Thursday, December 15, 2011



CONTOS DE RATAZANA
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5. Episódio
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Eis como a paródia mudou o rumo dos acontecimentos e castigou severamente Catanada, Pascácio e Very nice.                           ~~~~



A tarde apresentou-se tão límpida como a idade toca o homem bom. Branco penetrou no espaço solar. As sombras da rua ficaram mais claras e frisadas pelo sol que espelhava pela rua. Os seguranças juniores que acreditam que o chinfrim aquece durante a noite alta deixaram os seus trabalhos, e os seus lugares foram preenchidos por aqueles que estavam convencidos ser na noite baixa que o chinfrim pega a sério. À uma e meia a sombra mudou e refugiou-se de mansinho para o mar, sobressaindo todo o aroma dos cheiros das comidas. Os seguranças, que nos sítios movimentados do Porto vigiavam as entradas, puseram de parte as vigílias e enrolaram conversa nas pontas. Pelas ruas da cidade, homens gordos, em cujas pupilas havia o cansaço e a moleza que tantas vezes se vêem nos olhos de outros, iam sentados em variadas marcas de automóveis a caminho da baixa, a fim de tomarem vinho e café com bagaço. Na rua estreita e funda, o barbeiro, colocou na porta do estabelecimento um letreiro que dizia «Não demoro» e foi para casa passar o resto do dia. Os toldos decoravam estáticos e tesos. Os cães, que, às dezenas, eram livres e passageiros de ruas, regozijaram pacificamente a sua bela sina.

Catanada e Pascácio, sentados, debaixo de um toldo amarelo-torrado na esplanada do café da esquina das Antas, bebiam serenamente o seu uísque e deixavam que a tarde passasse por eles, pouco a pouco, como a barba.

— É bom que a gente não dê ao Pipocas as duas amigas da vizinha — disse Catanada. — É homem que pouco freio põe no sexo.

Pascácio concordou.

— Pipocas tem um ar animalesco — disse — é gente assim que, vai-não-vai, se estoira. Olha o Caga-Milhões, olha a Faroleira.

O realismo de Catanada veio levemente ao de cima.

— Caga-Milhões caiu na banheira do seu apartamento, no Covelo — comentou num tom reprovável —, a Faroleira comeu um gajo que tinha a picha estragada. Mas — prosseguiu, amável — eu sei onde queres chegar. E há muita gente que lerpa por abusar do sexo.

Toda a cidade começou a preparar-se para o inicio da tarde. A cozinheira do restaurante cortou pequenos nabos para a sua sopa preferida. O tasqueiro das pipas ao alto, deitou água no vinho e marcou-o para o vender depois das três da tarde. Depois despejou um pouco de pimenta no bagaço que ia servir ao fim da tarde. No salão de dança Mexe o Pé, o marcador de sala abriu uma caixa de chocolates e dispô-los, envolvendo-os nuns guardanapos de papel vermelho, em pequenos piris de cerimónia. Um pequeno grupo de reformados que tinha passado um bocado da tarde dentro do jardim do Campo 24 de Agosto jogando dados com os amigos pôs-se a caminho da estação de São Bento para a chegada do comboio, vindo de Rio Tinto. Famintos, os pássaros levantaram voo dos telhados em frente das casas e lançaram-se na direcção dos quintais traseiros. Nas lojas de comércio, os proprietários levantaram as cortinas em todas as montras. A mulher gorda da máquina das pipocas, de 114 quilos de peso, levou, como todos nos dias, a sua gata de raça siamesa, e pôs-se a vender na parede exterior da Igreja dos Congregados.

Na vizinha e acolhedora Vila Nova de Gaia, os participantes da Corrida Boas Pernas reúnam-se para tomar café e bagaço e participar, ao mesmo tempo que esperavam pelo presidente da comissão. Uma senhora baixota discutia com ligeireza e cor o problema do vício da prostituição no Porto. Dizia ela que uma brigada devia visitar essas casas do vício carnal a fim de ver exactamente como, na verdade, eram penosas as condições aí existentes. O Sol dirigiu-se para o poente e ganhou uma tonalidade alaranjada. No café da esquina, debaixo do toldo, Pascácio e Catanada beberam o primeiro mata-bicho da tarde. O dono do café saiu do estabelecimento e passou ao lado sem reparar nos seus novos fregueses. Estes esperaram que ele desaparecesse a caminho do mercado; depois, entraram no estabelecimento e, com um conhecimento de causa, levaram a rapariga a acrescentar-lhes uísque. Deram-lhe uns beliscões nos braços, chamaram-lhe «Meu limãozinho», permitiram-se umas bocas levianas com a sua pessoa e, por fim, foram-se embora, deixando-a corada e um tanto despenteada.

Iniciara-se a tarde no Porto e as lojas tinham-se aberto. Nas montras havia uma claridade total. Os panfletos lançados na rua anunciaram em relevo: «Os Socos do Abana-Abana — Os Socos do Abana-Abana». Um pequeno mas endiabrado grupo de homens que acreditam que o chinfrim pega de noite montaram vigilância nas lojas principais do quarteirão. Através da rua deslizou um suave respiro que ficou a flutuar à roda das casas; o ambiente encheu-se do belo aroma que o ar larga ao ser respirado. Pascácio e Catanada voltaram para o toldo e encostaram-se na parede, mas já não estavam tão contentes como antes.

— Está calor aqui — disse Catanada, bebendo um gole de uísque para refrescar.
— Devíamos ir para o apartamento do Pipocas. Não tens aí as chaves? — retorquiu Pascácio.
— Tenho. Mas não temos uísque para beber.
— Bem — continuou Pascácio —, se encontrar ali um amigo da garrafeira, encontro-me já contigo à porta do apartamento.

E foi o que fez, passados quase quinze minutos.

Catanada esperou pacientemente, pois sabia que há coisas que mesmo os nossos amigos não podem resolver. Enquanto isso, Catanada olhava atentamente a rua na direcção que Pascácio havia tomado. A sua vigilância, porém, foi pouca. Passado um bocado, Pascácio veio ter com ele e Catanada reparou com alívio e satisfação ao ver que o amigo trazia uma garrafa embrulhada em jornal debaixo do braço. Até entrarem no apartamento, Pascácio não fez qualquer comentário acerca do seu recente desenrascanço. Depois repetiu as palavras de Pipocas:

— Uma mulher de ajuda, aquele «Meu Limãozinho».

Catanada, no escuro, fez um sinal de concordância ao abanar a cabeça, ao mesmo tempo, que exprimia uma calma sabedoria:

— Raramente se consegue tudo no mesmo café: uísque, comida e amor. Qualquer dia temos de lhe oferecer um presente.

Catanada abriu as janelas para trás. Em breve o ar estabilizava airosamente. Os dois amigos puxaram as cadeiras para o meio da sala e seguraram nas tigelas perto das janelas para relaxaram melhor o ambiente. Nessa tarde a ânsia era enorme, pois Pascácio havia comprado um vibrador para fazer uma pequena brincadeira. Alguma coisa, porém, distraíra o seu pensamento antes de esse camuflado plano ter sido levado avante. Agora o pequeno embrulho jazia, amarfanhado no bolso das calças.

— Dava uma moeda de dez escudos para saber por onde é que Very nice anda — disse Catanada.
— Já passou um bom bocado desde que disse que voltava — disse Pascácio. — Não sei se é homem para se fiar nele, ou não?
— Talvez tenha acontecido alguma coisa que o levasse a perder-se. Very nice, com aquela lábia de locutor e aquele seu coração de galo, anda quase sempre em sarrabulhadas por causa das mulheres.
— Ele tem é cantos de cigarras — respondeu Pascácio. — Nunca leva as coisas a sério.

Não esperaram por muito tempo. Mal tinham emborcado a segunda tigela com uísque quando Very nice chegou meio a cambalear e abraçado em três raparigas de aspecto patusqueiras. A camisa estava aberta e o nariz cheio de ranho. Entrando, a claridade de fora revelou uns olhos pesqueiros que apregoavam estar bem tocado. Pascácio e Catanada precipitaram-se para eles.

— O nosso amigo está bonito!
— Mas trás com ele um comboio, Catanada!

Não havia nestas palavras o mais ligeiro sentido sarcástico, mas, Very nice reconheceu nelas o mais destruidor género de sarcasmo. Encarou-os fixamente com os olhos pesqueiros que em tais circunstâncias ainda tinha algum querer,

— Vós sois uns grandessíssimos bois! — exclamou.

Ambos recuaram estupefactos perante a grosseria da afirmação. Das palavras aos actos, uma das raparigas agarrou-se a Castanada e a outra ficou-se pelo Pascácio. Subiram para o quarto grande tão depressa quanto possível. Very nice dirigiu-se para o quarto de banho e levou os amigos atrás dele.

— São estas as amigas da vizinha? — perguntou Catanada.
— Sim — disse Very nice —, desta vez vieram mais tarde.
— Devem ter uma boa pedalada — comentou Pascácio, a fim de elogiar as conquistas do amigo. — A gente sabe que em engates és um homem habilidoso.

Very nice pareceu ter ganho um novo fôlego.

— São da aldeia — disse. — A vizinha também ajudou. Deu-me uma garrafa de uísque para trazer.
— Essas varredoras das limpezas que não vão por dinheiro são traidoras, amigo — interveio Pascácio. — Sempre lhes destes aquela coisa que põe a cabeça à roda?

Very nice meteu a mão no bolso e tirou um amarrotado papel enrolado numas fotos.

— Não tinha chegado o momento — disse. — Estava no preparo; além do mais, ainda não tínhamos entrado na paródia.

Catanada fungou e tirou as fotografias da mão de Very nice e, passando os olhos por elas, pôs-se a pensar. Passado um instante os olhos brilharam-lhe de intensidade.

— Já sei! — exclamou. — Vamos dar isto ao Pipocas para ele lhes telefonar.

Logo aplaudiram a ideia e voltaram para o quarto grande, onde as raparigas aguardavam impacientemente por eles. A porta é fechada. Há pensamentos ao redor, de ambos os lados, tirando as suas roupas, ao estilo português, como se fossem puros casais. A pouco a pouco, como Catanada gostava, o cenário ia ganhando forma. Dava força de um programa gozá-lo calmamente. Uma boa paródia reside nas brincadeiras meio contadas que devem ser preenchidas pela própria experiência do leitor. Catanada tirou o soutien do peito da rapariga e, passando os dedos pelos peitos dela, pôs-se a massajá-los. Passado um bocado os olhos brilharam-lhe alegremente.

— Que mimosos! — exclamou. — Se o Pipocas visse isto, caía da cama abaixo!

Todos, sem excepção, apalparam-se uns aos outros. Pascácio, com uma dedicada atenção de barman, botou uma porção de uísque nas três tigelas para ser dividido por seis. Instantes depois, os três homens começaram às piadas. Catanada contou uma história super brincalhona a respeito de um caso que acontecera ao tio. A satisfação começou a reinar; cantaram. Very nice levantou os pés numa imitação de número para provar que não estava com a moca toda que não fizesse um, oito. Dentro da garrafa, o uísque ia desaparecendo cada vez mais. Mas antes de se acabar os três amigos começaram a ficar com excitação. Pascácio sacou a vizinha e dirigiram-se para a cama do quarto pequeno, meios grossos. Very nice esticou-se confortavelmente na cama redonda, ao lado do par Catanada e de uma rapariga.

O amor acendeu-se. As camas encheram-se dos ruídos profundos que os casais faziam a fazer amor. Na cama do quarto pequeno apenas uma coisa fazia um ruído estranho. O comprido vibrador, de cabeça arredondada como pénis, que a pilha controla, entrava e saía no ânus da vizinha com alguma rapidez. A pouco e pouco a pilha foi ficando mais gasta. Pascácio, cuja gulosa acção era responsável pelo divertimento, gozava ainda mais satisfatoriamente do que os seus companheiros. Mas, uma vez que não há força na pilha, Pascácio colocou um simples cabo eléctrico à tomada da parede. Tal acto gerou um aumento de corrente eléctrica que perpassou através da tomada da parede. O curto-circuito lambeu a corrente e correu direito ao disjuntor que deu um rebentamento. O apartamento encheu-se com a gritaria deles. Very nice assustado, virou-se e, sem se lembrar onde se encontrava, caiu da cama e, começou a vestir as calças. Então, a rapariga em saltos, caiu-lhe em cima. Levantou-se com um berro e ficou perplexo perante o nervosismo que à sua volta se apoderara.

— Catanada! Pascácio! — gritou.

Correu para o outro quarto, abriu a porta de empurrão e ficou boquiaberto a olhar a cena. A vizinha tinha desmaiado e tinha ainda o vibrador preso ao ânus. Ficaram em frente dela, olhando para o interior através da porta aberta. No fundo da parede podiam ver o negro da tomada estilhaçada com os fios todos aos desencontros. Catanada em calafrios, virou-se para Very nice.
— Não mexas nisso? — gritou. — Deve ficar assim até o electricista vir compor a tomada.

O barulho das cortinas e a exclamação das bocas dos moradores que, vindos dos prédios vizinhos, subiam até cima, ainda lhes permaneciam nos ouvidos. As grandes varandas encheram-se e os olhos dos seus moradores dançaram de perguntas. Catanada virou-se apressado para Very nice.
— Vai à rua telefonar ao Pipocas que a vizinha está desmaiada no apartamento. Corre depressa, Very nice.
— Porque é que não vais tu?
— Ouve — responde Catanada. — Pipocas não sabe que é a ti que vai pedir responsabilidades. Foste tu que trouxestes as raparigas, não fomos nós.

Very nice entendeu esta lógica e foi à procura de uma cabine telefónica. Ligou um número.

— Pipocas! — gritou. — Pipocas, a vizinha desmaiou no teu apartamento.

Não obteve resposta.

— Tás-me a ouvir? — gritou de novo. —

Na casa da Senhora do Porto, ouviu-se vozes de raparigas. Pipocas pareceu irritado.

— Que diabo estás tu para aí a dizer?
— No teu apartamento, aquele onde o Catanada teve a prostituta, está lá uma rapariga desmaiada.

Durante uns segundos Pipocas não disse uma palavra. Depois perguntou:

— Está lá a polícia?
— Está a chegar! — gritou Very nice.

A rua estava já tão serena. Ouvia-se o correr das cortinas a baixar.

— Bom — disse Pipocas —, se a polícia fizer alguma coisa, o que eu quero que vós fazeis, é não me meter ao barulho?

Very nice ouviu o auscultador cair com um estrondo; voltou-se e dirigiu-se para o apartamento. Era uma ocasião má para chamar o Pipocas, sabia-o de antemão, mas se não fosse assim, como é que se lhe podia dizer? Se Pipocas não tivesse sabido do desmaio podia ter ficado danado. Very nice sentia-se aliviado por, de qualquer modo, tê-lo informado. Agora a responsabilidade era dos outros. O prédio era pequeno, havia muita gente que trabalhava de dia e às tardes estavam praticamente ausentes. Talvez houvesse gente que não tivesse ouvido os gritos dum curto-circuito tão rápido e tão mordaz. Os polícias deram uma vista de olhos pelo local e depois deram à socapa. Em menos de quinze minutos o carro tinha desaparecido completamente. Só então as raparigas se retiraram para as suas casas e tentar esquecer aquele episódio burlesco. Catanada, Pascácio e Very nice, mãos com mãos, observavam a rua. Metade dos moradores da zona e alguma gente das Antas, excepto Pipocas e a Senhora do Porto, andaram por ali curiosos a saber do curto-circuito. Por fim, quando o descomposto estava composto, quando da tomada eléctrica apenas se topava um montão de fios destorcidos, Catanada afastou-se silenciosamente.

— Aonde vais? — perguntou Pascácio.
— Para casa, dormir. Será bom que também o faças. Durante um certo tempo, temos de evitar que Pipocas nos veja.

Calados e silenciosos, os outros concordaram e seguiram-no.

— É uma lição para todos nós — disse Catanada. — Assim aprendemos a nunca deixar o quadro eléctrico ligado para estas paródias dentro de casa.
— Para a próxima — retorquiu Pascácio, abatido — comemo-las lá no monte e pronto.