Friday, July 20, 2007

CONTOS DE RATAZANA


A HISTÓRIA DO MORTO-VIVO
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«Tenho boas notícias ─ disse-me Galileu. ─ Queres saber que comprei uma revista e acabei por ser sorteado com um fim-de-semana em Espanha para duas pessoas? O meu problema é que não quero que a patroa saiba; mas é preciso arranjar companhia; não me ajudas? ─
«Não vai ser fácil» ─
«E eu que o diga ─ explica Galileu, ─ não estou com problemas monetários e tu sabes melhor que eu como se trata de arranjar uma companhia dessas.
«Nem pense nisso, ficava-lhe um encargo tremendo e, lá por Espanha, arranja fruta mais barata, em conta, peso e medida.»─
«Não me digas isso!» ─ exclama Galileu que, surpreendido, deixa cair o cigarro ao chão ─ vais ver como me vou desenrascar.» ─

E logo saiu.



Tinha de ser. As amarguras de Galileu apareciam estampadas no seu rosto. Murmurou:

«Estou com azar! ─ não consigo arranjar uma companhia que queira ir comigo para Espanha.» ─
«Eu bem lhe disse que não é fácil ─ disse, compondo a gravata ─ experimente ir falar com aquelas duas amigas que estão ali na sala a conversar.»--

Dirigiu-se a elas e poucos minutos bastaram de conversa para tirar as suas conclusões. Regressou ao balcão de semblante abatido.

«Estas fulanas devem ser malucas, querem-me esfolar como se fosse um cabrito.»


Respondi, cheio de humor.


«Ah! Só agora é que entendeu?» ─ Galileu sorriu: «Realmente só agora é que estou a entender muitas coisas.» ─



O carteiro trouxe o correio. Ao arrecadar as cartas, uma delas chamou-me a atenção. Voltei o envelope e vi a assinatura de Galileu. Abri a missiva…

─ “Já me encontro em Espanha. Encontrei alguém que me encheu as
medidas. A chavala é uma pérola, e talvez dê casamento…”

A carta vinha acompanhada duma foto da chavala. Era realmente uma chavala formosa. Até me custava a crer como aquele nabo teve arrojo para conquistar semelhante borracho.



Tinha vinte e quatro dias para o carpinteiro me fazer um tecto novo no bar. O actual estava mesmo a precisar duma remodelação. Com o meu optimismo habitual, deitei mãos à obra e mandei o homem fazer o trabalho; todos os dias de manhã, acordava mais cedo e ia abrir-lhe a porta; depois entretinha-me pelo café a ler os jornais ou aproveitava o tempo a fazer umas compritas. Naquela época fiz bastantes remodelações no negócio. Senti que era um bem necessário para o engrandecimento da minha obra.

«Tem uma chamada para atender ─ dizia-me o carpinteiro vindo-me chamar ao café ─ fiquei indeciso ─ e sabe quem é que está ao telefone?» ─
«Fala do Jornal “O Comércio do Porto”.» ─ Acrescentou ele.

Mais indeciso fiquei.

«Eu vou atender.» ─ E saí do café. Passado uns minutos, estava com o auscultador na mão a responder à chamada.
«Estou sim! Tenha a vontade de dizer.» ─ Encostado ao banco, a notícia que recebi pôs-me afectado durante uns dias… Segundo o que ouvi da boca do jornalista, Galileu tinha sofrido um acidente mortal juntamente com a sua companheira, em terras de Espanha; recusei-me a dar a notícia à família e passei para o jornalista essa missão. Sentei-me no banco durante uns minutos calado; custava-me a ingerir aquela notícia. Quando saí, fui comprar o jornal do dia e lá vinha a notícia do acidente toda escarrapachada no jornal…

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Quando mais tarde a notícia circulou pelo bar, os clientes ficaram atarantados com o teor do acontecimento. As moças com quem Galileu falara antes para o acompanhar naquela fatídica viagem; Bochechas e Belga deitaram as mãos à cabeça:

«Olha se tinha ido, a esta hora estava nos anjinhos.» ─ A Belga adiantou num tom mais moderado:
«Foi preciso ter azar, o homem era uma boa pessoa.» ─

Os comentários não paravam à volta do caso. Mais tarde, Baixinho, ao tomar conhecimento da notícia, ficou absorvido pela ansiedade.

«Mas será mesmo verdade?» ─ Respondi:
«Tanto quanto sei, tem ali o jornal para certificar-se da verdade.» ─ Ao que acrescentou Baixinho:
«Ainda ontem estive a falar com ele na mesa; vá lá um homem dizer que está bem.» ─ Engoliu um seco ─ estou como diz o velhinho: o que se leva deste mundo é o que se come, o que se bebe, o que se fode, o resto é pagode.» ─

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O suspense atrai o suspense; e, apesar da frase trovejante de Baixinho, continuei convencido de que, naquele momento de acontecimento imprevisto, algo se confundia no obscuro da incerteza! Foi um daqueles dias em que eu também me senti atraído por uma força estranha; mas, para me fazer entender melhor, começarei por contar numa tarde igual às outras, uma tarde em que Galileu era a personagem de quem se falava…

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A sala a abarrotar de clientes que se divertiam com as garotas, falavam sobre os seus atributos íntimos e aquelas palavras bonitas que um homem sabe dizer às pequenas; os membros do Grupo Traidor que procurava criarem um estilo de independência total; alguns habituais ao balcão como de costume; havia também alguns mangoneiros que só sabem desconversar. A atmosfera ia ficando pesada com as discussões e não só:

«Só vos digo uma coisa. Uma pessoa para morrer, basta estar vivo.» ─ Diz Baixinho à plateia que o escutava ao balcão. ─
«Olhava-se para a cara dele, parecia que vendia saúde! ─ E agora o que é que ele vende, Baixinho? Explica lá à gente…» ─ «Baixinho, tu que és um homem inteligente, explica lá!» ─ E o pobre Baixinho, olhando para todos, com algum frenesim:
«Hum! Acho que agora o desgraçado vende o morto!» ─

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… O ruído do telefone conjugava-se com a balbúrdia da sala: gente a conversar e a discutir; e eu estava de pé no balcão a vê-los conversar, quando ouvi de novo o ruído do telefone e levantei o auscultador:

«Por favor, fale alto, não estou a ouvir nada.» ─ Do outro lado, ouviu-se uma voz esganiçada, que suplantou o ruído:
«Sou eu; o Galileu.» ─ Fiquei com a ponta das orelhas em alerta máxima. Respondi à voz que me escutava:
«Vá para o diabo que o carregue. Que eu saiba o Galileu está morto!» ─ A voz voltou a pronunciar:
«É uma longa história. Dentro de instantes, estou aí para vos contar.» ─

O ruído parou! Mas não interessa adiantar-me aos acontecimentos. O caso do estranho telefonema de Galileu veio alterar o rumo dos acontecimentos. Agora, eu ficara sozinho no balcão. Baixinho estava entretido na máquina Perestroyka a jogar os puzzles. Os clientes do balcão entretinham-se à procura dos corações solitários. Dirigi-me a ele:

«Se lhe dissesse que recebi uma chamada telefónica de Galileu, o que é que pensava?» ─
«À partida, como está sempre na brincadeira, não acreditava.» ─ Disse ele.
«Pois então, prepare-se para acreditar ─ respondi ─ dentro de instantes; a porta vai-se abrir p´ra deixar entrar: o morto-vivo.» ─ Baixinho deu um pulo da cadeira.
«Não me assuste, senão piro-me já daqui.» ─ Murmurou ele.

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Dirigi-me à sala e falei com as moças que estavam inteiradas do caso… e deu choque. A mão de Bochechas voou no ar:

«Ah! Vire para lá essa boca já estou arrepiada.» ─ A voz da Belga é mais baixa, com um fundo malicioso e as palavras penetram no meu ouvido:
«Já estou a ficar excitada!» ─ Levantei-me e em voz alta comentei:
«Muito bem! Vamos preparar-nos para e festa.» ─ Fiz-lhe uma festa na cabeça e regressei ao balcão. Mantive-me silencioso durante uns minutos; o bastante até a campainha da porta se ouvir; mas agora, era o Rifeiro que entrava no jogo.


«Este agora até me assustou ─ disse Baixinho em voz baixa. ─ Já pensava que era o fantasma.» ─

De novo, ouviu-se a campainha e todos voltaram os rostos para a porta.

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… E os momentos que se seguiram foram enternecedores, quando da aparição de Galileu na sala… Ouviram-se gritos. O regozijo de alguns espalhava-se na angústia de outros. Os abraços apertam-se cada vez com mais força mas ele nem dá conta disso… Sou também envolvido num abraço de tragédia. Baixinho contorce-se pela sensação estranha e ouço-o dizer:

«Isto é mesmo uma casa de chalados.» ─ Na sala a confusão instala-se. A um canto, o Rifeiro geme:
«Perdoei-lhe a dívida de trinta contos de jogo pensando que ele tinha morrido mas, como ressuscitou, agora, vai ter que me pagar.» ─ Ouviu-se uma voz superior:
«Deixai o homem falar.» ─

Galileu, despertado por este grito macabro, tenta libertar-se do pesadelo e exclama visivelmente comovido:

«Antes de mais, dai-me de beber.» ─ Servi-lhe um uísque duplo no copo. Embutiu uma golada e sentou-se na cadeira. Fez-se silêncio. Alguém resolve tossir naquele instante e logo uma voz se faz ouvir.
«Vai tossir para a rua.» ─ Volta o silêncio a reinar. Galileu está sentado com o cabelo em desalinho, tem na mão o copo da bebida.

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Inicia a narração:

«Meus amigos, vou contar-vos a aventura mais excitante da minha vida. Naquela noite, ao sair daqui, fui comer uma bucha ao restaurante e lá encontrei uma chavala de sonho, que não se importou mesmo nada de me fazer companhia. Durante a viagem, não reparei que o seu gigolô me foi a perseguir até chegarmos ao destino. Quando chegamos ao apartamento, deixamos as malas e fomos curtir numa discoteca até de madrugada. Antes de nos deitarmos, fizemos um trequibreque (coito) e só depois tomei o calmante da ordem para dormir. De manhã cedo fui acordado, olhei à minha volta e vi a polícia espanhola a revistar-me as malas. Um deles perguntou-me: ─ Usted, como te lhamas? ─ Ainda meio a dormir, levantei-me da cama para ir buscar os documentos. Então reparei que a minha companheira desaparecera e vi que ficara sem documentos, sem dinheiro, sem ouro e, para cúmulo, sem o meu automóvel.

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De seguida, levaram-me para a esquadra e lá fiquei a saber de tudo o que se tinha passado: ─ Depois deles me terem extorquido todos os meus pertences, os amantes fugiram de abalada para Portugal, só que tiveram azar e foram embater mortalmente contra um camião TIR.» ─ Depois de ter explicado uma parte do seu trajecto, Galileu bebe outro gole e prossegue:

«Quando prestei as declarações na esquadra, fui à casa mortuária, afim de reconhecer os corpos. Aí sim! Recebi um choque, ao dar de caras com a minha patroa! Ela mal me viu, caiu ao chão e desmaiou…» ─ Perante uma borrasca de risadas, até Galileu mudou de tom.
«Quando a patroa reanimou, quis saber toda aquela história; inclusive quem foi comigo na viagem; porém, insisti em dizer que tinha ido sozinho apenas com o intuito de descansar uns dias e, na volta do passeio, fui assaltado e roubado por aquele casal depositado na casa mortuária. Em princípio, a patroa acreditou na história; agora, vamos a ver como ela reage quando ouvir as outras histórias. Vejam bem no que um homem se mete. Pensei gozar um fim-de-semana do outro mundo e, no fim de contas, a aventura saldou-se alucinante e trágica. Do mal, o menos, estou vivo!» ─

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Ao cabo de uma hora de falatório, Galileu fica exausto e pede mais bebida. A inconstância e a algazarra dos amigos e clientes estavam cada vez mais excitantes com o final da história. Grita uma voz:

«Saia uma salva de palmas para o morto-vivo.» ─ A confusão está no rubro. Alguém exclama:
«Isto só visto, porque contado ninguém acredita.» ─ Baixinho contrapôs:
«Parece fita à americana.» ─ Ouvem-se risos. E o champanhe jorra das garrafas. Era dia de comemoração. Pus o letreiro em frente de uma mesa que dizia: ─ A satisfação não tem limites, quando o objectivo é alcançado.