Saturday, May 28, 2011








CONTOS DE RATAZANA
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NO BAR



Isabelinha era vista em todo a rua como «uma menina-fina». O senhor João, dono do Café, sempre que se falava nela, dizia de sua justiça, acariciando com respeito uma madeixa de cabelos:

— É uma jóia! É o que ela é!

A rua tinha quase vaidade no seu encanto formoso e enternecedor; era uma branca, de perfil fino, e os olhos escuros de um tom de castanho, e dumas pestanas finas que escureciam mais o brilho fundo e doce. Tinha saído de casa e morava agora numa outra rua, num quarto alugado numa residencial de três estrelas; e era, para a gente que aos fins das tardes ia fazer as palavras cruzadas até ao bar, um desejo sempre novo vê-la por trás de uma mesa, sentada sobre a sua saia, de cor cinza, absorvida e sossegada. Poucas vezes faltava. O bar, interiormente, parecia alegre. Falava-se em tons baixos, porque o dono, nas mudanças que efectuara que lhe davam as ideias, elogiava-se de que assim o ruído era menor; havia sobre as prateleiras envidraçadas uma quantidade de garrafas de diversas bebidas, um balde de gelo, timbrado a letras de marca; algumas tabelas de preços que ornavam as mesas com tampos de vidro, um ar sempre renovado por conta do aparelho ao fundo da sala; e era uma alegria ver algumas vezes meia sala cheia de clientes, ou em volta do balcão, agrupados em conversa com os copos nas mãos.

Isabelinha fugira de casa, tinha dezoito anos. Mesmo em criança, em casa dos pais, a sua existência fora atribulada. Os pais eram umas criaturas conservadoras e rigorosas, que se empenharam por uma disciplina culta e cumpridora. E quando pediam à filha para voltar, apesar da acalmia já, ela não voltou, sem explicação, quase como uma despedida, para salvar a liberdade que adquiriu, não ouvir mais os gritos da mãe, que a faziam enervar, saindo pela porta da casa onde antes tinha entrado. Não amava os pais decerto; e mesmo na rua tinha-se lamentado que aquela linda figura de anjo, aquele rosto de fada, fosse cavar por outro caminho que não fosse o mais correcto. Mas aquela família que lhe vinha no sangue, aquelas criaturas inconstantes, que depois pareciam cair-lhe nas mãos, apesar dos seus modos pacíficos, cansavam-na. Às vezes, só, fazendo as suas palavras cruzadas, passavam-lhe as ideias pela mente: uma rebeldia da mocidade invadia-a, como uma chama que lhe fortalecia a alma. Toda a sua ambição era ver o seu pequeno mundo bem cor-de-rosa e bem folclore. Sempre quisera desde moça uma curiosidade, um desejo, um capricho: tudo a entusiasmava na Terra desde as horas das discotecas e o convite dos seus amigos. Todo o prazer lhe era gostoso quando era para se passar. Apesar de irrequieta, passeava horas fazendo os Passatempos, que era o mais relaxante, com o tempo que perdia com os seus inúmeros jogos ficava calma. Durante as saídas para as discotecas, não chegava antes da manhã romper, deitando-se sobre a cama, lendo, ouvindo música até cair em sono pegado. De tarde estava um pouco mais branca, mas toda pronta na sua saia cinza, mexida, com os sapatos bem engraxados, compondo-se bonita para ir dar os vistaços do costume ao café. A sua única ocupação era à tarde sentar-se à mesa com o seu livrinho de jogos, e a clientela em roda, alinhando nas suas conversas, falando alegremente, bebendo os copos que lhe davam percentagem. Vendo-a assim tão espevitada e tão declarada, algumas mulheres da sua rua afirmavam que ela era ajuizada: todavia ninguém a avistava de dia, excepto ao domingo, com a visita à oficina do pai ou à casa da madrinha, toda senhoril no seu vestido de bolinhas vermelhas. Na verdade, o seu dever limitava-se a esta visita de duas em duas semanas. O seu modo de vida ocupava-a muito para se deixar invadir pelas preocupações da família; naquele dever de má filha, cumprido sem amor, tinha descoberto uma nova satisfação suficiente à sua sensibilidade; não necessitava rogar aos Céus, ou enternecer-se com os seus. Além disso nunca tivera estes sentimentalismos de alma chorona que levam ao dever. A sua nova experiência de se tornar independente, de ser ela o centro de comando, o amparo de si própria tornara-a doce, mas realista: e assim era ela que administrava agora as suas economias, com o senso que a situação exigia, uma solicitude de rapariga dotada. Tal ocupação bastava para entreter o seu dia-a-dia: ela, de resto, detestava fazer visitas, a conversa de coisas pessoais, as revelações de confidências; e passavam-se semanas sem que em casa de Isabelinha se ouvisse outro desabafo estranho ao telefone, que não fosse o do pai — que a adorava, e que dizia para ela com a voz roufenha:

— Volta minha jóia! Volta minha jóia!...

Foi assim grande o escândalo, quando os pais de Isabelinha receberam uma notícia dum vizinho, que lhe informou que a quinhentos metros dali da rua, a sua filha era vista num bar de alternos. O bar era uma casa célebre, e a sua clientela era da melhor casta que há de noctívagos. Viajara muita clientela mesmo de Lisboa, só para conhecer o seu habitat e as meninas de companhia. O bar era um ponto de encontro: e o seu nome, «Lord», um toque de inglês, expressado a bom estilo, consagrara-o como um pioneiro. A sua fama, que passara até outras fronteiras, num rótulo de publicidade, apresentava-o como uma paragem obrigatória da cidade do Porto, preferido das bonitonas, sumptuoso e fascinante, destinado a uma alta burguesia na cidade. Os pais ficaram chocados com esta notícia. Viam já a sua filha em confusão na presença de um ambiente daqueles. Depois o contacto daqueles mundanos, com as suas máquinas topo de gama, o cheiro dos seus perfumes, as suas histórias de bons, no barulho ruidoso de um bar, davam-lhe a impressão assustadora de uma perdição. Foi por isso uma surpresa, quase um reconhecimento aos Céus, quando Isabelinha visitou os pais, e muito à-vontade se serviu do frigorífico para tirar um copo de leite fresco e beber… Depois comentou:

— Eu tenho os meus desejos, vocês tem os vossos… Não nos vamos chatear, ah?... O que faço é vir cá visitar-vos. De resto, não estou mal como estou… Estou num bar onde as pessoas são amigas e deliciosas… E ficamos por aqui, ok?

Os pais de Isabelinha olhavam-na assombrados: aquela única filha, aquela cara de anjo por quem choraram tanto, aquela inocente que os bares cobiçavam, era uma rapariga extremamente ingrata — muito mais confusa, mais melindrosa que o que eles pensavam! Nem uma palavra disse mais, cavando dali silenciosa. O serviço do bar era interessante. Era um local de convívio, digno de um bom vivant, sobretudo a partir da tarde em que os clientes lá iam, com a pança bem agasalhada, os corpos esticados no meio dos sofás, e todo o género de piropos de conquista fácil, iludindo, cantadas entre os copos e os apalpões, deixando no ar a fria da ilusão, da aventura, donde saíam as cantadas. O bar ficava num rés-do-chão dum prédio baixo, com a sua velha fachada de vidro espelhado, a sua porta de ferro alta, cor castanha, rodeada de casas comerciais, situado sobre a zona alta da cidade. Isabelinha achou o bar de Fernando digno dum poema de Luís de Camões, e talvez por isso, se tenha encantado. Como ela veio um pouco mais cedo, não se quis sentar, antes quis ficar de pé, beber um drink, ali no balcão… Fernando serviu-a:

— Eu só queria uma pedra de gelo sobre o bourbon, por favor!
— Mas que pedal, menina! — exclamou Fernando admirado. — Um anjo que entende de bebidas!

Pela primeira vez na sua vida Isabelinha corou com a palavra de um homem. De resto tomou logo a iniciativa de lhe tirar as medidas… Nem alto era: e com o seu bigode cheio sobre uma face magra e morena, a camisa alaranjada de meia manga cobrindo a cintura num corpo elegante e pequeno, as suas mãos oradas, parecia-lhe a ela um dos ourives de lojas que às vezes encontrava, quando uma vez por outra ia visitar as ourivesarias no centro da cidade. Além disso não dava bocas; e a primeira vez que veio servir à mesa onde ela se encontrava com o cliente, falou apenas, com grande exuberância, do seu negócio. Falara para ele. Do início do bar, o único bem que possuía, que não desejava além disso trespassá-lo… O que ele desejava era aumentá-lo. E isso parecia-lhe a ele não ser tão difícil como andar na lua!… E vibrava sinceramente ver o bar agora, aumentar dia-a-dia, com a ajuda de todos a dar os seus contributos. No outro fim-de-semana Fernando foi fazer compras e achava-se perto da residencial da Rua da Constituição, e era um dia de Janeiro húmido e cinzento, e ele vinha a pé com duas sacas de compras, da lista das suas faltas para o serviço. Foi por isso, com grande alegria, que ela viu Fernando a acenar-lhe do outro lado da rua, e chamá-la com um sorriso aberto:

— Não queres vir tomar um café comigo?
— Por que hei-de dizer que não? — disse ela.

Ao princípio, acanhada por aquela companhia de um rato, a boa miúda caminhava junto dele com o ar de um rouxinol assustado: apesar de ele ser mais velho e ser uma pessoa tão simples, havia na sua figura vigorosa e seca, no timbre típico da sua pronúncia, nos seus olhos castanhos e vivos alguma coisa de dominante, que a envolvia. À entrada para o café, como ele se deixara ficar para trás para lhe dar a prioridade, o contacto daquela mão branca e forte de artista da noite, nas suas costas motivou-a extraordinariamente. Instalaram-se numa mesa do centro e o empregado trouxe dois cafés — e a conversa de Fernando foi lenta e divertida ao mesmo tempo. Ele parecia solidário daquele problema dela. Deu-lhe uns bons conselhos: o que os pais necessitavam era carinho, amor, uma outra atitude que aquele isolamento de comunicação… Ela também assim o julgava: mas quê!, os duros pais, sempre que se lhe falava de ir passar algumas horas à discoteca, passavam-se logo dos carris: tinham horror às noitadas e às ramadas: a Noite escura fazia-os quase desmaiarem; tornaram-se uns seres postiços, escondidos entre as paredes da casa… Ele então sossegou-a. Decerto deveria haver alguma maneira do caso se tentar resolver… Mas enfim, ela devia saber bem o caminho que desejava seguir além daquelas duas paredes, empastadas do cheiro do vício…

— Que hei-de eu querer mais? — disse ela.

Fernando calou-se: pareceu-lhe anedótico pensar que ela desejasse, realmente, o Príncipe de Gales ou o Rei da Malásia… Já ele pensava diferente, pensava noutros apetites, nos desejos do coração insatisfeito… Mas isto pareceu-lhe tão inoportuno de dizer àquela criatura inocente e pura — que falou do ambiente…

— Já vai para o bar? — perguntou-lhe ela.
— Tenho de acabar o resto das compras, se quiseres ir para lá, só demoro um pouco, menina.
— Vou-me arranjar.

Ficaram de se reencontrar nesse esconderijo de ilusão, que era a aventura do bar. No café, a pequena conversa entre ambos criou uma aproximação maior entre Fernando e Isabelinha. Aquele contacto, que ela curtia com uma habilidade de estudante, colocava entre eles como que um interesse mútuo. Ela falou-lhe já sem muitas reservas quando voltaram. Havia nas atenções dele, dum respeito honesto, uma atracção que a sua mágoa a levava a revelar-se, a oferecer-lhe a sua confiança: nunca se abrira tanto a ninguém. De resto as suas queixas eram sobre a mesma mágoa — a tristeza do seu interior, as divergências familiares, tantas coisas por fazer... E vinha-lhe por ele uma nutrição, como um secreto desejo de o ter sempre ao seu lado, desde que ele se tornava assim confidente das suas mágoas. Fernando voltou para o bar, impressionado, fascinado por aquela miudinha tão só e tão meiga. Tudo nela rimava agradavelmente: o negro do cabelo, a doçura da voz, a simplicidade no trato, e a linha elegante do seu corpo davam uma sedução: era um anjo que vivia há muito tempo numa gaiola fechada e estava por isso atado às trivialidades de família: mas bastaria um bufo para o fazer chegar aos planaltos da lua… Achava disparate e grosseiro fazer a corte à miúda… Mas irreflectidamente pensava no formidável prazer de fazer badalar aquele coração que não estava viciado pelo vício, e de pôr enfim os seus lábios numa boca onde não houvesse batom… E o que o puxava além disso era pensar que poderia percorrer toda a terra em Portugal, sem encontrar nem aquele lindo rosto, nem aquela virgindade de coração ignorado...

Era uma oportunidade que não voltava.

No bar o ambiente era frenético. Depois de Fernando descarregar o conteúdo das sacas nos frigoríficos, voltara-se para a cozinha, que estava cheia de copos sujos: e ali ficara um momento calado, no canto daquele espaço parado e silencioso, quando Isabelinha entrou e pediu um copo de água. Fernando via-a de perfil, um pouco inclinada, tirando duas do cigarro que a cinza invadia o cinzeiro: era amorosa assim, tão fina, tão terna, duma linha tão delgada sobre o fundo branco da esferovite: o seu modo de vestir era de bom gosto, a sua descontracção tão moderna, mas ele considerava isso uma ingenuidade apimentada. O silêncio das vozes em redor isolava-os — e, energicamente, ele começou a falar-lhe alto. Era ainda a mesma conversa pelo abatimento profundo da sua vida naquele patamar, pelo seu fado de alternadeira… Ela escutava-o de olhos nos olhos, animada de se deixar estar ali a ouvir aquele homem tão experiente, toda atenciosa e achando um agradável sabor à sua atenção… Houve uma altura em que ele falou do bom que era ela ficar ali para sempre no bar.

— Ficar sempre? Para quê — perguntou ela, sorrindo.
— Para isto, para estares sempre ao pé de mim…

Ela cobriu-se de um calor, o cigarro comprido e fino escapou-lhe das mãos. Fernando receou ter-se esticado, e acrescentou logo aquecendo as mãos:

— Então não era divertido?... Eu podia fazer-te empregada de mesas, pôr-te ao balcão… Tu havias de me atrair muita clientela...

Isso fê-la dar uma gargalhada; Era mais bonita quando ria: tudo brilhava nela, os dentes, o sorriso, o brilho dos olhos. Ele continuou gracejando, com a sua ideia de a fazer empregada de mesas, e de a ver ao balcão, cheio de gente a consumir.

— E eu venho de minissaia, patrão! — disse ela, contente pela sua própria gargalhada, pelo contágio daquele homem à sua beira.
— Vens mesmo? — exclamou ele. — Juro-te que te faço empregada de mesas! Que giro, nós aqui dentro do balcão, ganhando alegremente as nossas vidas, e ouvindo as bocas destes fregueses!

Ela corou outra vez. O fervor que recebeu da voz dele, fê-la recuar como se ele fosse já prepará-la para a função. Mas Fernando agora, agarrado àquele plano, moldava-lhe na sua pintura colorida todo um romance principesco, de uma felicidade sem par, naquele esconderijo de ilusão. E de repente, sem que ela opusesse, prendeu-a contra o peito e beijou-a nos lábios, um beijo ardente e prolongado. Ela tinha ficado corada como tomate: e dois bateres de pestanas voaram-lhe na direcção dele. Era assim tão apetitosa e desejada que ele tornou a beijá-la; ela soltou-se, pegou no cigarro e ficou a fitá-lo, com os lábios a morder, murmurando:

— Você beija bem… Você beija bem…

Ele mesmo estava tão desordenado que nem uma palavra disse. E daí a um pouco entraram ambos calados para a sala. Foi só no balcão que ele pensou: «Fui um aproveitador!» Mas no fundo estava satisfeito da sua intencionalidade. À noite, depois de fechar o bar, foi à procura dela: encontrou-a com o cliente na conversa, sentados a uma mesa perto do balcão. E então pareceu-lhe aborrecido distrair aquela rapariga das suas amizades. De resto um momento como aquele no bar não voltaria. Seria despropositado ficar ali, naquele canto aborrecido do café, desmoralizando, a frio, uma pobre moça… Deu meia volta e afastou-se. Ela desapareceu por uns dias e quando apareceu ao fim da tarde, ele suspendeu-a dela permanecer no bar… Ouviu o que ele dizia, sem lhe trocar o olhar, sem lhe inchar o peito. Mas Fernando achou-lhe o cumprimento da mão tão frio como um moribundo: e quando ele virou costas, Isabelinha ficou voltada para o ecrã, escondendo o olhar dos clientes, fixando abstractamente a imagem que aparecia, com o pensamento, dois a dois, voando-lhe no escuro…

Estava apaixonada. Desde os primeiros dias, a sua figura decidida e atrevida, os seus olhos vistosos, toda a virilidade do seu carácter, se lhe tinham tomado conta da imaginação. O que a fascinava nele não era a sua vocação, nem o seu prestígio no Porto, nem as mulheres que o tinham amado: isso para ela pouco lhe dizia e pouco lhe interessava: o que a encantava era aquela versatilidade, aquele ar sério e saudável, aquela força de vida, aquela voz tão característica e tão desgarrada: e antevia, para além da sua situação ligada a um ofício rasca, outras situações possíveis, em que se vê sempre diante do espelho uma outra face forte e sadia, em que as noites se passam a dormir a dois em cadeirinha… Era como uma rajada de ar ameno, que atravessava, subitamente, a sua almofada a cheirar a mofo e respirava-a docemente… Depois, tinha entendido aquelas palavras em que ele se mostrava tão sabedor, tão leal, tão gentil: e à força do seu corpo, que admirava, englobava-se agora um coração afectuoso, dum afecto enérgico e forte, para a atrair… Este amor oculto invadiu-a, assenhorou-se dela uma noite que lhe apareceu esta ideia, esta ilusão: «Se ele fosse meu namorado!» Toda ela entrou em circuito, apertou fortemente as mãos contra a mala, como desordenando-se com a sua imagem focada, prendendo-se a ela segurando-se na sua força…Depois ele deu-lhe aqueles dois beijos no bar. E desistira!

Então começou para Isabelinha uma vida de desamparada. Repentinamente tudo em seu redor — a desligação dos pais, abandono dos estudos, os seus vícios — lhe pareceu sombrio. Os seus jogos de palavras, agora que não punha neles toda a sua vista, eram-lhe chatos p´ra burro. A sua situação representava-se-lhe como desastre extraordinário: não se agitava ainda, mas tinha desses desalentos, em que caía sobre a cama, com os braços estendidos, murmurando:

— Onde vai parar isto?

Abrigava-se então naquele amor como uma indemnização deliciosa. Achando-o todo de alma, deixava-se repassar dele e da sua lenta influência. Fernando tornara-se, na sua imaginação, como uma pessoa de atitudes sensatas, tudo o que é pensado, e que é tratado, e que dá razão à vida. Não quis de algum modo alhear-se a tudo que vinha dele. Soube de todas as suas histórias, inclusive aquela «Lord» que também gostara, e crescera dum sonho. Estas histórias sossegavam-na, como uma onda de satisfação ao desejo. Foi durante semanas um frequentar constante de nocturnos. Ia-se assim criando no seu espírito um mundo viciado e preguiçoso. A realidade tornava-se-lhe ociosa, sobretudo sob aquele aspecto da sua morava, onde encontrava sempre encostado à porta, alguém na mirada. Vieram as primeiras agitações. Tornou-se impaciente e dura. Não suportava ser chamada à atenção de questões sentimentais do seu coração. Veio-lhe a ânsia das bebidas, dos cocktails, dos galanteios dos clientes a tentar. Começou a ver novelas. Passava horas só, num escuro, à varanda, tendo sob o seu olhar de virgem branca, toda a rebeldia de uma enamorada. Acreditava nos amantes que trepam os muros, sob o manto das estrelas: e queria ser conquistada assim, possuída num mistério de noite romântica… O seu coração desligou-se aos poucos da imagem de Fernando e estendeu-se a um ser fictício que a encantara nos personagens feitos heróis de novelas; era um estilo meio príncipe e meio pirata, que tinha, sobretudo, a agilidade. Porque era isto que a atraía, que queria, por que ansiava nas noites frias em que não conseguia dormir — dois braços ágeis como molas, que a abraçassem num aperto profundo, dois lábios de fogo que, em dois beijos, lhe chupassem a alma. Estava uma maluca.

E no meio desta excitação toda do temperamento inconstante, eram fraquezas rápidas, sustos de passarinho que cai, um grito ao ver o céu de negro, um esgar de desalento se não havia na recepção recados muito atractivos… À noite suspirava; abria para o café; mas lá dentro, o mofo quente, da estação a chamar o Verão, enchiam-na dum desejo intensivo, duma ansiedade sensual, que chegou ao momento em que bastaria que um homem chegasse ao pé dela e lhe tocasse, para ela lhe cair nos braços — e foi o que aconteceu enfim, com o primeiro que a namorou, daí a dois meses. Era o cliente dos imóveis. Por causa dele abandonou toda a rua. E agora muda de quarto para casa de uma amiga, os mirones atrás vigilantes, sem dormir até altas horas, os pais a sofrerem sozinhos na sua casa, todo o plano dos estudo foi pró maneta, tudo num descarrilo total — para andar acompanhada do homem, um peneirento vaidoso e convencido, de cara profunda e fechado, fio dourado com grossa medalha passado por cima da gravata e penteado abrilhantado posto à janota. Vem de noite com ela aos pubes de sandálias sem meias; cheira a álcool; e promete-lhe o mundo azul para depois ir aturar uma Joaquina qualquer, a quem ele chama «a Minha Maria.»