Tuesday, April 19, 2011


CONTOS DE RATAZANA
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Padrinho e o Porto
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O boletim meteorológico dava sinais de chuva intensa e húmida e o céu apresentava uma lua em quarto minguante em estado de uma obscuridade quase total, e a noite dera lugar a uma tenebrosa trovoada. As árvores abanavam ao sabor do vento que fustigava cada vez mais, ouvindo o ruído de sons agudos que pairavam na rua. A passo lento, segue Padrinho, chapéu enterrado na cabeça, bolsa de cabedal dos documentos fortemente atada à mão direita, enquanto a outra mão se enfiava no bolso da gabardina escura. No silêncio da noite, ele baniu do pensamento todo o remorso pelo período em que duvidara de si mesmo, substituindo por uma ideia nova: devolver a si próprio a imagem do passado. Sentiu que a sua fé o abandonava e encolheu os ombros, numa expectativa de aguardar de momento o que o futuro lhe reservava — embora isso também estivesse para breve. Envolto pelas ruas da cidade que se enroscavam em seu redor, contorceu-se num esgar de frio e olhou para o horizonte. O Porto mostrava-se uma cidade airosa, revelando a sua verdadeira raça de natureza pura, a sua beleza arquitectónica de cidade que tinha ganho a noção de si própria e, por conseguinte, se rebolava num presente auspicioso, diferente, de borgas e paródias, sem nunca ter rejeitado o passado, olhando a escuridão de um futuro promissor.

Padrinho vagueou nas ruas nessa noite seguindo a luz e as trevas da madrugada. Lembrava que muito antes da chuva cair, um certo número de casos que o haviam abalado lhe vieram à memória trazendo alguns nomes que haviam sido expulsos do seu espírito por terem falhado na hora do compromisso e, em consequência disso, haviam-se deixado, como no filme O comboio apitou 3 vezes em que o artista, o xerife, fica a falar sozinho à espera dos meliantes que lhe queriam fazer «a folha». Ó falsas criaturas! Que mal eu vos fiz! — Quando o Deus para uns é cego, não há força da razão que resista tal encomenda. Padrinho estivera à beira do abismo na derradeira queda. Como a Boa-Estrela havia sido benévola para com ele! — Via que a escolha era simples: o amor ao próximo e fé em Deus. Uma possibilidade que não podia deitar a perder, antes que fosse tarde demais. Tirou do bolso da gabardina um pequeno livro de apontamentos que ali se encontrava desde que saíra de sua casa, havia mais de três horas e meia: o livro com os nomes dos meliantes que lhe queriam fazer a tal dita «folha», os dignos companheiros, amigos de longa data, os seus nomes estavam escritos à mão, em tinta preta, e deitou-os a uma valeta… Numa esquina, na zona da Rua Chá, outrora conhecida pela sua população de artistas de várias artes, vagabundos e homens à procura de prostitutas, e agora ocupada por profissionais de comércio e pequenos empresários de negócios, Padrinho teve ocasião de encontrar uma alma perdida à procura de alguém.

Era ainda jovem, de sexo feminino, alta e duma beleza exótica, com um nariz tipo chafariz e cabelo preto e riscas brancas, penteado com azeite e tinha dentes pintados a várias cores. A jovem estava mesmo à beirinha do passeio, encostado a um varão de ferro, de costas voltadas para a estação ferroviária, levemente inclinada para a frente e segurando, na mão esquerda, um objecto rectangular de estimação. O seu comportamento chamava a atenção: primeiro fitava com olhar sombrio o objecto que tinha na mão e depois olhava à sua volta e rodava constantemente a cabeça dum lado para o outro, pondo os transeuntes demasiado concentrados. Padrinho, numa primeira passagem, olhou para o objecto que a jovem agarrava: era um cartaz escrito a letras miudinhas. À segunda passagem, pôs os óculos e leu com atenção o cartaz: Por favor, dê uma esmolinha à ceguinha. A seguir ofereceu-lhe a sua ajuda. A jovem passou o cartaz para a outra mão e voltou a repetir o mesmo refrão.

«Este dinheiro — disse ele — é teu e não é muito, mas é de boa vontade.»

E retomou o caminho, olhando a pequena multidão silenciosa. Ali, na esquina de uma rua movimentada, andavam almas a sondar em busca dum corpo à deriva. Mais adiante, quase ao fundo da rua, Padrinho viu claro uma prostituta a ser assediada por um esgazeado que, sem mais nem menos, agarrou o rosto dela com ambas as mãos e deu-lhe um beijo firmemente na boca. No entanto, ela reagiu de maneira surpreendente ao ser assim agarrada bruscamente, exclamando:

«Vai-te foder», — berrou com toda a força — posso estar desesperada, meu, mas ainda não estou esgazeada a esse ponto.» — Ao que o freguês, dando mostras de mau perdedor, deu-lhe um valente soco no nariz que a pôs a sangrar. A seguir, pirou-se pela rua abaixo e perdeu-se na escuridão. Quando Padrinho foi atrás dele, o freguês já tinha cavado não se sabe para onde mas, em vez disso, encontrou uma amiga dos tempos da desgraça que veio flutuar para a sua beira, já com uns copitos a mais no estômago.

«Olá! A uma hora destas por aqui — disse ela — só se for para curtir o fado do Pescador!» — Padrinho sorriu.
«Olha, que é que queres que te faça? — acrescentou. — Não tenho sono, tenho medo da solidão e, como não consigo dormir, prefiro passear pela noite.» —

As palavras dela continuavam a ser irónicas.

«Está-me a contar essa fita a mim? — olhou maliciosa. — Esse filme vai no Batalha!.» — Ele próprio também foi obrigado a rir. Tal como ela, Padrinho pôs-se na galhofa a lembrar cenas do passado num jogo de perguntas e respostas para fazer passar o tempo.
«Eram todos filhos de Adão», — contava ela uma cena antiga. — Mas quando se deitaram na cama, os cabrões arrancaram logo as suas roupas para mostrar as suas vergonhas.» —

Ouviram-se as suas gargalhadas. E Padrinho, logo a seguir, contou a dele:

«Uma noite, às quatro da manhã, completamente embriagado, já tinha bebido o uísque todo da garrafa, tirara a escova dos dentes e preparava-me para ir à casa de banho, quando se apresentou no meu apartamento, uma jovem sem ser anunciada e não dava mostras de querer sair dali. Eu, educadamente, fui à casa de banho lavar os dentes e, ao voltar, encontrei-a de pé no meio do tapete da sala, completamente nua, exibindo um corpo de tarar. Quando eu vi aquele espectáculo ali diante de mim, gritei: Toma-me! Sou todo teu. Faz o que quiseres!» — Ela pôs-se a mijar em cima do tapete e, a seguir, desapareceu calmamente para fora.» —

Padrinho contara a ela a história num tom franco e risonho, sugerindo, em princípio, que a tempestade já não se desencadeava. O certo é que ela não parava de contar histórias e ele foi obrigado a gritar-lhe:

«Agora chega», — disse ele. — Vou-me embora.» —

Apertando bem o cinto da gabardina ao corpo, seguiu a passo rápido pela rua em frente. O nariz de Padrinho, escorrendo pingos de orvalho, começou a latejar dolorosamente. Nunca fora capaz de suportar o frio. Deu por si a murmurar uns versos que lhe saíam à memória repentinamente,



Morrerá quem suporta o frio?
Quem, não se alheie ao abandono, embora a ele condenado?
Tu também farias isso, e te tornarias um oculto, de qualquer das formas.
Mas longe do frio, onde pudesses trocar,
Um pouco de sossego e paz…


Ele próprio não saberia dizer melhor. Qualquer pessoa que desse por si no meio da noite, ao relento, a falar sozinho, diria que ali ia um maluco… pôs-se a limpar o nariz a um lenço de papel e murmurou:

«Devias era ter ido para poeta», — opinou voltado para o candeeiro da rua. — Podias muito bem ter tido êxito. Eu sei escrever embora só tenha a quarta classe, mas que raio? Uma pessoa não precisa de ter muitos estudos para saber dizer uma dúzia de frases bonitas, não é? É claro que não sou burro de todo: há por aí mais camelos do que eu a pastar que não vão a lado algum mas eu cheguei lá! Mais longe do que eles pensavam, disso tenho a plena certeza e mais digo: esses nem daqui a cem anos chegam onde eu cheguei, disso garanto-te, palavra de Padrinho.» —

Ele desvaneceu-se da fúria e até lhe deu para fumar um cigarro, puxando primeiro pela aba do chapéu para a frente da cabeça, enquanto tirava umas fumaças de fumo para o ar. Nesse instante, reparou que duas pessoas o olhavam com curiosidade, a primeira um jovem de aspecto aguerrido, com roupas de couro guarnecidas com letras em relevo, um cabelo cortado à pica e uns olhos de esfomeado; a outra, uma mulher de meia-idade com um guarda-chuva na mão.

«Vocês tiveram azar», — gritou Padrinho. — Pois já fui assaltado ali atrás e fiquei teso como um virote.» —
«És mais desgraçado do que nós», — disse o Pica lançando uma pedra contra os sapatos dele. — «Ao menos, deixa ficar o tabaco.» —

Depois dele ter pegado nos cigarros, retomou o seu caminho; enquanto a mulher retorceu uns passos para trás e disse:

«Tenho a certeza que nos estás a enganar, mas a tua cara ficará guardada no meu espólio, ouviste, ó gamão?» —

Pelos vistos, aquela era uma noite recheada de atractivos, compreendeu ele com surpresa. «Mas que noite! É caso para eu dizer: o que mais falta para vir?» Padrinho ficou persuadido de que sair à noite sozinho era um perigo numa cidade como o Porto. E, tendo em conta aquilo que viu, a esmurrada no nariz, perseguida pelos Picas, a ceguinha a pedir esmola, a amiga das anedotas. Padrinho ficou mais decidido a recuar caminho e mudar de direcção, seguindo até ao Poente; mais propriamente dito, para a sua morada. Padrinho tinha a certeza que ali ninguém o incomodava.

Monday, April 18, 2011






CONTOS DE RATAZANA





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Em África muita coisa aprendi.

Terra de contrastes, amada e odiada do mato, da savana, da sanzala

e do muceque. E como é usual escrever-se na lápida de uma sepultura

dir-se-á que viverá eternamente no coração daqueles que por lá deixaram um pouco de si.

José Novais

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Enquanto estávamos na conversa, pusemo-nos então divertidos agora a contar piadas e a meter-nos uns com os outros e eu contei algumas das minhas à minha moda e eles partiram o caneco a rir. O condutor recuperou depressa o bom humor e começou a contar a sua passagem pelo Sul, onde esteve na província de São Salvador do Congo. Pepe Rápido disse que esteve mais de seis meses sem ter relações sexuais e, quando quis dar um pirablo, disse ao alferes Novais, mais conhecido pelo Beque-Beque, qual era o problema e o oficial levou-o à sanzala e apresentou-o a uma amiga esquelética que mais parecia uma vassoura, chamava-se Teresinha do Kiende, e bem depressa o aliviou, mas também foi aviada, quando o condutor lhe enfiou o dedo pelo mataco, os gritos eram tantos que o soba pensava que o condutor a estava a desflorar.

— Ó Pepe! Realmente tu és uma desgraça. Nem sei qual é a mulher que vai contigo para a cama, senão puseres antes os teus dedos bem atados. — Disse o cabo Flint, fazendo um intervalo.

Pepe Rápido disse ainda que, dias mais tarde, voltou à sanzala na companhia do alferes Novais para levar uma máquina de costura Singer, do tempo da rainha D. Amélia, que estava avariada e pertencia ao alfaiate da tribo, que na altura tratava de umas calças vermelhas dum metro e cinquenta de cintura. O alferes perguntou-lhe para quem eram as calças e o alfaiate respondeu-lhe que eram para o soba da tribo, Sr. Pedro Armando Boa Vida Zanga, que sofri de reumático, tinha sete mulheres e queria andar à larga… No fim, o soba pôs à disposição deles uma grade de cerveja quente e uma sertã carregada de óleo com gindungo ao lado de uma bacia com mandioca, da qual retirava pequenos pedaços que molhava no óleo mais picante que sei lá…

— Sabeis uma coisa? — disse Pepe Rápido. — Apanhei semelhante caganeira que andei oito dias sem poder olhar para uma cerveja.

Partimos dali, afastando-nos da picada esburacada e descontínua para nos encaminharmos em direcção ao acampamento, à velocidade máxima do carro. Pensei de novo como pensara ao desembarcar em Luanda: «Bem-vinda a tropa». Aquela expressão repentina e impulsiva de um voluntário dizia qualquer coisa que me bateu cá dentro. Enterrei a boina na cabeça e, durante sessenta e tais quilómetros, gastamos o fim da tarde, em cima do unimog. E o pensamento deixou de funcionar.

Thursday, April 7, 2011












CONTOS DE RATAZANA

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Um motoqueiro solitário


Aqui escrito a tinta e papel e sem adornos, a história simples do motoqueiro Queirós. De todos os motoqueiros melancólicos de que tenho conhecimento, é este, certamente o mais pacato. Conheço-o desde os meus tempos de infância, no lugar chamado Devesas, em Vila Nova de Gaia, uma noite mascarada de Fevereiro. Tinha eu chegado do quarto dos meus pais, prostrado por duas horas a cantar diante do espelho… Ah! que pinta! E era só um ensaio sem microfone: mas ali, no quarto dos meus pais, com um chapéu enterrado até às orelhas, como se fosse um sombreiro entusiasmado com as cantigas da época, aos graves e aos agudos — parecia um rouxinol das Canárias…

Apenas entrei na cozinha, eufórico e sorridente, parei no velho fogão de carvão, e ali me deixei uns instantes, consolando-me daquela chama quente em que a cozinha estava adormecida, com os olhos fixados na boa brasa cromada…

E foi então que vi aquele rapaz, mais velho do que eu uma mão cheia de anos, de porte atlético, já de casaco e camisa sem gravata, que do outro lado da cozinha, de pé, com uma postura tranquila, conversava com os meus pais, com uma máscara de Zorro na mão.

O meu pai já tinha fechado a loja e preparado a mesa para o jantar das oito, enquanto a minha mãe, atarefada e risonha, com um avental gasto do uso amarrado à cintura, pousou a sua travessa de variedades de carnes de porco na mesa ao lado de um tacho de arroz de cabidela, e colocou os pratos nos seus lugares acostumados, depois desapertou o avental, fazendo girar o ba nco comprido de madeira para se sentar, e eu ia a caminho da estreita escadaria — quando a figura forte e robusta se dobrou numa gentileza perante os meus pais, e murmurou-lhe numa pronúncia timbrada:

— Já fui aviado do jantar das oito…

Mas ele não queria o jantar das oito. Foi para a farra.

No dia seguinte, quando saí de casa para ir ao café, situado no largo da estação ferroviária, avistei logo, concentrado pensativamente ao pé da montra de vidro, o rapaz forte e solitário. O café estava vazio numa luz frouxa; as chávenas arrefeciam; e fora, no silêncio da quarta-feira, no largo deserto, a chuva caía sem cessar dum céu acinzentado e embaciado.

Eu via apenas as costas do rapaz; mas havia na sua linha forte e um pouco curvada, uma expressão tão sóbria, que me interessei por aquele conterrâneo. O cabelo penteado, de actor, risca ao lado bem aparado sob os cantos, era manifestamente dum figurante; e toda a sua fortaleza calorenta se abria ao aspecto daquelas casas cobertas de chuva, na sensação daquele silêncio deslavado…

Chamei-o. Quanto ele se virou, a sua fisionomia que apenas o vira na véspera, impressionou-me: era um mocetão alto e sóbrio, de rosto moreno, nariz recto e uma cara bem morena. O olhar mexido e vivo com uma corrente de sonho nadando num fluído colorido… E que robustez! Quando andava, as calças ajustadas às pernas roçavam nas botas de meio cano de tipo vaqueiro. Recebeu o meu convite para o café do dia, com olhar surpreso, num sorriso reservado: chegou-se para o balcão onde o empregado do café, passou a chávena pela água quente, e tirou-lhe um quentinho, e disse-lhe numa voz baixa:

— Duas colheres de açúcar. Cheirinho…

O empregado do café recolheu a garrafa do bagaço e eu acomodei-me ao balcão, e abri palheta com ele durante um bocado. Fora continuava a chover sobre o lugar deserto. A uma mesa dos fundos, um homem cor de vinho generoso e todo careca e de suíças à Elvis, que acabara de embutir um bagaço, cansava as vistas no periódico, cigarro no canto da boca e lunetas na ponta do nariz. E um som vinha do altifalante do café, uma voz chorona que a chuva acompanhava num tempo, uma voz reclamante que cantarolava um pedido de amor… Uma quarta feira de Vila Nova de Gaia.

Foi uma conversa curta e parca, aquela que nos relacionou num tempo jovem; foi tudo tão rápido, decerto porque depois de ter entrado um grupo de rapazolas no café, o conterrâneo rodou sobre os calcanhares, e foi plantar-se silenciosamente à monta de vidro, da parte de dentro, de olhar abstracto na chuva a cair.

Nesse dia parti com o conjunto musical no carro alugado para a Régua, e ainda não tinha entrado em Entre-os-rios, encharcada no seu lençol de água, já me olvidara o conterrâneo motoqueiro do lugar das Devesas. Foram passados quase dois anos, ao voltar de África, que entrando no café, na sala dos bilhares, e revendo aquele mocetão de porte atlético jogar uma partida de bilhar, senti renascer a antiga amizade.

E nesse dia mesmo tive tempo mais que suficiente para conhecer as histórias do seu passado. Era já dia adiantado e eu voltava do ensaio, quando no banco das bombas de gasolina, ao largo da estação, encontrei, todo airoso e desconcertante, o meu irmão Jorge.

Não conhecem Jorge? A sua presença é espectáculo; tem o capado magro, o negro espesso do cabelo, o sorriso nos olhos, o despacho de um apressado magro; mas esta sua ligeireza é às vezes temperada, em Jorge, pela calma e pela conversa. Que conversa! Uma conversa desarranjada, que me faz lembrar a dos ardinas do Porto: é o mesmo refrão. Mas a calma! Ah, mas esta calma é a riqueza de Jorge.

Moralmente, Jorge é um habilidoso. Fez-se serralheiro muito novo e enveredou no ofício até ir para a tropa. Dizem porém, que viajou bastante, porque conhece Portugal de Norte a Sul, passou pelas ilhas da Madeira e S. Tomé e Príncipe, Angola, as refinarias e África do Sul: mas é evidente que muitos sabem que a sua existência foi igual a dos vulgares aventureiros do Oeste, de terra em terra, de ferro de soldar nas mãos e em cima de postes: e nunca consegue amealhar uma semana de ordenado, porque é um gastador, e com o hábito de não poupar. É um esbanjador.

Mas tem um ponto forte. É cozinheiro de si mesmo: gosta de confeccionar a seu modo, frangos e fritos, muita carne de porco, e com o paladar ao seu gosto. Abastece-se no supermercado os ingredientes necessários e instala-se em casa, e ali cozinha, com satisfação para gáudio dos seus prazeres, pondo-lhes o sabor afinado para que o repasto se ilumine — e quando sente levado pelo álcool, fica de cabelo desalinhado para a clarabóia e face ardida, o velho cão lhe ladra, lança parvoíces, o bom Jorge, debruçado na cadeira, de braços abertos à padre, o olhar afogado em arrebatamento, murmura no seu calão bairrista:

— Oh! Jeco! Vai às Jecas!

Bom Jorge! Foi realmente um prazer quando o avistei, nessa tarde, no largo da estação ferroviária: e como só nos víamos aos fins-de-semana, fomos jogar juntos snooker ao café. O motoqueiro solitário lá estava no seu mutismo, curvado sobre o jornal da casa. E logo que se viram um ao outro, agarraram-se num abraço; foi um abraço grande, forte e sincero.

Meu Deus, que encontro! Os dois amigos encaminharam-se para o fundo da sala, e eu, vibrando de curiosidade, aguardei com sofreguidão. Quis primeiro ser Queirós a pronunciar, grave.

— Oh! Pá! Tu foste demais!...

— Só eu, Queirós. Vejamos. Conta-lhe a história… Aquela noite ficou na memória…

Queirós então tomou todo o ar turista que se reconhece, o seu saber e as suas experiências, e confessou-me, deixando sair as palavras a conta-gotas, que tinham estado ambos na tropa e em Angola… Jorge foi seu cicerone uma noite… Boa companhia… Tempos Belos… Ei! Jorge!...

Jorge não respondeu, olhando à volta, refugiou-se no seu controlo observador. O meu interesse prendeu-se como a folha que o vento absorve. Quando se tem estado em África, e na tropa, ganha-se facilmente o hábito da amizade: os primeiros tempos que se lidam, sobretudo durante o tempo de adaptação ao clima e ao terreno, cria-se logo os grupos de cada terra, e nas esplanadas das redondezas, e principalmente depois de ter alinhado pelo matos em missões de combate.

E durante a partida de bilhar, Queirós contou-me o que o assustara mais naquela noite, fora o delírio com que Jorge se apossou na mesa de um cabaré em Luanda. Pôs-se a mandar servir champanhe para as bailarinas e uísque para os músicos!... Foi um serão lordesco. Decidi vir-me embora e bati com a porta. Ele lá continuou. Bêbado como um cacho. Perdemo-nos em risos e altas gargalhadas. O sóbrio Queirós também quis entrar numa rodada de três jogadores, dando assim entusiasmo ao jogo.

Nesse princípio do escurecer aconteceu, ao recolher-me a minha casa, que me perdi na hora… O tempo estava foleiro, e eu tinha vontade de beber algo quente. O café da esquina com a Escola do Prado estava ainda aberto; e vi logo Queirós, ainda de casaco, sentado a uma mesa rodeado de catálogos, de testa prensada sobre a mão, olhando.

— Posso-me sentar aqui? — balbuciei.

Ele ergueu na minha direcção um olhar estremunhado; parecia ter surgido de um outro planeta; batia as pálpebras, exclamando:

— Aqui? Sim.

Foi então que eu reparei, debaixo do seu cotovelo, entre os catálogos coloridos e novos, uma foto de uma moto de eleição. Ele viu o meu olhar, o safado, e gabou-se todo numa transparência avermelhada que lhe inundou a face com barba. A minha primeira reacção foi notória ao não reconhecer a marca: como era uma marca famosa e mostrando logo a minha ignorância total à máquina, redimi-me; e apontando o modelo com um dedo firme, disse-lhe:

— É a mota do filme Easy Rider…

Não deu resposta e se deu não a captei, porque eu, apanhado também pelo fascínio que me dava aquelas imagens fabulosas, acrescentei num tom trespassado de justificação:

— Grande mota, não é mesmo? Tenho a certeza que te entusiasmou…

Queirós olhou mais: mas não era para os catálogos: era pensei eu, a descoberta de ver a sua inteligência, o seu gosto motocar adivinhados — e de ter na cabeça a ideia de comprar uma Harley-Davidson. Não me respondeu. Mas as folhas dos catálogos que eu abri, dispensaram comentários. O colorido de ambas as folhas trazia uma série de modelos velhos e novos: Grandioso! Fascinante! Electrizante! — modelos expostos numa feira internacional, montados pela elite dos corredores mundiais.

Queirós permanecia reservado, de cabeça baixa, com a ponta do colarinho fugindo para a lapela do casaco. Pobre Queirós! Atraí-me daquela atitude, revelando todo um passado sem sorte, tantas desilusões de dependências… Lembrei-me que nada impressiona o homem das Devesas como um gesto teatral; estendi-lhe as duas mãos num movimento à Valentino, e disse-lhe:

— Eu também sou motoqueiro!...

Esta frase fabulosa parecia ridícula e imprudente a um homem do Norte; o conterrâneo viu logo nela a difusão de uma alma gémea.

Daí a pouco, com o tempo a chegar à meia-noite, Queirós contava-me a sua história — ou antes pedaços, piadas desirmanadas da sua meia biografia. É tão fatal, que a contesto. De todo, havia na sua narração faltas de anos — e eu não posso reconstituir com precisão e seguimento a história deste sentimental. Tudo é livre e duvidoso. Viveu efectivamente em Devesas. Andou na escola até se formar, chegando à idade militar, onde cumpriu vários ofícios antes de vir a servir o exército no Ultramar. Aos 22 anos, Queirós servia de vendedor a uma firma de joalharia, e nas viagens do serviço angariava conhecimentos mútuos; estes contactos são frequentes blá-blá, como ele dizia. Atirou-se ao cinema: isto habilitou-o, mais tarde, em tempos ruins, a ser um figurante em películas de segunda categoria. Desse tempo datam as suas primeiras aparições ao volante duma Harley-Davidson. Isto levou-o directamente ao profissionalismo e às ambições de ser empresário em nome individual. Uma paixão, uma crise leviana, um tipo brutal, ameaças de litígio, forçam-no a espiantar-se. Viajou na Europa, foi em Espanha mecânico numa filial de altas cilindradas, alugou um apartamento ali perto da zona. Reaparece no Porto, com estilo novo, liberto e profissionalizado.

Este período de glória foi breve, mas suficiente para o pôr em destaque; a sua sabedoria de mãos, técnica, recheada de conhecimentos e sabedor de palavras estrangeiras, encantou Porto: tinha o segredo de cativar, como ele dizia, os clientes mais cépticos; de uma discussão de orçamento ou de pagamento. No Porto este talento leva ao topo. Queirós iniciara-se para gerir em alta um stand-expositor na cidade: o local, porém, e com ele a possibilidade de Queirós açambarcar umas boas massas e ainda lucrar com a serventia de uma parte das águas-furtadas, ruiu, sem efeitos práticos… — um buraco negro na história de Queirós.

Volta a aterrar, membro de um clube de ralis de automóveis do Porto, pede num magazine a concentração de Harleys no Algarve e em Espanha organizando uma manifestação monumental de motares. Integra então uma sociedade representando a sua Harley. Tem outra paixão amorosa… — E isto disse-mo sem satisfações — é obrigado a mudar-se para o Porto. Depois de estar em Vila Nova de Gaia numa situação, coloca-se numa firma inglesa de componentes de automóveis.

— É um apeadeiro para a reforma — disse-lhe eu, conversando no banco do jardim, da Arca d´Água.

Ele sorriu com azedume. Era decerto um apeadeiro para a reforma, e estável. É bem estimado; as comissões são razoáveis; tem uma viatura para as suas deslocações — mas as feridas da sua alma são, a todo o instante, dolorosamente sentidas…

Dias sentados, dias parados, os daquele motoqueiro solitário, obrigado a vender numa zona, a oficinas reparadoras e industriais pilões, acessórios e caixas de velocidades! Não é a dependência que o assusta; a sua alma de nortenho não é particularmente sedenta de liberdade, basta-lhe que o inglês seja amável. E, como ele me disse, é-lhe grato reconhecer que os clientes nunca fazem os seus pedidos sem lho dizer; e quando o vêem, chamam por ele, para lhe dar dois dedos de conversa: isso satisfaz a respeitabilidade de Queirós.

Mas o que o atormenta é o contacto permanente com o serviço. Se ele fosse um abastado dum comerciante, primeiro-oficial duma loja de joalharia… Nisso há uma claridade de estilo — os milhares que se envolvem, as viagens constantes, ou então dispor ricamente de uma quantia avultada de ouro… Mas numa oficina como se pode exercer o voo, o panorama rústico, o instinto da velocidade, do vento, da chuva — a separar material para as encomendas ou fazer exposições?!... Depois, como ele contou, dar ao pedal, atender o freguês, é cumprir unicamente a tarefa: na furgoneta, o percurso é ordem; a alma fica ao lado, com o blusão deitado no assento, ou com o jornal que se deixa no tablier. E as concentrações, e a falta de convivência! Nunca mais lhes apanhou o rasto a não ser alguns deles através da internet. Esta falta de parceiros é-lhe muito doloroso.

Além disso o trabalho ocupa-lho o tempo, Queirós desmontou de momento a moto pela arrecadação, e deixou algumas peças oleadas prontas a montar. Às vezes, passeando pelo jardim, de pensamento em queda, Queirós está fazendo uma futurologia; são tudo luares, paisagens amplas de virgem asfalto, horizontes azuis, motores de arranque silencioso… É feliz; está plantado às nuvens voadoras, nos espaços celestes onde os sonhos montam tenda, viajando de órbita em órbita… De repente, uma grossa árvore exausta de estar erguida cai de uma ponta, e bate-lhe de lado na viatura.

— Chapa e pintura!

Ai, aluadas as fantasias batem retirada como pássaros assustados! E aí vem o azarado Queirós, precipitado dos quatros cantos, de costas encolhidas e as abas do blusão balouçando, dirigir-se com um sorriso branco ao guarda da esquadra local.

— Registado ou passam a batata? — pergunta-lhe.

Ah! É um grande galo!

— Mas — perguntei-lhe eu — porque não deixas o carro, num local onde não haja árvores?

Ele levantou as suas gordas barbas de Hércules e disse-me a razão que o prende, quase chorando na minha frente, com a beata da cigarrilha no limite: Queirós encanta-se.

Encanta-o o jardim que gira em torno da praça de Arca d´Água. Encanta-o desde o primeiro dia em que entrou no seu habitat: encantou-o no momento em que se sentou nos seus bancos vendo a liberdade dos pássaros em redor, com os melros pulando nas beiras, e os patos cinzentos, os palradores patos cinzentos que no lago se refrescam, e atraem toda a pequenada que por lá passa e lhes arremessa com pipocas e bocados de pão, forçando-os numa corrida de grupo. E depois a verdura, uma verdura imitação florestal de Palácio de Cristal — árvores e flores…

E o que Queirós tem passado! Todo o seu arrependimento arquiva-o em pensamentos — que armazena em pastas aos fins-de-semana, e dias de folgas. Escutei-o. E eu vi quanto o silêncio pode acalmar um ser inconstante: que pacholice de linguagem, que raios de aceitação, que suspiros de alma despedaçada atirados dali, daqueles bancos de Arca d´Água, para a calada do céu infinito!

Pobre Queirós! Quando saí da minha garagem para o jardim, olhei-o saindo de casa. Tenho-o visto depois, algumas vezes, ao passar em Arca d´Água. Está mais magro, mais sisudo, mais descuidado de brios, mais curvado quando se mexe pelo café com o jornal debaixo do braço, mais irritado no seu sentimentalismo...

Sempre que ele me vê, trocámos alguns comentários citadinos: e depois, ao despedir-nos, aperto-lhe francamente a mão.