. «Rico menino», pensou. «Quando for a pagar nem vai saber da conta. Se eu soubesse que ele era esta prenda, já o tinha chamado.» Abanou Artur Bófia algumas vezes. Como Artur apenas falasse para a sua parceira e fizesse ouvidos de mouco, Catanada escutou-lhes as afirmações, ao mesmo tempo que, olhou um pequeno letreiro sobre uma pipa que dizia «No tasco bebe-se melhor.» Catanada encostou-se na cadeira. Não adiantava. Tinha de ficar ali na seca, enquanto a parceira lhe pedia mais pinga. Fez sinal ao taberneiro para trazer nova rodada para todos. Reparou nas mãos de Artur que passava os dedos pelas coxas da quarentona. «Bom sinal», disse de si para si. «Por este andar vamos longe.» Reparou então como as coxas da quarentona eram gordas, como a pele era lisa, como os joelhos eram perfeitos. «Estas coxas faziam feliz um homem de bom apetite.»

Lembrou-se do namoro que Artur Bófia tivera com a rapariga no bailarico, parecia um anjo da guarda. «Como é que este nabo tão grande se atreveu a uma iniciativa destas?! Quando ele estiver comigo a sós, dou-lhe um par de abraços.» Deu um ligeiro toque a Artur, mas este apenas fez um compasso de espera como se precisasse dum prolongamento. Entretanto, Artur tirou descaradamente os óculos à quarentona, convencendo-a a fazer um striptease para eles.

A quarentona abanou a cabeça com sorrisos.

— Mas repara — disse Artur —, tu só estás a ver a mesa e nós. Olha-me para este grosso de notas. Pensa só! Tu tiraste a roupa e passei-te as notas para a mão. Cada peça de roupa é equivalente a uma nota. Nós entramos em êxtase. Então, tu mostra-nos esse teu belo físico. Como os nossos olhos se faíscam! Como ficamos cheios de prazer! Pegamos em ti ao colo, cobrimos-te. Uma mão de notas é um valor demasiado alto para tanto frenesim?

— Há fregueses lá atrás — replicou ela.

Artur ergueu-se para trás.

— Tu consegues ver sem óculos? Não! Estes gajos já perderem o faro do corpo e só se confortam com a pinga. Não nos faças desesperar.
— Tenho receio — retorquiu ela com rubor.
— Tu és cruel para nós; recusa-nos o prazer. Não pensava que fosses mais cruel que as outras mulheres. Fico então com o dinheiro?

Por fim, a resistência da quarentona foi vencida; Artur Bófia passou o maço de notas para a mão da colega e bebeu um bom trago de seguida.

— Tu estás a procurar provocar o nosso prazer — avisou Artur. — Devias era fazer-nos dois stripteases.

A quarentona subiu para a mesa decidida como nunca. Catanada e Artur Bófia não cabiam em si de contentamento. Catanada curvou-se para trás, meditando. «É um pedaço duma viga, é o que ela é. Dominamo-la, mas fica com as notas do Artur.» Catanada pensou com tristeza nos amigos que ficaram na casa do Pipocas. Se eles soubessem o que perderam? Se lhes pudesse avisar, era canja. Mas não era possível. Catanada sentiu-se inteiramente contagiado pelo striptease.

— Não sei se vou aguentar — disse ele à outra.

Os olhos estavam pregados na cena do despe-despe.

— Vais ver que vais — disse ela ao ouvido, ao mesmo tempo que se chegava mais para ele.

A quarentona, ao dar a primeira volta, tirou a saia; à segunda tirou a blusa; à terceira não tirou só o sutiã mas também as calcinhas. Em seguida, voltou para o centro da mesa onde se encontrava Artur Bófia e atirou-lhe as calcinhas para as mãos.

— Tome lá, Artur Bófia. Podes dar-te por feliz, por seres o bafejado.

Durante uns instantes, não conseguia ver onde punha os pés e guiava-se apenas pelo instinto. Mas, por fim, ela desequilibrou-se da mesa, em queda, estatelando-se no chão, aos gritos. Aproximaram-se rapidamente o grupo dos homens aos fundos. Artur Bófia dava-lhe umas palmadinhas no rosto como se faz a um bebé.

— Pronto, pronto, minha beleza, já passou.

Delicado, Artur Bófia sentou-a entre Catanada e a colega que trazia as roupas para a vestir. Artur Bófia colocou a mesa no lugar e pagou a despesa. Em seguida, lado a lado, puseram-se a caminho ao longo da estrada envoltos nas trevas, na direcção ao centro, onde as poucas luzes acesas, umas atrás das outras, se recrutavam contra a colina. A hora estava tardia e distanciada. Artur Bófia estava ainda a meditar e Catanada compreendeu quão profundos eram os entusiasmos do seu amigo. Por fim, Artur Bófia, voltando-se para Catanada, disse:

— Estas coisas assim é que nos mostram que brincar com uma mulher é uma loucura em grande.
— Foi uma cena que me levou às nuvens — exclamou Catanada, entusiástico. — Não foi? Eu dava cabo dela.

Artur Bófia, porém, abanou alegremente a cabeça, como o velho boémio que, ao percorrer meio mundo vê quanto o seu mundo é fabuloso.

— Já está pronta para outra — disse. — Pode dizer-se que foi ela que se tentou a si mesma e pelas notas. Era ela que tinha a falta do pilim; ganhou-os, levada pela ambição, e o prazer foi nosso.

Catanada disse humildemente.

— Obrigado por teres conseguido dar-me um espectáculo de eleição, Artur.

Este, porém, estava tão embrulhado na meditação que até os agradecimentos não tinham muito valor.

— Não tens de quê, pá. Em todo o caso só o gozo que a gente teve vale bem a noite.

Saíram do passeio e passaram junto da grande porta de alumínio metalizado do mini mercado.

Artur Bófia sentia-se feliz na companhia de Catanada. «Ora aqui está um homem que estima os seus amigos», disse de si para si. «Mesmo quando eles estão a exibir-se, ele está em sintonia e não nos deixa ficar mal.» Resolveu ter outro dia um gesto simpático para com Catanada.