Tuesday, September 23, 2008

CONTOS DE RATAZANA





              «SOB O TECTO
                 LORDESCO»

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Só eu sei que já vivi no Porto o tempo suficiente para não me sentir surpreendido com coisa nenhuma. Aqui não é própriamente necessário procurar aventuras do arco da velha, tal como acontece em Pequim… só é preciso ter um pouco de paciência e esperar; a vida virá ao nosso encontro nos sítios mais incríveis e picantes e as coisas passam-se aí. Mas este caso em que agora me situo… esta catraia de dezassete anos, branca como a cal, na mesa onze, o indiano espalhafatoso a ferrar uma orelha atrás dela, à frente, as duas prostitutas, uma baixa e outra alta, sentadas no sofá… é como se a realidade fosse vista através de um binóculo que embaciasse as imagens, tirando-lhes assim toda a credibilidade. Nunca me imaginara a servir de fiscal… como esses tipos que são controladores dos transportes públicos, de aspecto sempre meticuloso, muito andantes nas flautas, explicando que a catraia tinha o calor em brasa e ele estava a soprar-lhe o frio… Mas agora, tenho de admitir que Fili, com o seu corpo médio e sem pêlos, excita o indiano. Não pelo facto de ela ser uma catraia, mas porque é uma catraia sem inocência… olha-se-lhe dentro dos olhos e vê-se o diabo em figura de gente, a sombra da experiência…está sentada sobre uma das pernas desnudadas e comprime a azeitona debaixo da sua língua…
… e os seus olhos gozam pelo embaraço dele. O indiano roça-lhe com a palma da mão uma das nádegas palpitantes… o corpo ainda mantém a solidez e a imaturidade da infância. É uma mulher em crescimento, um modelo ainda por se fazer. Tem o suor espalhado… Gosta quando ele lhe faz festas ao pescoço. Agarra-lhe o braço… mas ele já entrou no local das bolas de Berlim… Espeta-lhe as unhas aguçadas que não o deixam explorar terrenos alheios e começa a brincar com a azeitona na boca… bom, vai pô-lo mais doente da tola…


A prostituta magra, sorri cinicamente… Ainda lhe chamam catraia… Ainda lhe chamam catraia, diz… a gaja sabe tanto como eu destas coisas. Ela marca com os olhos tudo o que se move. No seu ofício não se podem dar ao luxo de se deixar envolver emocionalmente, já que as prostitutas só conseguem viver depois de aprenderem a vender os seus corpos e, nunca, os sentimentos… mas vejo a perturbação invadir-lhe a alma, enquanto a voz vai ficando destravada... Chama a prostituta alta. A alta não se faz ouvir, mas ela empurra-a da mesa… está quase a caír ao ver-se desamparada. Pergunta-lhe o motivo porque se comporta como uma… bem, como uma sonâmbula, ela não diz nada, mantém-se apática e a magra toca-lhe no braço.
Tu fazes amor com o teu homem, todas as noites? Sim, todas as noites, quando ele está comigo deitado na cama… E quando o teu homem vai trabalhar, quando está fora durante a noite? Os cabritos, às vezes, querem que eu lhes faça umas coisas… eu nunca lhes digo que não, nem àqueles que querem levar com uma pelo telemóvel… O indiano sai irritado da mesa onze. A menina quer fazer o favor de não contar mais histórias dessas … peça uma garrafa e bebam as três uma rodada de um champanhe que vos faz bem ao espírito. A Fili bebe um golinho de espumoso.


Sento-me ao lado da prostituta alta no sofá. Está tão preplexa a olhar para mim, como eu estou para ela; deve ter-se esquecido do compromisso com o cliente de há bocado, senão teria dado à sola e não seria preciso eu ir avivar-lhe a memória… e logo a seguir, deita a mão à testa e levanta as pernas compridas e fortes. Fili está sentada ao lado do indiano. Brinca-lhe com os dedos, enquanto ele desliza a vista pela montra envidraçada... ele levanta o fino dedo mendinho para cima e ela belisca-o com gana.
O telemóvel da prostituta alta está tocando e, quando ela atende, vejo que está a desculpar-se perante o cliente. Não disse mais de cinco letras, tantas quantos dedos tem a minha mão. Ergue o olhar para a frente, tira a mochila do chão e esfrega os olhos, pergunta ainda, se ele me pedir para não usar preservativo, talvez a seco? Ela está morta por ser comida, e o facto de lhe terem prometido pagar três vezes mais aqui na pensão não tem nada a ver com o sítio onde ela faz massagens... neste momento, provavelmente, era capaz de dar ainda mais qualquer coisa só para receber aquele dinheirinho… Fili quer que o indiano a leve prá cama. Está ela debruçada sobre ele, com o copo numa mão, enquanto gesticula com a outra e pede, em voz alta, que eu lhe sirva outra dose e leve azeitonas pretas. Ele vai-me comer, diz-me, quando se encaminha pró quarto de banho, não queremos que os nossos nomes apareçam no pasquim do bar? O indiano reluz como um xeringa,1 agora tudo se parece cor-de-rosa. Está meio esticado no sofá da mesa onze, esperando que a pequena catraia volte. A prostituta baixa pede-me para pôr uns bónus na máquina das bolinhas. Ela está tão em crise por não entrar um cliente, que quase avaria a máquina quando começa a perder bónus e subitamente, o telefone começa a tocar.


Posso ser eu, mas faço também colecção com a minha amiga, exclama e fala ainda mais alto que sou obrigado a aumentar a música para os outros não ouvirem. Volto-me para trás, para não me chatear com ela… está a rir, a cabra, adora estragar as coisas que não são dela… «Comes as duas, se quiseres!» A prostituta baixa continua a chamada e tenta convencer o homenzinho, as palavras saiem-lhe com excitação… baixa o soutien para baixo… os seios exibem-se por fora da camisa. Oiço também o indiano a chamar-me:

«Azeitonas! Tenho de comer mais azeitonas antes de comer a minha querida pequena catraiazinha!»


Fili abre a sua pequena blusa e empurra para baixo, contra as suas calças justas de cor branca... vejo a sua descontracção aumentar-lhe para o dobro. Não percebo como ela consegue sustê-lo… mas o seu olhar reluzento parece devorá-lo, e bebe mais e mais…por instantes, sinto-a tão prevertida aquela catraia, para saber tantas coisas… E continua a saber por aí fora… Afasto-me, levando os pires sujos e os copos vazios e meto-me dentro do balcão e o indiano pede-me a conta.

«Devo estar tão generoso para si, para ter feito uma despesa destas… Com certeza que não estou com a moca… Agora, faça-me o troco, depressa!»
«Mexa-se!», grita ele. Julgo que está assustado com os meus números, mas não… aquele monhé não é da raça dos que se assustam fácilmente. Os olhos activos brilham-lhe quando me olha.


Corro, ligeiramente, para levar o troco.


«Ratazana! Ratazana!» É a prostituta alta que chega da rua. Deita-me a mão com força. «Atirei-lhe o dinheiro à cama, àquele sostro velho?» Vê-me tirar um copo de água.
«Não, não quero água…»


Puxo-a para trás do balcão. Lá está a colega a martelar as teclas da máquina de diversão.


«Oh, filha! Tu nem sabes o que me aconteceu!», choraminga a prostituta alta. «Aquele sostro velho deu-lhe para pegar no cinto para me cascar, enquanto me queria comer! Gritei-lhe como uma desalmada!»


Ela sentou-se na cadeira e esticou as pernas para fora da mesa. Estava tão branca que pensei que lhe ia dar o fanico.


«Oh, filha… se tu lá estivesses…», suspirou ela.
«Sua filha da puta maluca!», grita-lhe a prostituta baixa. «Não te volto a avisar para não te deixares comer de cebolada! Fazes tudo à tua maneira, e ainda por cima, atiras-lhe com o dinheiro!» Enfia o telemóvel nas calças e larga de vez a máquina das bolinhas.
«Agora, morcona! Vou fazer um labrego que engatei do anúncio!

Cava, rapidamente, da sala. Esta prostituta tem uma velocidade nas gambiarras. Não há forma de a apanhar… Pode-se ir de patins, skates, até bicicleta a motor, que a distância continuará a aumentar até nos deixar.

«Adeus!» É o indiano a saír e Fili segue atrás. Já lhe passaram insónias a mais… muitas, sem deixar rasto, meias gastas, todas elas. Mas estar tarde, esta bela tarde, Fili não o vai deixar fugir.
«Ratazana!» Ah! Esta agora, quer paleio. Empurro o copo para perto da sua mão e ela choraminga de novo a lembrar-se daquela saída, sem nada receber, isso baralha-lhe a mente. Neste momento não é uma prostituta… é sómente uma cabeça com problemas, que tem der ser reparada… os problemas vão durar muito.


Vou ter de levar com ela, como vou ter de ouvir as suas memórias desses outros que a lixaram. Está debruçada com a cabeça na porta da sala de jantar, com as pernas firmes para fora e os seus lábios murmuram palavras azedas dirigidas ao sostro velho. Faço de conta que não ouço. Agora, ela está em baixo de moral. Encho-lhe o espírito com palavras bonitas. E faço-lhe ver que não tem de se sentir culpada por não possuír estaleca para ser usada a chicote… é já bastante o que ela faz… Depois de ter aliviado, a prostituta alta mantém-se escarrapachada olhando como um lince a porta do bar. Nem se dá ao trabalho de fechar as pernas… comporta-se como se tivesse esquecido donde está e parece plenamente satisfeita consigo própria. Mas receio que hoje não não apareça ninguém, que lhe pague no mínimo um copo, ou uma ajuda para o táxi, para ela contar a história da mãe no xadrêz por gamanço… Meto a mão no pano e limpo com ele a mesa e tiro a primeira revista que me aparece, coloco-lhe dobrada na página dos anúncios dos casamentos à moda de Campanhã, sobre o tampo de vidro da mesa, como um alívio a servir de distracção.


De súbito, a prostituta alta põe a revista de lado e sai. A rua, tão solitária e despovoada, como nunca vi, acolhem-na.


(1) drogado.