Thursday, August 11, 2011



CONTOS DE RATAZANA
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A RARA PINTURA
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Nesse tempo Glória Isabel ainda se não demarcara de Vilar de Andorinha e das tranquilas, vistosas casas do lugar de Lijó — mas a nova dos seus hobbies chegara já até Avintes, vila volumosa, de muros altos, entre campos e arvoredos, no concelho de Vila Nova de Gaia.

Uma manhã uma mulher de olhos cadentes e mal-amados passou no fresco lugar, e fez-se ouvir que uma nova artista, uma pintora simpática, percorria as ruas e aldeias de Vilar de Andorinha, declarando a chegada da Boa Sorte, pintando todas as coisas boas da vida.

E enquanto descarregava as telas do carro, próximo à beira do Rio da Fonte, contou ainda que essa pintora, no largo de Oliveira do Douro, pintara o rosto dum lavrador, só com escorregar sobre ele a lata de tinta das suas mãos; e que noutro dia, atravessando numa embarcação pequena para a zona da Afurada, onde começava a pesca da enguia, escorraçara o cão que ferrara a filha do pescador, homem amável e instruído que comprava o seu quadro do cavalo imponente de dentes cerrados.

E como se isso não bastasse, maravilhados, serralheiros, doutores, mulheres de ancinho, e os trolhas morenos com a trincha na caiadela, lhe perguntassem se essa era, em boa verdade, a Picasso de Vilar de Andorinha, e se nas telas dela havia o rosto de Mona Lisa, e se outros como os girassóis de Van Gogh, os escuros de Velásquez e de Degas — a mulher, sem mesmo pintar daquela tinta tão pura de que pintara Renoir, apanhou as telas, sacudiu o pó, e meteu-as no carro, logo sumindo entre a espessura dos arbustos ao alto.

Mas uma atracção, deliciosa como o fadista nos tempos em que canta o fado, avivou as gentes simples: logo, por toda a parte que verdeja até ao bairro de Vila d´Este.

Ora então vivia nas Devesas um velho, por apelido Estrela, sem família, que dormitava nas matas do Monte da Virgem, homem de fartos caminhos e de fartas barbas — e com a alma tão vazia de nada como os seus bolsos cheios de cotão.

Mas uma aragem amena e aconchegada, essa aragem de satisfação que ao cuidado da Sorte sopra dos gastos paralelepípedos de Coimbrões, mandara um desconhecido atirar as notas mais gordas dos seus bolsos, e só se detiveram nos degraus onde as pernas do velho se enroscavam ao chão. E Estrela, agachado à soleira da porta da igreja, com a mão estendida à procura dos fiéis, palpava o saco e olhava as notas, cantava a alegria, soltava elogios a favor da Sorte bendita.

O velho pedinte já ouvira falar dessa nova artista de pintura de Vilar de Andorinha que aproximava as pessoas, sensibilizava os cépticos, emendava todas as más sortes — Estrela, homem analfabeto, que viajara por toda a Gaia, logo pensou que Glória seria mais uma dessas habilidosas, tão habituais no Porto, como Lebrac, ou Conde do Pincel, ou Albertino «o futebolista». Esses, mesmos nas noites confusas, murmuram para as estrelas, para eles sempre brancas e fáceis nos seus enquadramentos; com um pincel atraem de sobre as nuvens os trovões gerados nas tempestades de Portugal.

Glória de Vilar de Andorinha, ainda nova, com artes mais vistosas decerto, se ele a acompanhasse e a seguisse, recolheria mais sacas de notas, cresceria os seus proveitos. Então Estrela começou a seguir os seus passos por toda a vila de Gaia a pintora nova, sem que ela se apercebesse, e apertou os cordões das botas já rotas das longas passadas — largou pela estrada das praias que, rodeando a costa, se estende até Lavadores.

Uma manhã avistou sobre o poente, branco como uma mármore muito baça, as areias finas da praia da Madalena. Depois, na secura duma tarde ventosa, a praia de Salgueiros resplandeceu diante dos seus olhos, transparente, praticamente deserta, mais azul que o céu, de rochas de tamanho grandes e pequenas, e de poucas casas por entre os pinhais, sob o uivo dos cães.

Um homem que tirara preguiçosamente a sua cana de pesca duma motorizada, atada num poste, escutou sorrindo, o velho pedinte.

— A pintora de Vilar de Andorinha? Oh! Desde a semana da Páscoa, a pintora passara, com as suas pinturas, para os lados para onde o rio Douro encosta as águas.

O pedinte, andou, seguiu pelas margens do mar, até adianta dum alto, onde se via num ermo, o imóvel duma antiga fábrica de bacalhau, que descansa em completo abandono. Pela beira da água, repousava um velho carro, que era dum corpulento homem, de aparência dum errante, todo vestido de roupas grossas, deitava lentamente pedras para a água, com um livro agarrado à mão. O pedinte humildemente saudou-o, porque o pobre gosta daqueles homens de corpo tão atlético e alto, e sisudo como as suas vestes uma vez por ano lavadas em enxurradas abundantes. O corpulento homem murmurou que a pintora atravessara o hotel Casa Branca, depois se adiantara para baixo…— Mas onde, baixo? — Levando um dedo ao ar, o corpulento homem mostrou as praias de baixo-Lavadores, o areal de Cabedelo.

Na taberna de cor branca, que ladeia o caminho, paravam lá uns indivíduos à procura dumas especialidades de peixes e dumas boas canecas de vinho, contaram ao Estrela que em General Torres, pela lua cheia, uma pintora fabulosa, maior que Miguel Ângelo ou Malhoa, vendera três cus virgens a um picheleiro, e que, com a sua pintura, um sem-abrigo apanhado a palmar pelo agente Cáta-Nada lhe oferecera a sua pintura e recolhera ao seu porto de abrigo.

Mas Glória, nessa tarde, pintava ao lado de um horto, apreciada por uma plateia que mirava e cochichava em sintonia, e em baixo tom, e arrumara as suas trouxas, e no carro rumara em direcção Norte.

Um dia, já com a exposição aberta ao público, pintando já uma jovem manequim, olharam um fuinha sombrio, que se detivera a olhar para o Cristo, sentado na sua cadeira de rodas. Com devota paixão, acabou por adormecer com a cabeça encostada ao Cristo. E grandes foram os seus roncos, sentado na sua cadeira, uivando: «Rru!Rru!», e sem intervalos. O público advertiu para o calar. Um viajante encostou-se à cadeira e deu-lhe um encontrão, ao mesmo tempo, que a peruca do fuinha se soltou, encolheu, e ficou colada ao Cristo — e a sua cólera ecoou como um tambor furioso:

— Oh, ladrões danados! Oh, bandidos! A minha peruca? Onde esconderam a minha peruca? Se eu tivesse a força do Sansão, reduzia-vos a pó e à marreta…

Por essa altura, um professor biológico, de nacionalidade espanhola, Jonas Galego, professava aulas numa escola de Mafamude, próxima de uma estação de televisão. Galego, homem macio, veterano na matéria, aparecera durante o período de férias a dar aulas a algumas alunas, possuía multiplicas funções, e gozava, como favor das suas borlas, a amizade de Flora, filha única, dum sapateiro.

Mas um problema roía o seu plano muito cauteloso, como um mágico rói um cordel muito firme. A filha do sapateiro, era para ele mais desejada que comer ou beber, alinhava com um bem prendado e querido, falara mesmo ao sentir o amasso que ele se aproveitara nas descidas e subidas da sala.

Branca e tímida como a lua num parque ao ar livre, sem um dizer, sorrindo docemente ao seu professor, alinhava, sentada na cadeira da escola, sob uma transparência, alongando curiosamente os negros olhos risonhos pelo azul do quadro de Goya, por onde ela reparara no Museu Teixeira Lopes, numa galeria exposta.

Perto de si, por vezes, um tocador de flauta nos horários nocturnos, entre as cadeiras do meio, riscava vagarosamente numa folha branca, e desenhara uma camareira de bar, olhando de forma melancólica uma taça de bebida, ao lado dum cromo abstracto, num bar. A filha do sapateiro seguia um momento a camareira meditabundo até o tocador de flauta parar de pintar — depois, mais seriamente, com um suspiro, e mais calma, recomeçava a olhar para o Goya.

Então Galego, ouvindo contar, a vendedores de Santo Ovídio, desta pintora excelente, tão grandiosa sobre os acasos, que virava as sortes tenebrosas da alma, pediu a dois alunos para que a procurassem por Vilar de Andorinha, e outras freguesias.

Os alunos enfiaram pela estrada e correram todos os caminhos até à baixa Vilar de Andorinha — e, da pintora, só encontraram o rasto brilhante nos corações. À entrada da ponte ferroviária do Arco do Prado, dois vendedores de farináceos que vinham do Candal com um carregamento de aves, e a quem nunca esqueceram a pintora Glória, pagaram uma bagatela por duas telas de galos de Barcelos para os seus viveiros de pitos, e viram as suas galinhas porem mais ovos que nunca. E da beira do cemitério, as velhas sacudiam como balões as flores, e arremessavam sobre os mortos as Boas Sortes, evocando o bem-estar de Abraião, o Mata-Porcos, da Estação.

Assim, devagar, com a cabeça à roda, como numa partida de ténis, demandaram até ao largo da Lavandeira: não encontraram Glória: e retorceram ao direito da estrada, batendo com os pedantes no asfalto quente.

Uma noite, perto de Canidelo, caminhando numa secundária, avistaram sobre um monte um verde-claro dum pinhal de eucaliptos, os restos duma estrutura duma garagem, onde albergava um grupo de insurrectos, malcheirosos, e drogados. Um rapaz, de compridos cabelos castanhos, vestido com um casaco sem mangas, fazendo um charro de folhas de loureiro e papel cartão, esfregava calmamente as mãos, sobre um resineiro. Em baixo, agitando uma bandeira de cruzes, alguns bradaram à Boa Sorte. Conhecia ele uma nova pintora que surgira em Vilar de Andorinha, e tão ocasional em casos que suscitava os infelizes e pintava o vulgar em invulgar? Calmamente, abrindo os braços, o calmo rapaz exclamou por sobre o verde do campo:

— Oh, vocês! Ainda acreditam que em Vilar de Andorinha ou Alentejo apareçam artistas invertendo sortes? Como podem acreditar em semelhantes baboseiras?... Artistas e Artes são vendedores ambulantes, que pintam a manta à sua cor, para arrebatar os patacos dos mais simples… Acreditem, não há artistas, não há sortes… Só o Invisível conhece o saber das coisas!

E grande foi o pesadelo do sapateiro, porque sua filha era desflorada, sem uma queixa, olhando o quadro (fotocópia) de Goya — e contudo a fama de Glória, criadora dos incríveis acasos, crescia, sempre mais consistente e firme, como a aragem do dia que sopra do alto do Mosteiro da Serra do Pilar.

Então, os drogados enfiaram a boca no charro, embutiram para dentro os fumos de loureiro — e os seus olhos, de noite, brilhavam no topo da garagem, por entre a fumaça ondeante das puxadas seguidas. Assim puseram o corpo em relaxe e, ficaram à espera da chegada do Sol.

Ora ente Olival e Sandim, numa casota desgarrada, sumida num canto duma colina, vivia a esse tempo uma prostituta, mais desventurada mulher que todas as mulheres de Portugal. O seu amante, todo corcovado, passara a maior parte da sua vida a ver obra feita, onde estacionara, dezassete anos vividos, chulando e comendo. Também a ela o vício a pegara dentro do ofício nunca mudado, mais magra e semítica, que um esqueleto arrancado. Até no lugar do cão não se ouvia há muito os seus latidos. E, sobre ambos, densamente a podridão cresceu, como a ferrugem sobre as sucatas deixadas num lugar despovoado. Tão fora de mão do povoado, nunca o correio ou o polícia entrava o portal feito de latões.

Um dia um rico entrou na casota, ofereceu um churrasco, aos dois infelizes, e um momento de pé na frente da cozinha, sacudindo as moscas da cara, espreitou por cima do sofá se o que estava a ver era uma pintura a sério. Os infelizes comiam, com bocas famintas. E essa bonita pintura, tem boa qualidade, onde a apanharam? A prostituta suspirou. Oh, essa bonita pintura! Quantos a desejavam! Depois, chupando uma parte do frango, contou dessa grande protagonista das sortes, essa pintora que aparecera em Vilar de Andorinha, e de um quadro fazia casos, e pintava para todas as classes, e corria todos os cantos. A sua fama andava por toda a vila de Gaia, como o vento que até por qualquer velho guarda-chuva se sente e se espalha; mas para obter uma graça das suas artes, só aqueles ditosos que a sua vontade escolhia.

E então o chulo, num murmúrio mais forte que o troar de uma gaita, disse à mulher que vendesse a pintura ao rico, tão endinheirado, que não largara os seus olhos daquela pintura. A mulher apertou a cara enrugada:

— Oh, homem! E como queres que venda a pintura, e depois perca a sorte, da pintora de Vilar de Andorinha? Ela tem-nos dado sorte! Como queres que venda a pintura? Glória não volta a pintar outra pintura como esta. E mesmo que quisesse, não seria tão igual, nem tão perfeita como esta.

O chulo, com duas boas goladas pela goela sequiosa, murmurou:

— Oh, mulher! Glória não precisa de saber nada. E nós ainda não gozámos tudo, e com um fardo tão pesado, já é hora, não é? E podíamos ter uma abundância maior que a casa do Presidente da Câmara.

E a mulher, em gargalhadas:

— Oh, meu homem, como me fazes rir? Longas são as minhas horas, e curto o dinheiro dos clientes. Tão pouco, tão afanado, tão triste, até as forças me estão a abandonar. Ninguém saberia de nós, é verdade, e logo arranjaríamos uma morada nova. Oh, homem! Talvez tenhas razão… Nem sempre a sorte nos bate à porta. O senhor quer a pintura, o senhor a leve.

O rico, tão rico, pegara a sua carteira recheada de notas de cinco mil, e passou para a mão da prostituta, que por sua vez, lhe passou para as mãos, a pintura de Glória.

O céu escurecia. O rico apanhou o seu carro, desceu pela estreita colina, entre o pinhal e a estrada. A prostituta retocou o seu traje, a prostituta mais tesa, mais corada. O amante seguiu atrás dela até à estrada que conduzia à vila.

De entre uma curva traiçoeira, surgiu um camião desenfreado sobre eles, que os deixou esticados na poeira, erguendo as mãos que tremiam, o chulo desabafou:

— Mulher, vamos ficar aqui…

E logo, aparecendo devagar entre as nuvens e sorrindo, a Sorte disse a ambos:

— Aqui estou.