Saturday, June 25, 2011







CONTOS DE RATAZANA
____________________



O MOTORISTA DE TÁXI
               ~~~


Era uma vez um motorista de táxi, sexagenário e atrevido, empregador de um carro com imensos quilómetros em cidades e vilas, que partira a trabalhar por terras distantes, deixando abandonada e triste a sua mulher e três filhos, que ainda viviam na sua casa, em Gondomar. A estrela Norte que o vira abalar, levado no seu sonho de aventura e de dinheiro, começava a ruir — quando uma das suas conquistas amorosas apareceu, com a barriga cheia, grávida do calor ardente e duma cena tórrida, trazendo a boa nova de um bem abençoado e do nascimento do rebento, alcançado por muito amor à flor da pele, à volta dos pinhais. A mulher chorou desoladamente a perda de casa do marido, que era jeitoso e alegre. Mas, sobretudo, chora ansiosamente o pai que assim deixava os filhos desconsolados, no meio de tantos problemas das suas difíceis situações e do futuro que seria incerto, sem uns braços fortes que os defendessem, e os encorajassem para a vida. Desses problemas o mais penoso era a outra, amante jovem do marido, rapariga leviana e fraca, consumida de vícios novos, desejando só a boa vida por causa do seu tesouro, e que havia meses vivia numa casa sobre os pinhais, com um desarranjo de trapos, à maneira de uma loba que, dentro do seu poiso, guarda o tesouro.

Ai! O tesouro agora era aquele bebé, dono da mama, senhor de tantos nadas, e que dormia no seu berço com o seu ursinho de plástico agarrado na mão! O menino dormia num berço de verga, filho da modesta e robusta mãe doméstica de vinte e oito anos que amamentava o seu tesouro. Tinha nascido num dia de Primavera. A mãe antes de adormecer, vinha fazer festas ao menino, que tinha o cabelo preto e fino. Os seus olhos reluziam como pedras brilhantes. Naquela terra pequena de Cete, onde o motorista de táxi alugara uma casa, ela tinha a ilusão, a realização dos seus sonhos. Nenhum idílio correra mais depressa do que o seu pelo motorista de táxi à volta dos pinhais. O motorista de táxi, seu amante, estava agora a trabalhar numa outra postura, para lá da cidade, circulando também em aldeias e vilas. O seu carro de trabalho, um Mercedes de 1981, estava ainda aí para as curvas. Os novos clientes, que fosse angariando, prontamente iriam nessas aldeolas voltar a chamá-lo e a ouvir os seus maliciosos ditos. E ela por seu lado, não desejaria mais de que ver a luz a raiar na casa do seu homem, e tomar conta do menino, e ligar a televisão nos seus programas preferidos; era as novelas como os filmes, e ficava feliz na sua servidão.

No entanto uma grande confusão reinava na casa, onde agora a despesa aumentara mais do dobro. O amante, o taxista passava de cavalo para burro viera para a aldeia com a sua experiência, e já através de alguns contactos ia vendo uma praça fraca de clientes assíduos e passageiros. Os comboios da vila tinham sido demasiados gulosos com os clientes. Nas posturas andavam menos passageiros. Um táxi não rola sem um passageiro. Toda a postura parecia um stand de carros abandonados. E a rapariga preguiçosa apenas sabia correr a cada momento ao encontro dos seus vizinhos e mostrar a eles a sua fraqueza de mãe solteira. E às vezes, parecia insegura — como se o serviço que estava debaixo da sua alçada fosse tarefas grandiosas que nenhuma coragem pode transpor.

Ora uma noite, noite de trovão e chuvisco, vindo ele a chegar do trabalho, já exausto, entre os dois houve um chispe, maior que um curto-circuito e de briga, à entrada do quarto de banho. Enraivados um com o outro, atirando cá para fora tudo o que lhes saía pela boca, a relação estourou rotundamente. Depois houve um «vê se te mexes», e cada um foi para o seu lado. Puxou violentamente os cobertores da cama. E, lá no fundo do quarto, o bebé dormia, num sonho que o fazia iluminar, toda a face entre os seus cabelos negros. Num relance, a mãe então, sem uma vacilação, tirou o tesouro do seu berço de verga — e embrulhou-o à pressa num xaile negro, entre um esgar de olhos desesperados, abalou velozmente. O taxista dormia no seu sono pesado. A cama ficara fria no silêncio e no escuro. Mas sinais de alarme de repente tremeram a sua cabeça. Pela mente trespassou o curto vibrar das pulsações. Os suores ressoavam com o bater do coração. E desgrenhado, quase nu, o taxista invadiu a casa, entre os móveis, gritando pelo seu filho. Ao avistar o berço de verga, sem roupas, vazio, caiu num choro, destroçado.

Depois mais frio, mais calmo, ele compreendeu — a casa vazia, a rapariga doida indo embora, roubar o seu menino! Então, rapidamente, correu à cadeira onde as calças estacionavam, sacou o telemóvel, como se saca uma carteira, e falando com alguém no telemóvel, o taxista partiu à descoberta de seu filho... Também ele sofria pelo seu menino! Quantas vezes, com o bebé agarrado ao colo, ele pensava na sua fragilidade, no seu longo crescimento, nos anos lentos que seriam antes que ele fosse ao menos do tamanho de chegar com os pés aos pedais, e naquela mãe imatura, de temperamento mais insosso que o lavado e coração mais insosso que o temperamento, faminta do repouso, e residente com os pais acima da sua antiga casa uns metros adiante! Pobre bebezinho de sua alma! Com uma ternura grande o imaginava entre os seus braços. O taxista lá ia, irrequieto, remexido, devorando quilómetro a quilómetro, num pensamento que o fazia sorrir, lhe molhando todo o rosto, entre os seus cabelos desalinhados. Bruscamente, se acercou da porta da casa da rapariga e recuou, como que adivinhando ir armar grande banzé. Sabia perfeitamente que ia! Então voltou para trás.

E passado momentos, a rapariga chegou a casa dos pais. Bateu à porta com um alívio, como cai um fardo de cima. Um choro abalou o chão de pedra. Era o bebé a chorar, o seu choro madrugador. Nos seus choros havia porém, mais sono que fome. O bebé então parara de chorar! Tocado, ao sentir, entre o mimo e a chupeta, embalado, pela mão forte da mãe, acordara, ele e o seu olhar maroto… — quando a mãe da rapariga, deslumbrada, com os olhos bem abertos, olhou o menino que despertara. Foi um espanto, uma alegria, quando a mãe da rapariga ergueu o menino nos braços, manifestando a sua força hilariante, abraçou apaixonadamente o neto abençoado, e o beijou, e lhe chamou netinho do seu coração… E entre aquela caloria que se soltava ali, veio uma boa, desejada alegria, com promessas de que fosse ajudada, relativamente, a filha regressada para alimentar o seu bebé. Se não como podia ela sustentar um filho? Se não tinha um emprego? Então o velho pai lembrou que ela fosse levada ao tribunal de menores, e dissesse de entre outras coisas, que era uma mãe solteira, desempregada, e que esperava receber todos os subsídios que a lei confere… A rapariga tomou o caminho do pai. E sem que o seu rosto de branca perdesse a rigidez, com um andar de defunta, como num sonho, ela foi assim apresentar-se ao tribunal de menores.

Pais solteiros, mães solteiras, familiares, rode ganapada, lá estavam entre aquela multidão que se apertava na entrada. As altas portas do tribunal abriram lentamente. E, quando um funcionário, se assumiu à porta, de face vermelha, com montes de papelada, e chamou a rapariga e o motorista de táxi, todos os demais se remeteram ao silêncio durante segundos. Um grande «Ah!» voou da boca do taxista que respondera. Depois houve uma pausa, curta. E no meio da sala, envolta na mudez preciosa, a rapariga não dizia uma… Apenas os seus olhos, reluzentes e firmes, se tinham erguido para aquele funcionário que, além dos processos em suas mãos, era portador de determinações e decisões. Era lá, nesses processos de foro conjugal que estava agora o destino do seu menino!... Então a rapariga sorriu e estendeu a mão a uma caneta. Todos seguiam, sem articular uma palavra, aquele lento movimento da sua mão a assinar o documento. Que assinatura grandiosa, que punhado de papeis, estava ela a assinar? O funcionário lia o processo — e a seguir ao ponto final parágrafo, entre uma recolha de testemunhos, revelou a decisão. Era uma decisão assinada pelo juiz a que conferia à mãe a tutela do bebé, a título provisório. O motorista de táxi deixara de ouvir o fim da leitura, e com o semblante carregado de revolta, apontou para a parede, onde um quadro de uma velha balança, com dois pratos carregados de vários símbolos, e que simbolizavam os valores da lei, encarou a rapariga, o funcionário, e gritou:

— Dei-te o meu filho, e agora vou pagar-te o seu sustento e fico sem ele!

E cavou as solas no chão.


Friday, June 17, 2011


CONTOS DE RATAZANA
_____________________


O EMPREITEIRO


Eu tenho um precioso amigo (o seu nome é A. Jesus de Sousa) que me emprestadado um dia cinquenta contos, num cheque, para eu desenvolver o meu negócio de cervejaria. Foi no tempo, onde me estabeleci, ali perto da zona do Marquês de Pombal, no Porto, investindo todas as minhas economias, para tentar a minha sorte, Jesus de Sousa fora sempre mais correcto e leal, que um companheiro de infância. Construía prédio de andares, grandes e pequenos, com uma rapidez impressionante, substituindo espaços velhos por bonitas habitações rodeadas de bons verdes e de boa localização, logo oferecia àqueles que as comprassem, um variado conjunto de acabamentos e de zonas de lazer, mais comodidade e facilidades do que a vida oferecia ao meu amigo Jesus de Sousa. Não teve subsídios e não teve ajudas de ninguém. Nunca esmoreceu, mesmo no tempo em que se vê uma crise na Europa, os tormentos das prestações. Nos seus empreendimentos foi sempre bem tão sucedido como o feliz dos mortais. Da vida só experimentara o êxito — esse êxito que a vida invariavelmente partilha a quem o conquista, como os leões com ligeireza e valentia. Ambição, sentira somente a de entender bem as ideias gerais, e a «ponta do seu iceberg» (como diz o tradicional Zé-Povinho) não estava ainda a meio do percurso… E contudo, desde os trinta e picos anos, Jesus de Sousa já se tinha distanciado de outros empreiteiros menores, e duas, três vezes por dia, suava, com um suor escorregado e lento, passando os dedos grossos sobre os cabelos compridos loiros, como se neles só apalpasse segurança e riqueza. Porquê?

Era ele, dos empreiteiros que conheci, era aquele o mais simples e amigalhaço que se munira de mais quantidade de obras em pré-início e terminação. Nesse último empreendimento (situado na rua de Gondarém) que ele construíra sobre uma velha moradia do século XX, assoalhada a carvalho e branqueada a azulejo branco — havia, penso eu, tudo quanto uma família opte pelo descanso e pela paz de espírito. A praia — que em duas caminhadas de trinta passos, largos e compassados, circulando a rua desde os passeios até ao areal, donde se deslumbrava o sol e o mar que, reflectiam uma atmosfera brilhante e calma. Uma tarde que eu desejava apresentar um amigo engenheiro negro interessado em investir, percorri, em busca deste empreiteiro ao longo das construções, dezoito quilómetros de ruas! Assim se achava fortemente abrigado o meu amigo Jesus de Sousa, de tantas obras essenciais para o desenvolvimento económico. E o único entrave destes grandes empreendimentos era que todo aquele que lá entrava, inevitavelmente lá não sairia limpo, por causa dos materiais que, provinham de diversos sítios ainda alguns em fase descoberta de janelas ou portas. No fundo, o que interessava mesmo era encontrar Jesus de Sousa, e lá fomos dar com ele ao seu posto de trabalho, na rua do Crasto, sentado numa cadeira-secretária em fina prancha móvel, e em torno dela prendiam imensos apontamentos de papel que, atados a clipes de plástico cor de torrado e cor de areia, pareciam pontos de referência e suspensos numa linha horizontal de tijolos.

Nunca recordo sem pasmo o seu posto de trabalho, repleto todo de pequenos utensílios de escritório para variadas funções! Uns dossiers de várias páginas para escrever; e largas folhas de papel vegetal em que estava desenhado a planta do empreendimento para servir de guia aos promitentes interessados. O que, porém, mais me chamou a atenção àquele posto de trabalho, eram os inúmeros telefonemas recebidos. Constantemente sons curtos e secos emitiam no ar quente daquele piso. Trrim, trrim, trrim!... Era o meu amigo atendendo. Numerosos fios enrolados que atravessavam pelo chão e pelas paredes e nem sempre, infelizmente, se comportavam seguros e eficazes! Jesus de Sousa reconhecera do outro lado do fio a voz do angariador predial, um parceiro estimado, e no momento de o despachar, exclamou com firmeza e autoridade:

— Maravilhosa construção! Quem não quererá morar num andar destes?

Pois, numa abençoada paragem das comunicações, o meu amigo engenheiro, querendo já sinalizar três ou mais fracções orientado pela planta topográfica, desejou saber valores imediatos. Mas, hábil ou cauteloso, certamente desinteressado de vender nesta fase — porque de repente o meu amigo empreiteiro começa a inventar, sem lógica, valores indetermináveis. Baralha-nos, e retiramo-nos para uma sala do piso abaixo, completamente revestida de acabamentos de primeira, que servia de modelo. E de novo a voz de Jesus de Sousa entoou, entre os adornos dos acabamentos, majestosa e sonora:

— Maravilhosa construção! Quem não quererá morar num andar destes?

Abalamos para a rua, apertando afincadamente os lábios para nos conter, e sacudimos em vão o pó sobre os fatos. Mesmo à saída, onde nos despedimos, a voz rouquejara, empastada mas sonora:

— Maravilhosa construção! Quem não quererá morar num andar destes?

Saímos acelerados para o carro. Era de tarde. Um fresco rosto de rapariga, de volta do carro das castanhas, passava exclamando com um cartucho de castanhas:

São quentes e boas
As castanhas da Lurdes Canoa…

Jesus de Sousa, respirando o ar tardio, esfregava os olhos da lenta sonolência. Apareceu no bar, com o sol já pirado. Muito devagar abriu a porta, como no medo dela cair para o chão. Logo que ele se sentou, servi umas águas minerais e fui dar um arranjo para o jantar. Bem me despachei lesto para arranjar a sala de jantar, num preparo simples e íntimo. À mesa só cabiam as camareiras do bar, e amigos como Jesus de Sousa que o bar acolhia no critério da amizade. Realizavam-se ali diariamente jantares que, pela sua versatilidade, lembravam os de Robim dos Bosques. Ao fim da garfada, ouviam-se histórias rocambolescas que cada uma das camareiras contava em forma de entretenimento. E cada uma camareira tornava-se desejosa por conhecer as histórias umas das outras. Assim tornou-se um serão de bom humor e riso. E de convidados havia sempre no repasto uma curiosidade em ver, quem era o senhor presente. A sala, um logradouro forrado a chapa de alumínio, possuía um toldo rolando na manivela, paredes pintadas a branco e ao centro brilhava uma mesa comprida de forma, toda branca e cadeiras da mesma tonalidade, que a tornava convidativa às tertúlias e repastos.

A cozinheira, ex-camareira Mara, era daquelas que não aprendera nos livros o segredo da cozinha, mas que sabia como ninguém a arte divina de «temperar e servir a Goela»; e na sala de jantar, os amigos da casa não havia quem não votasse na cozinheira Mara, para as suas comezainas. A sua sopa de agriões e ovas de pato, os seus filetes de carapau com puré de frutos secos, os seus morangos em calda de velho Porto, e vinho de tigela de barro. Tal menu dessa cozinheira extraordinária parecia, pela apresentação, pela graça dos arranjos das travessas, pelo sabor dos paladares, uma jóia combinada dos grandes mestres da culinária. Quantas noites, eu fotografei e escrevi em Contos de Ratazana aqueles serões de convívio de excelentes histórias, antes que elas enchessem o saco! E esta abençoada hora do comer condizia deliciosamente com a do beber. Por sobre uma toalha de pano castanho, mais curta do que o tamanho da mesa, conversavam, como pitos no aquário, seis camareiras e um porteiro gordo, em alegre confraternização. Os pratos vinham da cozinha pela mão da cozinheira fumegando a olhos vistos.

E se bem me lembro de uma segunda-feira de Abril em que, jantando com Jesus de Sousa um vendedor, o novato vendedor da Predial, a espinha encravou no meio da garganta, sendo preciso que o acudissem, para a extrair, com meia dúzia de cachaços. Nas tardes em que havia «jantares de Robim dos Bosques» (que assim denominei essas tertúlias de convívio salutar), eu, dono e amigo, aparecia ao inicio e deixava-me lá ficar até ser rendido. Quando o meu amigo Jesus de Sousa, chegado na sua roupa secundária, se acercava da sua obra, abria com força uma porta da arrecadação e começava… Começava pelos materiais… Com um bloco de folhas e um lápis grosso e aguçado, contava as faltas e as saídas, nas prateleiras, aos bidões, e latas pequenas… Respirava e pensava. Depois, com uma vara de longo alcance, fixava a altura dos mosaicos e contabilizava coisas de menor monta. E a partir de aqui Jesus de Sousa ficava diante da obra, esperando pelos seus operários, durante quinze minutos. Preparado e fresco, ia alimentar o estômago. Voltava para o seu posto de trabalho logo depois. Dois operários, ao centro, manobravam com mestria e rigor os guindastes da obra — que era apenas um começo dos alicerces monumentais da obra. Nunca eu, para dar um recado, entrei naquela obra sem palco — nagado da manhã cinzenta de Março em que inesperadamente, soltou-se o cano, a força de cimento a cem à hora voou, silvando e fumegando, avassalador… Fugimos todos, apavorados. Um protesto abalou na obra. O veterano trolha, empregado que era mestre de trolha de Jesus de Sousa, ficou borrado de bocados de cimento nas faces, nas mãos vagas.

Quando Jesus de Sousa acabava de se arranjar cuidadosamente para mudar de circulação, corava, com um corar reluzente e veloz. E era este corar, rosado e vistoso, que nos regozijava a nós, seus amigos e empregados. Nada faltava a este homem bom. Ele respirava saúde de ferro, crescido nas obras; uma luz da sabedoria, pronta a tudo iluminar, firme e sem tremer; Meia dúzia de magníficos negócios; todas as admirações duma classe invejosa e caduca; uma vida saída de pesadelos, mais solta e bela do que uma rosa de estufa… E contudo corava constantemente, apalpava a cara, com os dedos grossos, a rigidez e as bochechas. Aos trinta e picos anos Jesus de Sousa arredondava, como sob um balão justo! E pela rápida energia de toda a sua acção parecia ligado, desde a cabeça até aos pés, pelas malhas soltas duma situação que se não via e que o puxava. Era enternecedor testemunhar a vontade com que ele, para aceitar um pedido, mesmo nos seus momentos difíceis, se sentia forte e encorajador, e bradava com o que lhe ia na alma: «A sorte seja servida! A sorte seja servida! Claramente a vida para Jesus de Sousa era uma alegria — ou por trabalhosa e fácil, ou por interesse e fértil. Por isso o meu bom amigo procurava firmemente juntar à sua vida novos fascínios, novos interesses. Um borracho, uma moça de muita fibra e simpatia, estava empregada no bar e enamorada dele, dava-lhe todas as chances dele avançar com o romance. De resto, ele próprio se batia por ela.

E, pelo lado do pensamento, Jesus de Sousa não escusava também de ir buscar interesses e emoções que o fortalecessem com a vida — circulando à cata desses interesse e dessas emoções, pelas zonas mais desmistificadas do prazer, a ponto de beber, desde Fevereiro a Abril, setenta e quatro uísques de reconhecida qualidade. E era então que ele se privava com alguma liberdade, no recanto do bar, nas horas de conversa que ele tirava, porque dizia que quanto mais se sabe, mais se pensa. Ora justamente a partir desse Inverno, em que ele se empenhara na conquista da amizade e focara o olhar no alvo do seu zoom, foi que Jesus de Sousa conheceu Gilda, a moça de muita fibra e simpatia, e foi com demasiada afeição que ele se preparou, durante cinco semanas, para esta grande aventura. Jesus de Sousa logo nos princípios de Abril, conversara demoradamente com Gilda, que morava num quarto de uma hospedaria, incentivando-lhe que alugasse um apartamento, saísse do bar, enveredasse por outro viver. Depois disso tratado, mandou decorar por empresas rápidas, os móveis e outros equipamentos precisos, que proporcionassem todos os confortos necessários. Por fim, partiram numa manhã e tiraram duas semanas de campo para restabelecer forças para a fase seguinte.

Três semanas antes jantara ele com Gilda e mais as empregadas do bar. Nessa noite ouvira a história de Zi sobre o namorado que ela contava de uma maneira original e bairrista, «que quanto mais pesava o namorado, mais ela se encavalitava por cima dele, e por ter menos sessenta quilos, obtinha todos os gozos possíveis e deliciosos…» A gargalhada era tanto como a graça… Dizer os palavrões pelos nomes, não era para todos. Nem creio mesmo que fosse para o amigo Jesus de Sousa. Mas para Zi, aquilo era tão banal e tão simples… Jesus de Sousa à frente, na altura do copo, murmurava:

— Ah! que moça!


Eu ao lado, na cadeira, com as pernas tesas, murmurava:

— Ah! que moça!

Por entre estes «Ahs!» extraordinários, trocamos a sala pelo bar, que nos pareceu confortável e quente. Atirando uma expressão à inglesa para o ar, o porteiro Neves, com o seu Moby Dick na mão, gritava:


— Here, it is!


Depois do jantar a música calma dos Beatles havia embalado para uns momentos agradáveis. E mal Jesus de Sousa se sentou, eu levei-lhe um uísque dos seus, no momento que correu para nós, da entrada do bar, um indivíduo de cabelos esbranquiçados, rápido como uma lebre, com fato e gravata, que erguia para o ar, numa admiração, os braços arqueados. Era o imobiliário, Manuel Costa. E logo ali, nos sofás castanhos, entre o som do ambiente, surgia uma oportunidade de negócio que o bom Costa tentava, sereno, e que enchia o rosto de Jesus de Sousa de corado e de resignação. O imobiliário, Manuel Costa, não esperava tal dificuldade. E andava desde a semana, a tratar de encontrar Jesus de Sousa porque tinha na sua agenda uma proposta para a compra de umas lojas comerciais. E infelizmente para ele, as lojas ainda estavam sem preço, e as vendas sem autorização… Cruzou os braços, num rápido espanto, e fechava os olhos pequenos, onde já dançavam números. E na sua moderação, Manuel Costa procurava entre o não e o sim, ganhar o exclusivo para as próximas vendas… Os preços? Não, não tinha os preços!


Foi então que a namorada de Jesus de Sousa (que trouxera a amiga e agora vizinha) se acercou, e logo o fez sorrir à mesa. Já quando as tinha servido duas taças de sumo e aperitivos secos, o imobiliário, resignado, via assim a conversa interrompida, por interferência das duas jovens. Por isso ele, educado, sem perder a fibra, saíra da mesa — e lá os deixara em sintonia, a sós, embrulhados nos mimos… Manuel Costa estava plantado em frente de mim, com as mãos no casaco:


— Como é?


Nada restava senão acabar de beber, comer os aperitivos do bar, e dar com as pestanas a bater nas meninas do bar. Falamos, sobretudo, onde havia temas para animar o espírito — quando Manuel Costa foi buscar uma menina de companhia, e veio me avisar que «estava preparando para dar uma riparada na sua mademoiselle…» Voltamos ao balcão, Com estas consoantes de copo e cama, lá abarcou acasalado, e levantou para mim um sorriso, murmurando com interrogação:


— Vou bem?


Eu respondi:


— Vais óptimo!


Em ensaio, o ilustre imobiliário apalpou a sua presa e sentiu nela a rigidez dum rochedo. Depois, correndo com ela num impulso louco de desejo, sumiu-se para fora do bar! Tarde, de madrugada, sem rumo, para não adormecer Jesus de Sousa, que, com as mãos sobre o volante do seu Jaguar, sentia impacientemente no seu coração de doçura, a ausência de Gilda. Partimos à sua procura. E durante quatro mexidas horas, por aqueles locais, onde se instalam os vícios e os prazeres imediatos, não demos com ela, que decerto fugira dos seus hábitos e mergulhara no escuro da noite. Depois, descendo por umas ruas mal amanhadas de Monte dos Burgos, de novo trilhámos a rua principal, e fui bater à porta daquela hospedaria onde ela se encontrava, mas ninguém deu qualquer indicação. Assim, esperamos dentro do carro, entre o furioso latir dos jecos (cães). Por fim, a namorada de Jesus de Sousa apareceu alvoraçada a apear-se do táxi. E a sua deixa foi logo que o meu amigo Jesus de Sousa tinha andado lá nas gajas dos copos com os amigos nos bares do Porto.


— Então, onde é que te meteste, Jesus de Sousa?
— E tu, onde é que te meteste, Gilda?
— Andei à tua pergunta?
— Eu também!

Mas que confusão! O meu amigo Jesus de Sousa estava, enfim, povoado de censuras! Assisti impávido. Ambos ralhavam e ninguém se entendia. No palco do asfalto, onde o escuro fora juiz, já não bastava as palavras ternas para resfriar os ânimos — dizia com elas duramente da boca para fora… Onde fui eu? Era uma interrogação. E tudo o que ela contou, atirando aereamente com os desabafos para o ar, foi que se sentira, ao fim de dois dias no quarto sozinha, como abandonada, mandara vir umas cassetes de vídeo, vira cinco filmes nunca terminados, e ali estava…

— Por onde andaste?
— Sei por onde andei! E agora, minha querida, vem fazer uns mimos que eu desejei, e compreende enfim o que é o Amor.

E envolvido naquele turbilhão de linguado remoto, acabei por me esticar na cadeira confortável do carro, fechei instantaneamente os olhos, murmurando:

Felizardo Jesus de Sousa!
O amor é louco…

Já mesmo arrebentado adormecera sobre o abençoado banco de trás, quando me despertou um impulso amigo. Era Jesus de Sousa. E imediatamente o comparei a uma sentinela meio tesa e envolvida no escuro, que fora profundamente acordada e rodopiara em pleno sol. Não corava. De tarde, iniciada a confusão, aparecerem vários clientes da província, para tomar uns copos, e ver umas trutas que eu saquei. Jesus de Sousa estava diante de mim a contemplar as garrafas expostas. Com as mão aberta e forte batia no tampo do balcão, como nas costas de amigos adormecidos. Depois de uma bebida dobrada, apeteceu-lhe um prego em pão, a que a cozinheira Mara teria confeccionado um especial mesmo de carne de primeira escolha. 

— Que espanto, a carne é deliciosa!

Conversamos sobre a Sorte e o Sucesso. Eu citei, com discreta ironia, Ferreira dos Santos e a Nova Gaia… Logo Jesus de Sousa ergueu a cabeça, com seguro apoio. A sua admiração nesses dois colossos da construção aparecera, e consequentemente, sem querer mais acrescentar, como uma brisa que o ar espalha. Variou de tema. Contou que o caso da noite passada, não se passara mais de que uma pequena birra. Mas bastava que um homem fizesse umas festas, para ver as reacções e os conflitos, logo desapareciam. No amor tudo vive -- e só quem sente a dor, conhece a desilusão. Eu escutava-o com discrição, este Jesus de Sousa refinado. Era francamente um postal no magnífico estilo de homem bom. Quando recolhi à minha cama, àquelas horas boas que convém ao corpo e ao Espírito, pensei em mim que ele enfim alcançara a verdadeira tranquilidade, porque possuía a verdadeira estabilidade, gritei-lhe os meus congratulations à maneira do actor de A Volta ao Mundo em 80 dias:

Viva a Felicidade, amigo Jesus de Sousa!

Daí a momento, através do sonho que nos englobava, ouvi uma gargalhada alta e consolada. Era Jesus de Sousa que lia O que hoje ainda se deve fazer: uma rapidinha. Oh bom Jesus de Sousa! Começava a aprender o dom divino de rir! Tantos anos vão passados. Quase trinta anos, Jesus de Sousa já não habita na sua morada. As paredes do seu repouso agora são outras, bem mais diferentes.

De Verão veste uns calções e apanha uns banhos de sol. Com a sua admirável pachorra, já leu o Camões. Não vai a restaurantes. Nos passeios matinais, pára e assobia aos cães. Todos os clientes do antigamente o estimam. Na sua relação com Gilda (que já não existe), nasceu um filho que mantém laços de amizade. Ouço que se vai aposentar com uma boa, gorda e bela pensão social. Decerto viverá dali numa mansão, que será protegida do Senhor!

Como eu, ainda há pouco tempo, andei a basculhar a sua nova morada, fui depois destes trinta anos, ao bar, que já o trespassei. Cada passo meu sobre os coçados mármores de castanho e branco soou melancólico como num funeral de mortos. Todos os amigalhaços estavam reformados dos vícios, fugidos. Emanara dali um ambiente novo de caras desconhecidas — e eu parti, com a mão apoiada no queixo, certo de que naquelas centenas de objectos oferecidos ao bar pelos clientes nas suas viagens, não estavam mais de metade deles no activo! E, como esfriava nessa tarde de Outubro, tive de vir para casa, pedir ao fogão de sala que me aquecesse.

Ao descer a rua da Constituição, entrei no escritório de vendas de Manuel Costa e não dei com ele. Atendeu-me a empregada do contencioso e reparei num monte de projectos, pastas de arquivo, computadores, impressoras, fax, plantas topográficas, secretárias… Empurrei com a mão o oleado que tapava a máquina de escrever, cansada dos seus escritos, com o teclado universal iniciando as letras azerth, era ainda uma relíquia decorativa e estimada. E ali jaziam, tão seguros e confortáveis, aquelas boas invenções, que eu abalei sorrindo, daquele pequeno mini gabinete imobiliário.

O frio de Outubro parara: os vidros remotos da cidade embaciavam sobre um poente de creme. E, através dos passeios mais amenos, eu ia pensando que afinal esta vida dá muita volta, e que muitos homens, com uma profundidade mais profunda do que é a Volta, fariam como eu, com a pedra no charco da sociedade, e, como eu, sorririam alegremente da grande quimera que findara, no termo e coberta de lixo.

Àquela hora, certamente, Jesus de Sousa, no jardim da sua mansão em Foz do Douro, sem cadeira-secretária e sem apontamentos de papel atados a clipes de plástico, reentrado na harmonia, via, sob a tranquilidade serena da manhã, ao reluzir do pôr-do-sol, a maré bazar entre o canto das gaivotas.