Monday, March 21, 2011


CONTOS DE RATAZANA
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O HOMEM DA PICHA TRISTE…



Começou por me contar que o seu caso era caricato — e que não queria que pusesse o seu nome no pasquim do bar — por isso alcunhei-o de “O Homem da Picha Triste.” Devo dizer que conheci este cliente no meu bar de engate no Porto. Era alto e magro: tinha uma farta cabeleira penteada e lisa: e os seus olhos castanhos, com a pele em volta encarquilhada e amarelada, e olheiras papudas. Tinha a barba cortada, o queixo firme e recto. Trazia uma gravata de cetim azulada adornada numa camisa branca bordada; um fato fino de casaco trespasse cor de pinha, e as calças estreitas e justas por cima dos sapatos. Estávamos em Abril; já as noites vinham mais tarde, com uma aragem primaveril e suave e uma escuridão com clareza. Eu tinha saído da cozinha, maçado, estonteado, murmurando num rodopio de frases sem nexo. Vinha de circular pela praia e os seus aspectos vistosos e aglomerados. Eram oito e quinze da noite. As luzes estavam quentes e brilhantes. E eu pus-me energicamente, a preencher as mesas e comecei a servir o jantar. Costela de porco com osso aparte e fatias enroladas de presunto, um vinho verde que eu fiz espumar no copo, caído de alto de uma garrafa rotulada: o cliente estava defronte de mim, comendo calmamente a sua pêra cozida; a minha curiosidade começou aí, perguntei-lhe com os braços cruzados, o meu pano de limpeza de flanela preso nos dedos — se ele era de Leça da Palmeira.

— Moro lá. Há muitos anos — disse-me ele.
— Terra de mulheres boas, segundo ouço dizer — disse eu.
— Boas e quentes! — Acrescentou ele.

Depois abriu-se num sorriso saliente. Até ao momento estivera cabisbaixo, olhando frequentemente para a porta. Mas agora despoletou o seu sorriso largo. Compreendi que tinha tocado a ferida aberta de uma lembrança. Havia decerto no caminho daquele quarentão uma «aventura». Aí residia o seu estado de alma ou a sua farsa, porque inconscientemente relacionei-me na ideia de que o «caso», daquele cliente, deverá ser excêntrico, e exalar zombaria. De maneira que lhe disse:

— A mim têm-me dito que as mulheres de Leça da Palmeira são as mais boas do Norte. Para braços do campo Régua, para rostos Angeiras, para banhistas a Foz: é lá que se vêem os biquínis requintados de várias cores.

O cliente estava ouvindo, comendo com os olhos altos.

— Eu tenho um cliente que veio veranear à praia de Leça da Palmeira. Talvez conheça. Alcunhei-o de Nudista, um cromo, de pouco cabelo, aposentado.
— O Nudista, sim — disse-me ele, olhando firmemente para mim.
— Veio veranear à praia de Leça da Palmeira como antigamente se ia veranear a Espinho — questão de consolar as vitrinas (olhos) da semi-nudez. — À sua.

Eu tentei evidentemente puxar por ele, mas ele se levantou, foi ao quarto de banho com um passe leve, e eu reparei então nos seus leves sapatos de camurça com sola fina e atilhos de couro. Quando eu pedi para me trazer a bonitona do dia, o meu empregado trouxe-me uma mensagem em código e disse:

— A menina está com outro. Está na pensão.

Na pensão dos avios, às vezes, cada quarto é um palco de rápidas.

— Tá-bem — disse eu.

A pensão era no começo da rua. Havia duas portas de entrada e no interior da pensão os clientes tinham posto os seus carros estacionados: estavam assim longe dos olhares imprevistos. Lá dentro estavam desde, trabalhadores, proprietários, comerciantes, um casal de estudantes, mulheres de vida fácil, um vendedor de electrodomésticos, um cozinheiro, um padre. Todos fodiam. Defronte da recepção estava um casal de biscate aos mimos a aguardar vez: e quando um quarto ficou vago, a porta abriu para o casal entrar. O cliente saiu do quarto de banho.

— Vou para o balcão — disse ele.
— Esteja à vontade. — E para criar melhor intimidade tirei da prateleira uma garrafa de uísque e abri-a para ele beber.

Não direi os porquês por que ele daí a bocado, já meio alegre, me contou a sua história. Há um ditado do engate que diz: «O que não fazes na cama à tua mulher, fá-lo a uma estranha, na pensão.» Mas ele teve laivos inesperados e desconcertantes para a sua comprida e sentida confissão. Foi a respeito do meu cliente, do Nudista, que fora veranear para a praia de Leça da Palmeira. Vi-o pasmar àquele cota de meia idade. Talvez a história seja julgada paranóica, mas conto-o apenas como uma curiosidade pessoal da vigília sedutora… Começou assim por me dizer que o seu caso era caricato — e que não queria que pusesse o seu nome no pasquim do bar — por isso alcunhei-o de “O Homem da Picha Triste.” Perguntei-lhe então se era cliente doutras casas que eu conhecesse. E como ele me respondeu que era crónico dessas, eu tive logo do seu feitio uma ideia porreira, porque os clientes do seu timbre eram uma antiga geração, quase uma raridade de empresários, que mantinham com uma assiduidade permanente o seu consumo elevado de despesas e de luxos. O Homem da Picha Triste disse-me que no tempo de 1981 ou 84, na sua ascensão, tinha em Sines, uma frota de operários a trabalhar sob o seu comando, e era ele quem os contratava. Depois o talento prático e inteligente de O Homem da Picha Triste, deu-lhe dinheiro. E assim tornou-se num «engajador» de operários não especializados. Disse-me ele que sendo naturalmente atrasado e menos evoluído, a sua vida tinha nesse tempo uma grande azáfama. Um trabalho movimentado e seguro, algumas certas dormidas fora de portas, uma mala saliente de roupas interiores e objectos de higiene, era todo o prazer da sua vida. Nesse tempo, a vida, era vagabunda e solta. Uma grande mudança social aclarava os vícios: os sentidos eram mais atrevidos, os sentimentos mais complicados.

Apanhar banhos de sol tranquilamente no carro, esticado na cadeira, vendo bater as ondas nos rochedos — sorrir com os melodramas que ecoavam entre as ruas de Leça, adornados de árvores, eram emoções que bastavam ao seu contentamento. O Homem da Picha Triste, aos quarenta anos, já tinha — como lhe dizia uma velha carocha, que fora querida noutra época — «sentido sexualidade de Gungunhana.» Mas por esse tempo veio tornar-se uma atracção defronte do local do carro de O Homem da Picha Triste, um primeiro andar, uma mulher dos trinta anos talvez, vestida de branco, uma pele amanteigada e um aspecto desejável, O Homem da Picha Triste tinha o seu carro estacionado, ao pé duma palmeira, e dali viu uma manhã aquela mulher com o cabelo louro curto e despenteado, um chambre cor-de-rosa e braços nus, chegar-se a uma pequena janela, a olhar para o mar. O Homem da Picha Triste, afirmou-se e, sem muitas intenções, dizia para consigo que aquela mulher, devia ser uma companhia agradável e cheia de energia, porque os seus cabelos soltos e suaves, o lábio carnudo, revelavam um temperamento vivo e imaginações ardentes. No entanto, deixou-se serenamente alinhavando as suas apreciações. Mas à noite, estava sentado ouvindo música do seu carro, que enchia o passeio: era em Abril e a atmosfera estava eléctrica e amorosa: a música gemia uma balada pimba, que então penetrava e era dum melodrama; a rua estava num deserto e cheia de mistério — e O Homem da Picha Triste, que estava em mangas de camisa, começou a lembrar-se daqueles cabelos louros e curtos e daqueles lábios carnudos que tinham a cor das cenouras descascadas: esticou-se para a frente, rolou calmamente a cabeça pelas costas da cadeira de pele e decidiu bocejando que a sua vida era aborrecida.

E no dia seguinte, ainda entusiasmado, encostou-se ao carro com a porta toda aberta, e olhando o prédio de frente, onde viviam aqueles cabelos louros. Mas ninguém se abeirou à pequena janela de caixilhos de madeira — e as horas foram passando. E quando se fechou dentro do carro sentiu defronte abrir-se a janela; eram certamente os cabelos louros. Oh! E O Homem da Picha Triste veio logo espevitadamente para o passeio limpar os óculos de sol. À outra vista, a mulher loura tinha alguma coisa de diferente da observação que lhe fizera antes. Um lenço às pintas verdes cobria-lhe metade do rosto, os dedos compridos e unhas pintadas, e toda ela era fresca, saudável e tenra. O Homem da Picha Triste disse consigo:

— É boa prá carago.

O Homem da Picha Triste, nesse tempo, era atrevido, com o penteado da moda. A camisa não dispensava a gravata e a sua figura devia ter aquele ar risonho e malandreco que depois da Revolução dos Cravos foi tão vulgar nos novos-ricos. A rapariga loura reparou naturalmente nele, mas naturalmente abriu a cortina de tom azulado, olhando para a frente o mar. Depois franziu suavemente o olhar na sua direcção e bateu duas vezes com as pestanas fazendo notar que por dentro um coração solitário se bate e espera — são velhos truques em que na verdade e na arte começa a conquista. O olhar ergueu-se em câmara lenta e o rosto louro iluminou. O Homem da Picha Triste não me contou por pormenores — a história detalhada da sua aventura. Disse simplesmente que daí a dois dias «estava tolo por comê-la». O seu trabalho tornou-se logo secundário e inseguro e o seu cabriolet Ford americano, bonito e espaçoso, galgou passeios, bermas, rampas, onde mirava toda a aventura impaciente dos seus nervos. Não a podia observar pela manhã: as noitadas boémias de Abril sucediam umas atrás das outras e eram noites perdidas pela certa. Só pela tarde, o sol aquecia, se abria a janela, e ela, vinha dobrando as mãos sobre o peitoral da janela, e pôr-se mimosa e bela com o seu olhar, observando quem passava. Era uma oportunidade magnífica e naquele momento inesperado, o pensamento de O Homem da Picha Triste com esta intuição interpretativa dos românticos, disse à sua curiosidade: «Será mulher dum engate.» O engate vai ao bordel, à rua e vem cheio daqueles clientes dos vícios eróticos, e nem O Homem da Picha Triste sabia porque é que aquela aventura o deixava indeciso assim: mas segundo ele me disse — «aquilo deu-lhe no gozo.» O Homem da Picha Triste, que tinha reparado naquele olhar uma tentação de desejo, quase um «S.O.S», esteve toda a tarde entregue às pestaninhas sedentas do desejo. Andava entretido, ocupado, não deu atenção aos afazeres profissionais que estavam sob as suas ordens. Mal deu conta do calendário se aproximar do fim do mês, e nem se preocupou em ir ao banco ver o seu extracto de conta.

— É costume de me deixar prender por mulheres atraentes — tinha dito para mim na sua expressão irónica. — São uns dias de férias antecipadas. Por minha conta.

Mas sucedeu que ao outro dia, estando ele à coca da janela, e neste momento uma vendedora de peixe passava na rua, que vendo a mulher de cabelo louro a abrir vagarosamente a janela, cumprimentou-a e atirou-lhe com uma confiança toda risonha, o seu «passe bem». O Homem da Picha Triste ficou iluminado: logo nesse instante foi atrás da peixeira, e abertamente, sem meia-tinta, perguntou-lhe:

— Desculpe-me, quem é aquela mulher que você há pouco cumprimentou defronte da esquina?
— É a Foscoa. Boa gente.
— Ah! Sim. E ela não vem à rua?
— Não sei. Encontro-a sempre ali.
— Bem, obrigado.

E O Homem da Picha Triste, desabafando consigo a história da sua aventura despertada e impaciente e falando do desejo com as exaltações de então, fez fé com a sua boa sorte «que ela viesse cá fora». Não era impossível. Logo na tarde seguinte, O Homem da Picha Triste de fato azul-marinho, gravata verde-mar, sentava-se no seu carro a ouvir um poeta afamado do tempo uma quadra intitulada «Sedução ou a ratoeira da loura.»!...

— De sorte que a oportunidade bateu à porta — e quando o poeta se calou, a mulher de louro que se chamava Foscoa apareceu vestida com uma blusa branca bordada, um ar de virgem bela, fresca e um brilho luminoso no olhar — o Sr. O Homem da Picha Triste é que não teve onde se agarrar, porque já estava todo apanhado, olhando Foscoa. E dizia-lhe suavemente:
— Então, noutro dia, gostou de me ver?
— Muito… —

No entanto na estreita rua, o trânsito passava-se dos eixos. O Homem da Picha Triste não pôde ouvir todas as palavras compostas daquela frase. Lembrava-se apenas da última palavra que falava em «suba»: ouviu-a de pé, quando um som brutal abortou de uma buzina ruidosa, e uma frase em terminal dizia: «a porta está aberta!» E O Homem da Picha Triste, desviando-se de um carro, olhava sorrindo — e via-se-lhe os dentes brancos. Depois a enigmática Foscoa, aproximando-se da janela com olhares reveladores ao chamamento, girou com os seus dedos indicando o caminho da porta, o que levou o paciente O Homem da Picha Triste e fã de Don Juan, a dizer ironicamente para consigo:

— Linha!... vamos para bingo!

Depois subiu as escadas côncavas muito usadas no tempo da Maria Cachucha, e quando chegou à casa, Foscoa convidara-o a entrar no quarto onde se encontrava deitada, dizendo-lhe:

— Espero que você honre o meu convite!

E O Homem da Picha Triste que estava boquiaberto, exclamou:

— Honre! Diga goze, minha querida!

Estavam frente-a-frente. A tarde já ia avançada. Foscoa, vestida de combinação lilás, justa ao corpo, toda deitada ao comprido da sua cama, apertando as mãos nas pontas dos lençóis, e ficando a olhar o físico de O Homem da Picha Triste, depois dele se ter livre das roupas. Depois vieram as festas, os gozos, e ela, Foscoa, ficara a gemer de prazer: sentia os bafos dele, as mãos dele segurando a sua cabeça loura amorosa, as chiadeiras da cama, e vira então ele, todo aflito a sair da cama, pôr-se debaixo do chuveiro e tomar um banho frio, e voltar a atirar-se a ela, cheio de fúria! «É um cavalo de força.» Foscoa então desmaiou nos braços dele. E foi quando O Homem da Picha Triste, sem fazer ruído algum, começou a vestir-se, todo absorvido a olhar para ela, quando de repente, afastou o lençol, olhando para as pernas de Foscoa: uma das pernas apareceu desequilibrada da outra e soltara-se da prótese.

— É fantástico — disse para consigo, — eu não senti a perna artificial.

Quando Foscoa voltou a si, achou-se aos pés da cama, curvada como um L, prendia tenazmente a perna à amarra, e a revelação que tivera magoara-a visivelmente. E quando se despediram, O Homem da Picha Triste, todo cortês no seu discurso, dizia sorrindo a Foscoa pela porta:

— Ora, a malandrice da perna, hem! Que coisa! Uma perna de plástico! Só tu me enganavas! Que raio! Eu não ter topado!

Foscoa esteve calada daquele gozo frio. Não lhe respondeu. O Homem da Picha Triste é que acrescentou:

— Um dia destes passo por cá, querida! Que surpresa… Foi bom… Mas foi mesmo! Uma rápida não se perde assim. Que mocada, hem!

E Foscoa tinha vontade de lhe saltar outra vez. Foi nesse termo que O Homem da Picha Triste me disse, com a voz muito sonante:

— Em suma, para encurtarmos pormenores, resolvi-me envolver com ela.
— Mas a perna?
— Não quero saber mais disso! Pe
nsara eu lá da perna! Resolvi-me envolver com ela!